3 O princípio da separação de funções como sinônimo do princípio da divisão do trabalho. Origem desse princípio
Platão já falava do princípio da separação de funções como sendo sinônimo do princípio da divisão de trabalho. A respeito disso, Platão, na sua obra A República, registra:
(...) O Estado surge da necessidade dos homens (...) A divisão do trabalho... Esse princípio... [é]... ninguém pode desempenhar com êxito muitos ofícios... Ora, é de máxima importância que... o trabalho... seja bem executado (...) todas as coisas serão produzidas em maior abundância, com mais facilidade e de qualidade melhor quando cada um realize um só trabalho (...) O dever de ajustar os cidadãos à função ... para que os destinou a natureza (...) As classes, como os indivíduos, não devem intervir nas funções umas das outras (...) Então, cada um deverá desempenhar a sua função para toda a comunidade... a natureza não fez todos os homens iguais, mas diferentes... e aptos para esta ou aquela função (...) Portanto, quanto mais importante é a função de guardião do Estado... exige... mais arte e aplicação... (PLATÃO, 1996, pp. 39, 40, 43, 84 e 92; e 2000, pp. 54, 55, 60 e 61) (negritos nossos).
No seu livro A Política, Aristóteles manifesta o mesmo entendimento:
O Estado ou Cidade é uma sociedade política (...) Especialização das funções (...) Uma vez determinadas estas funções, precisamos ver se todas... devem ser comuns a todas as pessoas (pois poderia acontecer que todos fossem ao mesmo tempo lavradores, artesãos, membros da Assembléia e juízes)... ou ainda se algumas funções devem ser comuns e outras ser próprias a tais e tais pessoas... Isto não ocorre uniformemente em todos os governos (...) Nas grandes cidades [Estados] que... podem prover um em cada função, não se deve conferir mais do que um cargo a cada um... O trabalho é mais bem feito quando só nos ocupamos com um negócio... (ARISTÓTELES, 1998, p. 96, 97 e 137) (negritos nossos e destaques nossos).
O princípio da separação de funções, no entanto, não foi criado nem originado por Platão, nem por Aristóteles, muito menos por Montesquieu. A propósito, Aristóteles leciona:
Esta necessidade de dividir o [governo do] Estado... segundo a variedade das funções... não é uma invenção de hoje, nem um segredo recém-descoberto pelos filósofos que se ocupam da política. Tal distinção foi introduzida no Egito pelas leis de Sesóstris e em Creta pelas de Minos... (ARISTÓTELES, 1998, p. 100) (destaque e negritos nossos).
Assim, a origem do princípio da separação de funções remonta a tempos históricos anteriores a Aristóteles e Platão, e, desde esses tempos, é princípio de administração, governo ou gestão (planejamento, organização, liderança, direção, coordenação e controle), especificamente, princípio de organização, de arranjo organizacional, aplicável e traduzível6, com as devidas adequações, a qualquer tipo de organização humana, e, portanto, aplicável também a empreendimentos políticos, à organização do governo, ou gestão do Estado.
4. Críticas ao princípio da separação de funções (“poderes”) porque confundido com o mito dos três poderes separados, de Montesquieu. Necessidade de desfazer a confusão
Por confundir o mito dos três poderes separados, de Montesquieu, com o princípio da separação de funções (“poderes”), muitos autores, querendo atacar o mito dos três poderes separados, de Montesquieu, atacam o princípio da separação de funções. Foi o caso de Bonavides que, no seu livro Do Estado Liberal ao Estado Social, quis, na verdade, atacar o mito dos três poderes separados, de Montesquieu, mas, por confundi-lo com o princípio da separação de funções (“poderes”), atacou fortemente o princípio. Observemos:
(...) Esteio sagrado do liberalismo foi, sem dúvida, o dogma da separação de poderes (...) Teve o princípio, incontestavelmente, na infância do constitucionalismo moderno seu momento de apogeu (...) Esse princípio... já não oferece, em nossos dias, o fascínio das primeira idades do constitucionalismo ocidental (...) foi, no combate aos déspotas do absolutismo, a arma mais eficaz. Quando cuidamos de abandoná-lo no museu da Teoria do Estado queremos, com isso, evitar apenas que seja ele, em nossos dias, a contradição dos direitos sociais, a cuja concretização se opõe, de certo modo, como técnica dificultosa e obstrucionista, autêntico tropeço, de que inteligentemente se poderiam socorrer os conservadores mais perspicazes e renitentes da burguesia, aqueles que ainda supõem possível tolher e retardar o progresso das instituições... Pretender conservá-lo, porém, como dogma, em justificações descabidas para a atualidade, é o que nos parece inaceitável (...) Os povos europeus pediam também a liberdade, tanto quanto o inglês. E no exemplo das bem-sucedidas reivindicações inglesas do século XVII, que instauraram definitivamente o sistema liberal, buscavam a base teórica de suas aspirações. Foram encontrá-la ao engendrarem a técnica da divisão dos poderes, pois a unidade do poder, se abertamente esposada, como na Inglaterra, por parte da aristocracia, implicaria, no Continente, sua remoção do monarca para o povo. Queriam assim evitar que o poder recaísse no povo. Estabelecida a antinomia soberano – povo, do seu seio destaca-se uma classe: a burguesia. Esta pretende escalar o poder, amparando-se constitucionalmente na técnica separatista. Sem a separação dos poderes, ter-se-ia a vitória do princípio democrático, como expôs mais tarde Rousseau. Montesquieu advogava o princípio liberal, abraçava a solução intermediária, relativista, que, de um lado, afastava o despotismo do rei e, de outro, não entregava o poder ao povo (...) Montesquieu interpretou preconcebidamente a Constituição inglesa, para servir aos fins da revolução... (BONAVIDES, 2001, pp. 64 e 70) (negritos nossos).
