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O princípio da separação de funções e a autonomia e independência constitucionais da educação e outras funções essenciais à Justiça

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6 O princípio da separação de funções e o mito dos três poderes separados, de Montesquieu, na Constituição brasileira de 1988. A contradição interna da Constituição

Pelo Art. 1º da sua Constituição de 1988, vigente, a República Federativa do Brasil se constitui em Estado democrático de direito, Estado que tem, entre outras, as seguintes características: (1) está destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a igualdade, o bem-estar, o desenvolvimento e a justiça social, como valores supremos de uma sociedade justa, fraterna, pluralista, fundada na harmonia social, conforme o preâmbulo, o Art. 3º, I, o Capítulo IV do Título IV, o Art. 170 e o Art. 193, todos da Constituição; (2) tem como fundamentos, entre outros, a soberania popular, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político, de acordo com o Art. 1º, caput, e incisos I ao V, e parágrafo único, da mesma Constituição; (3) tem como princípio a democracia participativa, além da representativa; (4) além de garantidor dos direitos individuais fundamentais dos cidadãos, é, também, garantidor dos direitos sociais fundamentais desses mesmos cidadãos, direitos compreendidos nos artigos 5º e 6º e nos artigos do Título VIII – Da ordem social, todos da CF/88; (5) tem funções-deveres sociais constitucionais, que são também direitos sociais constitucionais de todos, dentre os quais se destaca a educação, junto à saúde, tendo as crianças, adolescentes e jovens como suas prioridades absolutas, para os quais a educação (também junto à saúde, etc.) é fundamental, conforme o Art. 227 e §1º, da CF/88; (6) tem como uma das suas garantias fundamentais o princípio da separação de funções (“poderes”), estampado como cláusula pétrea no art. 60, § 4º, III, da CF/88.

Por outro lado, da leitura da Constituição, podemos dizer que as funções do governo do Estado democrático de direito brasileiro, entre outras, são: (1) educação; (2) saúde; (3) cultura; (4) moradia; (5) segurança pública; (6) previdência social; (7) proteção à maternidade e à infância; (8) assistência social; (9) trabalho, emprego e profissionalização; (10) proteção da família, do idoso, dos índios; (11) proteção às crianças e adolescentes; (12) proteção e promoção do meio ambiente; (13) promoção do desporto; (14) promoção da ciência e tecnologia; (15) economia; (16) legislativa; (17) fiscalizadora do executivo; (18) judiciária; (19) controle constitucional; (20) ministério público; (21) defensoria pública; (22) advocacia pública; (23) Presidência da República ou chefia do Estado.

Em contradição, porém, com o caráter social, pluralista, igualitário, de justiça social do Estado democrático de direito brasileiro, na mesma Constituição, notamos que não há nenhuma função social constitucionalmente autônoma e independente distribuída a um órgão social também constitucionalmente autônomo e independente. Isso porque, sustentado pela conservação do mito dos três poderes separados, de Montesquieu, no Art. 2º, o órgão (“poder”) executivo concentra dezessete ou mais funções, todas as funções sociais (educação, saúde, etc.), a função da advocacia pública, e, inclusive, a função da presidência da República ou chefia do Estado. Ora, essa concentração pelo órgão (“poder”) executivo de dezessete ou mais funções, entre outras coisas, constitui-se: (1) numa afronta ao princípio da separação de funções (“poderes”), positivado no art. 60, § 4º, III, da CF/88, pois esse princípio: (a) rejeita a concentração de funções num órgão, seja do total de funções (concentração absoluta), seja de quase todas as funções (concentração hegemônica e hipertrófica), seja de mais de três funções (concentração hipertrófica); e (b) exige a separação de funções especiais para serem delegadas a órgãos especializados; (2) num “mecanismo” que produz o enfraquecimento da soberania popular, mantendo o povo apenas como “símbolo de legitimação política” (ABRAMOVAY, 2012, p. 2), impedindo-lhe que seja fim e sujeito ativo do exercício do poder ou governo do Estado democrático, que é dele e para ele; (3) em fonte da má gestão do Estado e das políticas públicas, do mau uso e aplicação dos dinheiros e recursos públicos, bem como de inconstitucionalidades, imoralidades, ilegalidades, omissões, patologias, injustiças, violências, corrupções institucionais e sociais, etc.; (4) numa “estratégica” forma de impedir a atuação ampla, forte e constante do Estado democrático de direito a favor da justiça ampla, preventiva e social, da satisfação ampla dos direitos sociais e dos direitos individuais de todos; (5) em fonte de alimentação da doença ou patologia da “judicialização da política” ou “ativismo judicial”, que reduz os cidadãos à condição de simples cidadãos-pedintes, dependentes dos juízes-príncipes para, com “remédios” judiciais, satisfazer seus direitos sociais e individuais; (6) numa estratégica forma de descaracterizar o Estado democrático de direito em proveito dos interesses econômicos privados, dos partidos políticos e dos políticos “profissionais”, que não representam, verdadeiramente, a vontade do povo, dos indivíduos e cidadãos brasileiros.


