Em mais um dia de seu trabalho diário, um homem, pai de dois filhos, é surpreendido por fortes homens armados, interrompendo-o em sua atividade laboral e arrastando-o para fora do local à frente de todos os presentes. Algemado, ele é jogado num espaço fedorento e assaz comprimido enquanto é levado pelos acusadores às agruras da segregação do convívio com sua família e da sociedade. Pelo menos até o fim de seu interrogatório.
O caso em tela tem matizes semelhantes aos quadros fáticos comuns da época dos regimes de opressão ditatoriais. Ledo engano. O fato descrito se situa no dito Estado Democrático de Direito brasileiro do ano de 2014, exatamente no estado do Paraná, onde um homem de 33 anos foi detido na manhã desta sexta-feira, dentro de seu trabalho, apenas por ter escrito uma publicação em sua rede social, na qual expressava sua indignação contra uma abordagem feita pelos prepostos policiais (link).
O pretexto utilizado pela autoridade policial, em suas palavras, foi de que:
"É um crime contra a honra do policial. Ele se sentiu ofendido e prejudicado. Nós, então, identificamos o suspeito, fomos até onde ele estava e, como é procedimento normal, encaminhamos para a delegacia".
O procedimento apontado pela autoridade, entretanto, foge do critério “normal” preconizado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Apenas didaticamente, convém ressaltar que a ocorrência dos crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação) exige do autor a inequívoca manifestação dolosa de violar o patrimônio moral alheio, seja lhe imputando prática de crime, seja lhe atribuindo fato desabonador à vítima. A mera reprovação da conduta alheia não constitui, por si só, razão vituperadora à honra de outrem, sob pena de estarmos banalizando a simples recepção à crítica, quando desprovida de maiores caracteres que não o da expressão da irresignação.
Aliás, não é demais ressaltar que, em se tratando de autoridades, é ainda mais concebível que sobre elas recaiam críticas mesmo duras, mormente porque, enquanto representantes constitucionais do povo (parágrafo único do art. 1º da CF/1988) estão sujeitos à percuciente observação dos representados.
Destacando a importância da revisão da sociedade em relação aos componentes da Administração Pública, a ordem internacional firmou na Declaração de princípios sobre liberdade de expressão, aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, celebrada de 16 a 27 de outubro de 2000, consignou:
“Os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da sociedade”.
Até aqui, pode parecer que estamos diante de um compreensível caso de ignorância jurídica resultante de um exercício arbitrário de poder.
Arbitrário sim. Ignorante não.
“Não é de sexta-feira” que órgãos e autoridades do Estado brasileiro, esquecendo-se de sua primitiva função de zelar pelas prerrogativas do cidadão, convertem-no num declarado inimigo sempre que se imagina o menor sinal de que este possa tomar-lhe o cetro da autoridade ou macular sua aparente escorreita de mantenedor da ordem.
Na Roma antiga, quando um cidadão ameaçava a segurança da República, o Senado podia declará-lo um inimigo público – hostis.[1] No Brasil, o povo brasileiro é, pois, um hostis em sua terra, cada vez mais encurralado pelo próprio poder que um dia outorgou a uma entidade abstrata no hobbesiano contrato assinado antes mesmo de sua nascença.
Assim, não bastasse vítima da violência rotineira, o cidadão brasileiro tem sido assacado pela denominada violência de cima; aquela vinda de onde deveria apenas lhe oferecer o abrigo a todo azo de violações humanas.
O cidadão brasileiro, agora abandonado pelos seus defensores, só, no quarto escuro da violência travestida de instituição, não tem ao que se escorar - seus recursos legais são utilizados a seu desfavor, sua voz levantada fere a honra da autoridade, seu grito de socorro é um desacato. Também não tem aonde ir - é bastardo de sua pátria, rejeitado por sua mãe (gentil só for aos outros). Está como José (de Drummond de Andrade):
“Sozinho no escuro/ qual bicho-do-mato,/ sem teogonia,/ sem parede nua/ para se encostar,/ sem cavalo preto/ que fuja a galope/ você marcha, José!/ José, para onde?”
Ainda não é o fim. Trevas mais duradouras já se assomaram ao horizonte e mostraram o caminho da resistência. A falta de leis nunca foi um problema. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 19, parágrafo 1, estabelece que “ninguém será molestado por suas opiniões”. O que falta – e o que se impõe – é a resistência. A resistência ao poder autoritário e despótico que se irrompe das Instituições e provoca o que a mais abjeta das injustiças. Oposição esta que de longe seria ilegal, mas, ao revés, manifestação viva do titular soberano do poder, uma vez que nenhum crime praticado pelo ser humano, por maior gravidade que apresente, compara-se, ainda que remotamente, aquele exercido pela autoridade, que investida de suas funções outorgadas, transgride ela própria o direito, Tal infâmia institucional, violência de cima, é como Ihering já apontava, o guardião e sentinela da lei que se transforma em seu assassino, é o médico que envenena o enfermo, o tutor que estrangula o tutelado[2].
É com muita razão que o pai de família do Paraná asseverou que foi preso por emitir sua opinião.
E é com a solidariedade de um cidadão que termino este artigo, que nada mais é do que uma forma de resistência, mas não por mera simpatia. “Tempos de autoritarismo não são tempos de resignação nem de pessimismo”.[3] Cabe a todo indivíduo responder ao espirito de sua época com a resposta que ela merece. Um Estado que se diz Democrático e não tolera a expressão de qualquer do povo, verte em sangue o direito, cujo proveito somente tem a tirania.
Cuando la Tiranía se hace Ley, la Rebelión es un Derecho" (Simon Bolívar)
(Serei preso também por esta opinião?)
[1] AGAMBEN, G. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
[2] A luta pelo Direito. Bauru: Edipro, 2001.
[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed Rio de Janeiro: Revan, 2001. 281 p.