Outros autores também caem na mesma confusão crítica. Por exemplo, Dallari nos comunica das críticas de outros autores, que, na verdade, querem criticar o mito de Montesquieu, mas, por confundi-lo com o princípio da separação de funções (“poderes”), criticam o princípio, e terminam aceitando a permanência do mito de Montesquieu:
(...) O sistema de separação de poderes, consagrado nas Constituições de quase todo o mundo, foi associado à ideia de Estado Democrático e deu origem a uma engenhosa construção doutrinária, conhecida como sistema de freios e contrapesos (...) Como se tem observado, a separação de poderes foi concebida num momento histórico em que se pretendia limitar o poder do Estado e reduzir ao mínimo sua atuação. Mas a evolução da sociedade criou exigências novas que atingiram profundamente o Estado. Este passou a ser cada vez mais solicitado a agir, ampliando sua esfera de ação e intensificando sua participação nas áreas tradicionais (...) Entretanto, apesar da patente inadequação da organização do Estado, a separação de poderes é um dogma, aliado à ideia de democracia, daí decorrendo o temor de afrontá-la expressamente. Em conseqüência, buscam-se outras soluções que permitam aumentar a eficiência do Estado mantendo a aparência da separação de poderes (...) Na verdade, as próprias exigências de efetiva garantia de liberdade para todos e de atuação democrática do Estado requerem de maior dinamismo e a presença constante na vida social, o que é incompatível com a tradicional separação de poderes. É necessário que se reconheça que o dogma... está superado, reorganizando-se completamente o Estado, de modo a conciliar a necessidade de eficiência com os princípios democráticos (DALLARI, 2012, pp. 218, 219 e 220) (as cursivas são do autor; os negritos, nossos).
É preciso, pois, desfazer essa confusão entre o mito de Montesquieu e o princípio da separação de funções, pois eles são muito diferentes, inconfundíveis e reciprocamente excludentes. Para evitar essa confusão, eis algumas características do princípio e do mito:
-
o princípio da separação de funções refere-se ao governo do Estado, pois é o governo do Estado que é separável em funções para serem delegadas a órgãos. Já o mito dos três poderes separados refere-se ao poder do Estado, e foi criado por Montesquieu baseado na premissa falsa de que o poder do Estado é divisível, e pior, em apenas três poderes7, para evitar que o poder (a soberania) e o governo do Estado e a educação caíssem nas mãos do povo;
o princípio da separação de funções existe desde antes de Platão e existirá enquanto existirem empreendimentos humanos de qualquer espécie que precisem realizar sonhos, fins, objetivos, de forma organizada. Já o mito dos três poderes separados aparece com Montesquieu, e, além de ser falso, está caduco, anacrônico, arcaico, obsoleto, superado, ultrapassado. Só não foi para o “museu da Teoria do Estado” porque foi e está sendo confundido com o princípio da separação de funções;
o princípio da separação de funções, porque é princípio:
é universal, pertence a todos os povos do mundo, a todos os empreendimentos e organizações humanas do mundo. Ninguém em particular criou o princípio da separação de funções. É criação da humanidade;
é qualitativo, geral, indeterminado, abstrato, inespecífico, aberto, ou seja, não exige, nem sugere, nenhum número determinado, concreto, específico, limitado e fechado de funções separadas.
De outro lado, o mito dos três poderes separados, de Montesquieu:
(a) é doutrina mítica (falsa, irracional) particular, pertence a Montesquieu, só a ele, pois é criação mítica dele;
(b) é doutrina numérica, isto é, de número concreto, determinado, específico, limitado e fechado de “poderes”, no caso, de número três.