7 Emenda constitucional ou nova Constituição: possibilidades reais para a necessária e justa autonomia e independência constitucionais da educação e outras funções essenciais à justiça no governo do Estado democrático de direito brasileiro

A Constituição brasileira de 1988 contém, entre outras, duas classes de normas: (1) as não-emendáveis ou irreformáveis; e (2) as emendáveis ou reformáveis. As primeiras constituem suas cláusulas pétreas, não podendo ser reformadas via emenda constitucional. Só o órgão (“poder”) constituinte originário pode tocá-las. As segundas podem ser tocadas pelo órgão (“poder”) constituinte derivado, podendo ser reformadas via emenda constitucional. Por outro lado, reza o §4º do Art. 60 da Constituição brasileira de 1988, em vigor:

§4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa do Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais (negrito nosso).

Considerando isso, afirmamos que a ideia da separação, autonomia e independência constitucionais e plenas da educação e outras funções essenciais à justiça para, formando órgãos, acrescentar-se o número de órgãos (“poderes”) autônomos e independentes e harmônicos entre si no Art. 2º da CF/88, via emenda constitucional, não tende a abolir nenhuma das cláusulas pétreas, expressas ou tácitas, da Constituição, mas, antes, as respeita e fortalece. Para ilustrar, vejamos isso em relação às cláusulas pétreas desse §4º, Art. 60.

Essa ideia não tende a abolir a forma federativa do Estado, mas, antes, reforça a federação, pois, no caso da educação, por exemplo, separada do órgão (“poder”) executivo e formando um órgão (“poder”) separado, autônomo e independente, ele, o órgão (“poder”) educativo, poderá administrar e executar sua função educativa de forma eficaz e eficiente, formando cidadãos que participem da forma federativa do Estado, do seu fortalecimento e aperfeiçoamento. Tampouco tende a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico. Ora, o órgão (“poder”) judiciário e a “função” do ministério público, com suas autonomias e independências, não tendem a abolir o voto popular. Da mesma forma, o órgão educativo (e outros órgãos essências à justiça), com a mesma autonomia e independência, tampouco tenderá a abolir essa cláusula pétrea, pois os agentes do órgão (“poder”) legislativo e do órgão (“poder”) executivo poderão continuar sendo eleitos pelo voto popular. Ademais, com a autonomia e independência constitucionais da educação serão formados cidadãos que façam, via voto, melhores escolhas dos seus representantes no legislativo e no executivo. Também, essa ideia não tende a abolir o princípio da separação de funções, estampado com o nome de “separação de Poderes” no inciso III, § 4º, do art. 60, da CF/88, mas, antes, está fundamentada justificada e legitimada por ele, sendo esse princípio, na verdade, princípio da separação de funções, não de poderes. Por último, essa ideia não tende a abolir os direitos e garantias individuais, já que o direito social à educação, por exemplo, quando satisfeita para todos os cidadãos e futuros cidadãos, permite que eles possam exercer de forma real e frutífera suas liberdades, direitos e garantias individuais, e suas oportunidades, igualdades e diferenças.