Considerando isso, afirmamos:
(1) a separação de funções não é mito ou doutrina mítica de número de poderes. Tampouco é dogma. É princípio, princípio fortemente aliado à ideia de democracia, de democracia participativa e de Estado democrático de direito;
(2) o que é contrário à ideia de democracia, de democracia participativa e de Estado democrático de direito é o mito dos três poderes separados, de Montesquieu;
(3) não é o princípio da separação de funções, mas o mito dos três poderes separados, de Montesquieu, que deve ir para o “museu da teoria do Estado”;
(4) a presença e atuação constantes, amplas e democráticas do Estado na vida social são perfeitamente compatíveis com o princípio da separação de funções. O que é incompatível com essa presença e atuação do Estado na vida social é o mito dos três poderes separados, de Montesquieu;
(5) é o mito dos três poderes separados, de Montesquieu, e não o princípio da separação de funções, que é uma “inteligente” forma de obstaculizar as mudanças e reformas sociais e institucionais, sendo também obstáculo à concretização ampla dos direitos sociais e, portanto, à concretização da justiça ampla, preventiva e social;
(6) é fundado no princípio da separação de funções, rejeitando o mito dos três poderes, de Montesquieu, que se deve reorganizar, inovar, reformar, completamente, o governo do Estado democrático de direito, fazendo, entre outras coisas, que a educação e outras funções essenciais à justiça sejam atribuídas a órgãos constitucionalmente separados, autônomos e independentes.
5 O mito dos três poderes separados, de Montesquieu, e as teorias de número de funções e órgãos separados de Platão, Aristóteles, Hobbes, Locke, Rousseau, Rawls e Walzer
Neste ponto, queremos mostrar, basicamente, que, diferentemente de Montesquieu, grandes filósofos (e juristas) já pensaram, explícita ou implicitamente, na ideia de que o que se divide ou separa em funções é órgãos (“poderes”) é o governo do Estado e não o poder do Estado, podendo o governo ser separado ou dividido em mais, bem mais, de três funções e órgãos (“poderes”) constitucionalmente autônomos e independentes.
Já que nosso alvo de crítica é o mito dos três poderes separados, de Montesquieu, comecemos, pois, por ele. Montesquieu, pela sua condição nobre8, embora contra o absolutismo, como Bonavides já apontava, queria:
(...) evitar que o poder recaísse no povo. Estabelecida a antinomia soberano – povo, do seu seio destaca-se uma classe: a burguesia. Esta pretende escalar o poder, amparando-se constitucionalmente na técnica separatista. Sem a separação dos poderes, ter-se-ia a vitória do princípio democrático, como expôs mais tarde Rousseau. Montesquieu advogava o princípio liberal, abraçava a solução intermediária, relativista, que, de um lado, afastava o despotismo do rei e, de outro, não entregava o poder ao povo (...) Montesquieu interpretou preconcebidamente a Constituição inglesa, para servir aos fins da revolução incipiente... (BONAVIDES, 2001, p. 70) (negritos nossos).
Montesquieu, porém, no queria só isso. Ele também desejava que o povo ficasse afastado do governo do Estado. Ele desejava que o poder e o governo fossem conservados pelo monarca, junto à nobreza, e para que isso funcionasse de acordo com os interesses dos monarcas e nobres, Montesquieu não queria que a educação fosse “poder”, nem função separada, autônoma e independente no governo. Nas próprias palavras de Montesquieu:
(...) Da constituição da Inglaterra (...) Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo... [e o] poder de julgar... Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes (...) e como precisam de um poder regulador para moderá-los, a parte do corpo legislativo que é composta por nobres é muito adequada para produzir este efeito... O corpo de nobres deve ser... um poder hereditário (...) O poder executivo deve estar entre as mãos de um monarca (...) o povo... não está capacitado para gerir... É preciso que os negócios funcionem com um certo movimento que não seja nem muito lento, nem muito rápido. Mas o povo tem ação demais ou de menos. Algumas vezes com cem mil braços ele derruba tudo; outras vezes, com cem mil pés, só caminha como os insetos (...) A grande vantagem dos representantes é que eles são capazes de discutir os assuntos. O povo não é nem um pouco capaz disto... Havia um grande vício na maioria das antigas repúblicas: é que o povo tinha o direito de tomar decisões ativas... coisa da qual ele é incapaz. Ele [o povo] só deve participar do governo para escolher seus representantes, o que está bem a seu alcance (...) As leis da educação devem ser relativas aos princípios do governo (...) As leis da educação serão, portanto, diferentes em cada espécie de governo (...) A honra [ao príncipe] possui suas regras supremas, e a educação é obrigada a conformar-se a elas (...) Assim como a educação nas monarquias busca... a obediência [honra] às vontades do príncipe... nos Estados despóticos... ela deve ser servil. Será um bem, mesmo no comando, ter uma educação servil... (MONTESQUIEU, 1996, pp. 21, 41, 43, 44, 167, 168, 171 e 172) (destaques e negritos nossos).
Nessa citação, podemos ver que Montesquieu confundiu poder do Estado com governo do Estado, e, fundado na premissa falsa de que o poder do Estado é divisível em poderes, e pior ainda, em apenas três9 poderes, concebeu, após “estudo” da constituição inglesa, sua doutrina mítica dos três poderes do Estado separados. Assim, para Montesquieu, o povo não deve ter a soberania, o poder do Estado, nem o exercício do poder ou governo do Estado, nem educação para saber e poder governar o Estado. Para ele, o povo não sabe governar, nem deve saber governar, nem deve ter o direito de tomar decisões de governo. Para Montesquieu, o povo não sabe, nem deve saber deliberar, discutir, sobre os assuntos do Estado. Para ele, esses assuntos não são nem devem ser do conhecimento e alcance do povo. Para o filósofo, o povo só deve participar do governo “escolhendo” o “seu representante”. Para ele, a educação ética, jurídica, política, de governo, de gestão, não é, nem pode ser, nem deve ser para todos os cidadãos, para o povo. Para Montesquieu, a educação não é nem deve ser uma educação democrática e livre e para a democracia e a liberdade igual e real para todos. Para ele, a educação deve criar a obediência à lei da monarquia e dos monarcas, devendo estar, portanto, subordinada e dependente deles. Enfim, para o nobre filósofo, a educação é, deve ser e só pode ser “educação servil”, produtora e reprodutora da “escravidão funcional” do povo, dos cidadãos, em benefício dos príncipes, monarcas e nobres.
Com algumas modificações10, esse mito de Montesquieu foi positivado na constituição americana de 1787. Desde então, o mito dos três poderes separados, de Montesquieu, incluída nele a ideia de “educação servil”, é (porque confundido com o princípio da separação de funções do artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789) considerado “princípio”, e pior, “dogma”, ou seja, uma crença religiosa indiscutível, intocável, que, mesmo sendo evidentemente falsa, perversa, injusta, produtora de disfunções, desequilíbrios, omissões, autoritarismos, patologias, injustiças e ou corrupções institucionais e sociais, deva ser, até o final dos tempos, conservada, reverenciada, idolatrada.
A propósito da natureza perversa e injusta do mito dos três poderes separados de Montesquieu (e Madison), isto é, da “separação de poderes ao estilo americano”, produto de exportação norte-americana, Bruce Ackerman, na sua obra já referida, adverte:
(...) Enquanto os expertos americanos da lei se contentam com piedosas referencias a Montesquieu e Madison, cientistas políticos modernos se dignam considerar o modo em que sistemas alternativos funcionam bem no mundo (...) Embora esse sistema [de Montesquieu e Madison] funciona suficientemente bem em casa, ele se mostra desastroso em outros países (...) é o colapso constitucional. Num esforço de destruir o poder concorrente, um ou outro poder assalta o sistema constitucional e se instala, ele mesmo, como o único legislador (...) Eu chamo a esse colapso constitucional de “o pesadelo de Linz” (...) Linz argumenta que a separação de poderes [de Montesquieu e Madison] tem sido uma das mais perigosas exportações americanas (...) Há cerca de trinta países, a maioria em Latino-américa, que importaram sistemas ao estilo americano. Todos eles, sem exceção, sucumbiram ao pesadelo de Linz, ao mesmo tempo ou outro, frequente e repetidamente (...) a doutrina liberal da separação... tem sérias limitações... muito mais se requer para realizar uma sociedade razoavelmente justa (...) Os americanos deviam ser audaciosos em imaginar novos modelos de separação. Estamos somente no estágio inicial do enfrentamento de três grandes desafios dos tempos modernos: fazer do ideal da soberania popular uma realidade no governo moderno, resgatar o ideal da excelência e integridade burocráticas sobre uma base moderna e salvaguardar direitos liberais fundamentais garantindo recursos básicos para o auto-desenvolvimento de cada um e de todos os cidadãos (...) Nós honramos melhor Montesquieu e Madison buscando novas formas constitucionais para enfrentar com êxito esses desafios, mesmo transcendendo a... separação tripartite... (ACKERMAN, 2000, pp. 638, 640, 645, 722, 723 e 725) (tradução, destaques e negritos nossos).