Além do mais, mesmo conservando-se o mito dos três poderes separados, de Montesquieu, no Art. 2º, pode-se constitucionalizar, via emenda, a autonomia e independência da educação e outras funções essenciais à justiça baseando-se no princípio da separação das funções essenciais à justiça, à justiça ampla, preventiva e social, não apenas jurisdicional, que o legislador constituinte originário, visionariamente, registrou com a expressão “funções essenciais à justiça” no Capítulo IV do Título IV da CF/88, pois esse princípio é o mesmo princípio da separação de funções (“poderes”) estampado no Art. 60, § 4º, III, da CF/88, traduzido, no caso brasileiro, como princípio da separação de funções essenciais à justiça. Sendo o mesmo princípio, ele não prescreve um número concreto, determinado, específico, limitado e fechado de funções essenciais à justiça. Dessa forma, fundamentado, justificado e legitimado pelo princípio da separação de funções essenciais à justiça, a educação e outras funções essenciais à justiça podem figurar como mais outras funções essenciais à justiça nesse Capítulo IV do Título IV da Constituição, ao lado, mas em outra Seção, das funções do ministério público, da defensoria pública e da advocacia pública, pois, no caso da educação, por exemplo, ela é função essencial para, entre outras coisas elevadas: (1) a realização da justiça ampla, preventiva e social; (2) a formação da cidadania justa e pacífica, dos cidadãos justos e pacíficos uns com os outros; (3) a formação dos agentes dos órgãos do governo: da educação, da saúde, da economia, do legislativo, do judiciário, da advocacia pública, etc., todos eles justos, equitativos, íntegros, dialógicos, cooperativos; (4) a construção de uma sociedade justa e pacífica e de uma cultura de justiça e paz.

Como, porém, já sabemos que o princípio da separação de poderes não existe, e que o que existe é o princípio da separação de funções, teremos, então, em lugar de poderes, funções (ou órgãos) do governo. Daí, para o caso brasileiro, sem tender a abolir as cláusulas pétreas expressas e tácitas, pode-se adotar, via emenda constitucional, por exemplo, o seguinte número de funções (e respectivos órgãos) constitucional e plenamente (técnica, funcional, administrativa, orçamentária, financeiramente, etc.) autônomas e independentes e harmônicas entre si, atuando em interação, diálogo, coordenação, colaboração e cooperação entre elas e com as famílias, a cidadania, a sociedade: (1) função da presidência11 da República; (2) função da coordenação geral do governo; (3) função da educação; (4) função da saúde; (5) função da segurança pública; (6) função da previdência social; (7) função do meio ambiente; (8) função legislativa; (9) função da economia; (10) função da advocacia pública; (11) função do ministério público; (12) função da defensoria pública; (13) função judiciária; (14) função do controle constitucional; (15) função da participação dialógica universal da cidadania, que, embora não fazendo parte formal dele, participa ativa e efetivamente do governo do Estado como um todo e das suas esferas de governo particulares. De todas essas funções, a educação, por sua natureza ética, justa, humana e humanizadora, é a função mais importante, pois ela, entre outras coisas, é também mediadora natural do desempenho ético, justo, íntegro, dialógico, cooperativo, eficaz e eficiente de todas as outras funções e órgãos. Todas essas funções são essenciais à justiça, seja à justiça ampla, preventiva e social, como as funções da educação e saúde, por exemplo, seja à justiça jurisdicional, como as funções do ministério público e do judiciário, também por exemplo.

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Tal número de funções (e órgãos), porém, não é fechado, pois as outras funções: trabalho, cultura, moradia, transferência de renda (“bolsa família”), reabilitação dos presos, etc., podem formar, sozinhas, órgãos autônomos e independentes, ou, com outras, órgãos maiores autônomos e independentes. O ideal é: um órgão, uma função, mas, na prática institucional, pode ser necessário que um órgão execute duas, ou até três, funções de naturezas e ou práticas semelhantes. Os princípios da razoabilidade, da adequação aos fins, da eficácia e eficiência, da moralidade pública, em diálogo e cooperação com o princípio da separação de funções, ajudam a realizar a distribuição justa das funções. O que não deve existir é a concentração absoluta, hegemônica ou hipertrófica de funções por um órgão, como é caso do órgão (“poder”) executivo, que acumula, injustamente, dezessete ou mais funções.