Para nós, fundado no princípio da separação de funções ou da divisão do trabalho, Platão já tinha elaborado uma teoria de mais de três funções (“poderes”) separadas. Notemos:
(...) O Estado surge da necessidade dos homens (...) A divisão do trabalho... Esse princípio... [é]... ninguém pode desempenhar com êxito muitos ofícios... Ora, é de máxima importância que... o trabalho... seja bem executado (...) todas as coisas serão produzidas em maior abundância, com mais facilidade e de qualidade melhor quando cada um realiza um só trabalho (...) a necessidade faz aparecer os mercadores [e] comerciantes (...) Então nos surgirá daí um mercado e uma moeda (...) Requisitos do bom médico e do bom juiz (...) os bons médicos... serão... aqueles que hajam tratado o maior número de pessoas sãs e doentes (...) o bom juiz não deve ser jovem (...) Os guerreiros devem ser humanizados pela educação (...) Os detalhes da administração podem ser deixados ao critério dos cidadãos bem-formados (...) no creio que o verdadeiro legislador deva preocupar-se com esse gênero de leis e constituições (...) Há indivíduos talhados para cultivar a Filosofia e dirigir a cidade (...) as cidades não se livrarão dos seus males enquanto não forem governados pelos filósofos (...) sobre o governo do navio [do Estado]... o bom piloto [o filósofo]... estando verdadeiramente qualificado, é ele que tem que dirigi-lo, queiram os outros ou não (...) a justiça consiste nisso: em fazer cada qual o que lhe compete (...) As classes, como os indivíduos, não devem intervir nas funções umas das outras (...) qualquer troca ou intromissão mútua representa o maior dano para a cidade [Estado] e pode com plena razão ser qualificada de crime... Isso é, pois, injustiça... (PLATÃO, 1996, pp. 39, 40, 41, 43, 72, 78, 86, 87, 92, 93, 122 e 134) (destaques e negritos nossos).
Assim, já para Platão, o que se separa, em funções ou trabalhos, é o governo do Estado, a função maior ou trabalho maior de governar o Estado, e não o poder do Estado, e a sua teoria de número de funções é uma teoria de oito funções separadas:
(1) função da educação;
(2) função da saúde;
(3) função da economia: produção, comércio, mercado, moeda;
(4) função legislativa;
(5) função da administração;
(6) função judicial;
(7) função do guerreiro;
(8) função do governo geral do Estado, do “navio”, atribuída ao rei-filósofo.
Reparemos que, para Platão, a função da educação e a função da saúde dever estar, e estão, separadas da função da economia. Esse número de funções, no entanto, não é fechado, pois da leitura d’A República, de Platão, as funções ou trabalhos vão aumentando conforme o Estado vai crescendo e se relacionando com outros Estados. Essas funções devem ser delegadas (distribuídas, atribuídas) a determinadas classes ou cidadãos especializados e competentes: educadores, médicos, juízes, legisladores, guerreiros, rei-filósofo, etc., para que sejam “bem executadas”. Para Platão, quando uma classe ou indivíduo intervém ou se intromete na função de outra classe ou indivíduo, ou quando há troca de funções, produz-se uma disfunção, um desequilíbrio, uma doença ou patologia. Isso é contra o princípio da divisão de funções, contra o princípio da eficácia e eficiência e, principalmente, contra a justiça. Por isso, a essa disfunção, desequilíbrio, doença ou patologia, Platão chama de “maior crime” ou “injustiça”.
Por seu lado, Aristóteles, nos seus livros A Política e Ética a Nicômacos, escreve:
O Estado ou Cidade é uma sociedade... política (...) Uma das espécies de justiça... e do justo... é a distribuição de funções... de governo (...) Nas grandes cidades [Estados] que, pelo grande número de cidadãos, podem prover um em cada função, não se deve conferir mais do que um cargo a cada um (...) O trabalho é mais bem feito quando só nos ocupamos com um negócio (...) O governo é o exercício do poder supremo do Estado (...) Dos três poderes existentes em todo governo (...) Em todo governo existem três poderes... poder deliberativo... poder executivo... poder judiciário... cada um dos quais o legislador prudente deve acomodar da maneira mais conveniente... Quando essas três partes estão bem acomodadas... o governo vai bem (...) A ordem judiciária é o terceiro órgão do governo (...) da educação... o legislador deve cuidar principalmente de formar pessoas honestas, procurar saber por quais exercícios tornará honestos... justos, pacíficos e felizes... os cidadãos e sobretudo conhecer bem qual é o ponto capital da vida feliz (...) Um legislador deve levar tudo isso em consideração ao escrever suas leis... Deve-se, então, criticar o legislador que não lhes ensinou como viver em paz (ARISTÓTELES, 1998. pp. 65, 66, 68, 96, 105, 127, 131, 137, 141; e 1992, p. 95) (destaque e negritos nossos).
Analisemos: para Aristóteles, como para Platão, e contrariamente a Montesquieu, o que se separa em “funções”, “órgãos”, “trabalhos”, “ordens” ou “poderes” é o governo do Estado, a função maior ou trabalho maior de governar o Estado, e não o poder do Estado. Aristóteles, então, faz distinção entre poder do Estado e governo do Estado, e entre governo e “poder” executivo. Para ele, o órgão (“poder”) executivo é apenas um dos órgãos do governo. Para Aristóteles “a ordem judiciária” é também “órgão do governo”. Ademais, Aristóteles também menciona a função legislativa, que forma o órgão do “legislador prudente”. Podemos afirmar, então, que, para Aristóteles, o princípio é o princípio da separação de funções ou princípio da divisão do trabalho, e a sua teoria de número de órgãos separados, derivada de uma teoria de funções separadas, é uma teoria de quatro órgãos separados: (1) órgão deliberativo; (2) órgão executivo; (3) órgão judiciário; e (4) órgão legislativo ou do “legislador prudente”. Observemos que, para Aristóteles, o órgão do “legislador prudente”, que ele não chama de “poder”, é mais “poderoso” que aqueles nominados de “poder”, pois ele tem três funções: função educativa, função legislativa e função de acomodar os três órgãos nominados de “poder”. Notemos também que, para Aristóteles, a educação não deve estar nas mãos do agente do “poder” executivo, mas nas mãos do legislador prudente, tendo este a responsabilidade de formar cidadãos honestos, corajosos, prudentes, pacíficos, justos e felizes.
Por seu turno, Hobbes, na sua obra Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, não confundindo “poder soberano” (indivisível) com “parte orgânica” do governo ou administração do Estado (divisível em funções), ensina:
(...) Neste capítulo vou falar das partes orgânicas, que são os ministros públicos (...) Dos ministros públicos, alguns têm a seu cargo a administração geral, quer de todo o domínio, quer de uma parte dele... Outros têm administração especial... encarregados de uma função especial, seja no país, seja no estrangeiro. No país, temos... para a economia... aqueles que possuem autoridade relativamente ao tesouro, aos tributos... São também ministros públicos, os que têm autoridade relativamente à milícia... Também são ministros públicos os que têm autoridade para ensinar... o povo... instruindo-o no conhecimento do que é justo ou injusto, a fim de tornar o povo mais capaz de viver em paz e harmonia... Também são ministros públicos aqueles a quem é concedido o poder judicial. Porque em suas sedes de justiça representam a pessoa do soberano e sua sentença é a sentença dele... São também ministros públicos aqueles que receberam do soberano a autorização para proceder à execução de todas as sentenças, para publicar as ordens do soberano, para reprimir tumultos, para prender e encarcerar os malfeitores, e praticar atos tendentes à preservação da paz... Os ministros públicos nomeados para o estrangeiro são aqueles que representam a pessoa do soberano perante os Estados estrangeiros... (HOBBES, 2000, pp. 191, 192, 193 e 194) (negritos nossos).
Observemos: também para Hobbes, o que se divide ou separa não é o poder do Estado, mas a “parte orgânica” do governo ou “administração” do Estado, e se separa em funções delegadas a órgãos cujos agentes são os “ministros públicos”. Notemos, ademais, que Hobbes chama as “funções” também de “cargos” e “poderes”. Assim, também para Hobbes, o princípio é o princípio da separação de funções, e a sua teoria de número de funções (e órgãos) é uma teoria de nove funções separadas:
(a) duas funções de administração geral:
(1) função da administração de todo o domínio; e
(2) função da administração de uma parte do domínio; e
(b) sete funções especiais de administração especial:
(3) função da educação ou do ensino;
(4) função da economia;
(5) função militar;
(6) função judicial;
(7) função de execução de sentenças;
(8) função da segurança pública (preservação da paz e repressão);
-
(9) função de representar o soberano no estrangeiro.
Notemos que, também para Hobbes, sendo elas funções especiais da administração especial, a função da educação está separada da função da economia. Ademais, para Hobbes, a denominada função “executiva” não existe como função separada, nem como função geral, nem como função especial. Isso porque, para Hobbes, a execução é função comum: todos os órgãos executam funções de governo.
Por sua banda, Locke, no trabalho que titulou de “Segundo tratado sobre o governo”, também apresenta uma teoria de número ou quantidade de funções (“poderes”) separadas:
(...) Todo o poder que o governo tem... deve ser exercido mediante leis estabelecidas (...) Poderes Legislativo, Executivo e Federativo (...) Quando não há juiz na Terra, dirige-se o apelo a Deus no céu (...) poder julgador (...) poder de... prerrogativa... (LOCKE, 1991, pp. 224, 249, 270, 273 e 280) (negritos nossos).