A função da advocacia pública, que alguns denominam de advocacia pública em sentido estrito, é a advocacia pública por excelência, pois, entre outras coisas, (1) é a advocacia do próprio Estado democrático de direito, da soberania popular, do povo, da cidadania, da democracia participativa, da sociedade, das políticas públicas, do interesse, patrimônio e dinheiro públicos, da Constituição, da legalidade, da moralidade e, de ofício e ou como parte da OAB, dos direitos humanos, da justiça e paz sociais, da educação, da saúde, da cultura, da reforma e aperfeiçoamento das instituições: Constituição, leis, Estado, governo, etc.; (2) é essencial para o autêntico controle constitucional e legal preventivo, pois controlar juridicamente significa, essencialmente, prevenir, evitar, no seu nascedouro, que atos ou ações se desviem das normas da justiça e direito (princípios, regras, etc.) preestabelecidas, e não intervir remediativamente depois que essas normas e os direitos ou valores protegidos por elas já foram desrespeitados, feridos, violados; (3) é essencial tanto à justiça preventiva (evitando, mediante controle constitucional e legal interno e prévio, inconstitucionalidades, ilegalidades, imoralidades, desvios, corrupções, etc.) quanto à justiça jurisdicional (defendendo, cobrando e ou recuperando, em processos judiciais, interesses e dinheiros públicos); (4) é apoio essencial para a realização da justiça ampla, preventiva e social, a concretização das políticas públicas e a satisfação ampla dos direitos sociais, respeitando e observando os princípios constitucionais e as leis, prevenindo, evitando, erradicando, com isso, a doença ou patologia da “judicialização da política” ou “ativismo judicial”.

Salvo o agente do órgão da presidência da República e os agentes do órgão legislativo, que devem ser eleitos pelo voto popular, todos os outros agentes dos outros órgãos, pelos princípios da especialidade, profissionalidade, tecnicidade, imparcialidade e apartidariedade que, junto aos princípios da moralidade, legalidade, etc., fundamentam o governo moderno, ético, íntegro e justo do Estado como um todo e das suas esferas de governo particulares, devem ser selecionados via concurso público, devendo ficar separados, autônomos e independentes, livres, das influências e interferências político-partidárias, dos políticos “profissionais” e dos interesses pessoais e empresariais privados.

Supondo, porém, que não seja possível obter-se a separação, autonomia e independência constitucionais da educação e outras funções essenciais à justiça, via emenda constitucional, existe ainda outra possibilidade real: uma nova Constituição. Nada impede a um povo de exercer seu direito de construir uma nova Constituição. Nesse sentido, o Art. 28 da Declaração dos Direitos do Homem de 1793 afirma: “Art. 28. Um povo tem sempre o direito de rever, de reformar e mudar a Constituição. Uma geração não pode sujeitar a suas leis as gerações futuras”. Esse é um princípio que proclama um direito fundamental de todos os povos constitucionais. Nesse caso, o órgão (“poder”) constituinte originário pode constituir mais de quinze órgãos de governo constitucionalmente autônomos e independentes, “muitos”, conforme pensa Dallari, já citado, mas vale repetir: “... É normal e necessário que haja muitos órgãos exercendo o poder... do Estado...” (DALLARI, 2012, p. 214) (negritos nossos).

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Sobre o autor
Misael Alberto Cossio Orihuela

Advogado concursado do Município de Canoas, RS, Brasil; Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica-PUCRS, Brasil; Licenciado em Letras pela UNILASSALE, Canoas, RS, Brasil; Licenciado em Ciencias Administrativas pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Lima-Perú; Mestre em filosofia, área ética e política, pela Pontifícia Universidade Católica-PUCRS, Brasil, com a dissertação: A justiça como equidade de John Rawls: um jusnaturalismo de gênese na educação para a autonomia jurídico-política da cidadania. Nessa dissertação já se defende a ideia da autonomia e independência da educação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ORIHUELA, Misael Alberto Cossio. O princípio da separação de funções e a autonomia e independência constitucionais da educação e outras funções essenciais à Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4086, 8 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31555. Acesso em: 20 abr. 2024.

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