Como podemos ler, também para Locke, é o governo do Estado e não o poder do Estado que se separa em funções e respectivos órgãos (“poderes”). Assim, Locke tem uma teoria de número de funções que consiste em cinco funções separadas: (1) função legislativa; (2) função executiva; (3) função federativa; (4) função julgadora; (5) função da prerrogativa.
Por seu turno, Rousseau também elaborou uma teoria de número de “funções do governo”. Num primeiro momento, podemos dizer que é uma teoria de duas funções, pois, no livro O Contrato Social, ao tratar do “governo em Geral”, anuncia duas funções e respectivos órgãos “naturalmente separados”: órgão (“poder”) legislativo e órgão (“poder”) executivo. Rousseau, porém, fala também, como próprios de um “Estado bem constituído”, da função (“posto”, “cargo”) da judicatura e do órgão (“corpo”) do tribunato:
(...) funções do governo (...) Do governo em Geral (...) Uma vez bem estabelecido o poder legislativo, cumpre estabelecer... o poder executivo, porquanto este último... não sendo da essência do outro, dele se encontra naturalmente separado (...) aos postos que requerem bom senso, justiça e integridade, como os cargos de judicatura, porque, num Estado bem constituído, tais qualidades são comuns a todos os cidadãos (...) Esse corpo, que chamarei de tribunato, é o conservador das leis e do poder legislativo... O tribunato não é uma parte constitutiva da Cidade e não deve dispor de nenhuma parcela do poder legislativo nem do executivo, mas é justamente aí que reside sua maior força, pois, nada podendo fazer, tudo pode impedir. É mais sagrado e reverenciado como defensor das leis... O tribunato sabiamente equilibrado é o mais firme apoio de uma boa constituição... O tribunato degenera em tirania quando usurpa o poder executivo, de que é apenas o moderador... (ROUSSEAU, 1996, pp. 71, 117, 133, 141, 147 e 148) (destaques e negritos nossos).
Nessa citação, notamos que, em Rousseau, as funções e órgãos (“poderes”, “corpos”, “cargos”) são “do governo em geral”. Assim, também para Rousseau, o que se separa em funções e órgãos (“poderes”) é o governo em geral e não o poder soberano. Para Rousseau, porém, trata-se do governo popular e do poder soberano do povo ou soberania popular. Para ele, o que se separa em funções e órgãos é o governo popular e não o poder soberano do povo. Para Rousseau, o poder soberano do povo, a soberania popular, é indivisível (ROUSSEAU, 1996, p. 34). Observemos que, com quatro funções (função conservadora e defensora das leis, função defensora do legislativo, função moderadora do executivo e função de apoio à constituição) o tribunato não é parte formal do governo do Estado (“Cidade”), mas participa ativamente dele. Disso, podemos afirmar que o órgão do tribunato é “maior força” que vem da sociedade, da cidadania, do povo. Essa teoria de Rousseau, portanto, é exemplo de uma teoria que inclui a participação ampla, ativa e efetiva da sociedade, da cidadania, do povo, no governo ou gestão do Estado democrático da justiça pensado por ele.
Mais ainda, Rousseau, complementando O Contrato Social, escreve Emílio ou da Educação. A respeito disso, Bárbara Freitag comenta:
O livro de Rousseau Émile ou de l’Éducation, que revolucionaria o pensamento do século XVIII, pode ser considerado o projeto pedagógico que complementa o projeto político de Rousseau, contido no Contrato Social. Uma sociedade igualitária, justa e livre pressupõe indivíduos social, econômica e politicamente iguais... justos, responsáveis e autônomos (FREITAG, 1991, p. 16) (negritos nossos).
Assim, para Rousseau, a educação é também função do governo popular, função essencial e central para: (1) formar, desde crianças, indivíduos e cidadãos justos, iguais e livres, autônomos e independentes, donos da soberania popular e do governo popular; (2) o bom, ético, íntegro e justo governo do Estado democrático da justiça idealizado por ele.
Por seu lado, John Rawls, também fundado no princípio da separação de funções ou da divisão do trabalho, expressa uma teoria de mais de três funções e respectivos órgãos (“poderes)” separados do governo, ou melhor, do “autogoverno” da cidadania, do povo:
(...) o Estado é... navio em alto-mar (...) Presume-se que o governo vise ao bem comum... Os fundamentos do autogoverno não são apenas de ordem prática (...) Deve haver uma divisão do trabalho (...) o legislativo, o executivo e o judiciário (...) o poder supremo de governo não pode caber ao legislativo, [nem ao executivo], nem ao supremo tribunal (...) O tribunal de última instância não é o judiciário, nem o executivo, nem o legislativo, mas sim... a cidadania... o eleitorado como um todo (RAWLS, 1997, pp. 255, 305 e 433; e 2000, pp. 277 e 283) (destaque e negritos nossos).
Podemos dizer, então, também num primeiro momento, que Rawls expressa uma teoria de cinco funções da justiça (justiça como equidade) separadas: (1) função legislativa; (2) função executiva; (3) função judiciária; (4) função suprema de governo; (5) função do tribunal de última instância da cidadania. Rawls, porém, na sua concepção da justiça como equidade, insere também uma ideia de educação. Essa educação deve ser também uma educação para a autonomia e independência ética, jurídica, política, plena, da cidadania:
(...) Assim, a educação moral é a educação para a autonomia... Daí decorre que, ao aceitarmos esses princípios... acabamos assentando uma concepção do justo em bases racionais e razoáveis, que podemos construir por nós mesmos de forma independente... com autonomia racional e plena (RAWLS, 1997, p. 574; e 2000, pp. 116 e 122) (negritos nossos).
Ademais, Rawls pensa numa “democracia constitucional bem-ordenada” (RAWLS, 2004, p. 182), traduzida como uma “democracia deliberativa” (RAWLS, 2004, p. 183), sendo que, para essa democracia constitucional, a educação é também função essencial:
A democracia deliberativa também reconhece que, sem instrução [educação] ampla sobre os aspectos básicos do governo democrático para todos os cidadãos, e sem um público informado a respeito de problemas prementes, decisões políticas e sociais cruciais simplesmente não podem ser tomadas (RAWLS, 2004, p. 184) (destaque e negritos nossos).
Assim, para Rawls, a educação é função essencial para a justiça (justiça como equidade) e para a autonomia e independência plenas da cidadania, do povo, devendo, portanto, ela mesma, a educação, ser constitucional e plenamente autônoma e independente no governo, ou melhor, autogoverno do Estado democrático da justiça idealizado por ele.
Por último, Walzer, na sua obra Esferas da justiça apresenta uma concepção da justiça como um conjunto de esferas distributivas, todas elas separadas, autônomas e independentes. Essa autonomia e independência das esferas da justiça estão, explicitamente, fundamentadas pelo princípio da separação de funções ou princípio da divisão do trabalho:
(...) A justiça distributiva é um conceito amplo... Reunimo-nos também para fazer coisas que são compartilhadas, divididas e trocadas, mas mesmo essa execução – o próprio trabalho – é distribuída entre nós no que se chama a divisão do trabalho (... ) a autonomia das esferas produzirá uma maior repartição de bens sociais... Espalhará mais amplamente o prazer de governar (...) Passa-se o mesmo com a nave do Estado (...) Também aqui há ‘mistérios do Estado’, referindo-se o termo mistério aos conhecimentos secretos... que subjazem a uma profissão ou um ofício, como.. a sabedoria especial... de um artífice especializado em governar... Estes mistérios são conhecidos mais... pela educação (WALZER, 1999, pp. 21, 273, e 303) (negritos nossos).
Com essas ideias, Walzer propõe, em correspondência com as funções (“trabalhos”) do governo e os bens a serem distribuídos, entre outras, as seguintes “esferas da justiça”, todas elas separadas, autônomas e independentes: (1) educação; (2) saúde; (3) segurança; (4) família; (5) previdência social; (6) assistência social; (7) economia; (8) trabalho; (9) cargos públicos; (10) lazer; (11) governo geral (global) da “nave do Estado” (cf. WALZER, 1999, pp. 9-12). Quanto à educação, ressaltando sua autonomia e independência, Walzer leciona:
A justiça tem a ver, não só com os efeitos, mas também com a experiência da educação... O mais importante é que [a educação], as escolas, os professores e as ideias constituem um novo conjunto de bens essenciais, concebidos independentemente de outros bens e exigindo, por sua vez, um conjunto independente de processos distributivos (...) Esta é uma realidade da vida em todas as sociedades complexas; mesmo os professores marxistas aceitam (e os políticos conservadores preocupam-se com) a autonomia das escolas [e da educação e dos educadores]... A crítica social é o resultado dessa autonomia... (WALZER, 1999, pp. 195 e 196) (destaques e negritos nossos).
Assim, afirmando o princípio da separação de funções, os filósofos mencionados (menos Montesquieu) já pensaram, explicita ou implicitamente, em que o que se separa em funções e órgãos (“poderes”) é o governo do Estado e não o poder do Estado, podendo o governo ser separado em mais, bem mais, de três funções e órgãos de governo. Nós, fundados nesse mesmo princípio, estamos apenas trazendo essa ideia para o governo do Estado democrático de direito, que, por sua natureza, sentido, características, finalidades, objetivos e deveres, para satisfazer às necessidades e direitos sociais e individuais dos cidadãos e futuros cidadãos, nas sociedades modernas e complexas em que atua, deve ter mais, bem mais, de três funções e órgãos constitucionalmente separados, autônomos e independentes.