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Encarceramento: cegueira e indiferença da vulnerabilidade e da desigualdade de gênero na Lei de Drogas

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12/03/2015 às 14:36
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Reflete-se sobre a perspectiva de gênero da acusada por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, no transporte a centros prisionais. A vulnerabilidade da mulher é fator relevante?

Resumo:O presente artigo objetiva que a perspectiva de gênero da mulher acusada por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, em especial no transporte a estabelecimentos prisionais, possa constituir-se como fator relevante aos atores da primeira, segunda e terceira fases do processo de criminalização, em consideração às circunstâncias históricas, socioeconômicas e culturais ao redor das mulheres vulneráveis. A análise revela o tratamento que a jurisprudência dos tribunais brasileiros entrega ao previsto no art. 33, caput c/c o art. 40, inciso III, da Lei n.º 11.343, de 23 de agosto de 2006, que, na ausência da perspectiva de gênero, tem promovido o recrudescimento dos encarceramentos femininos, configurando-se, na hipótese, violência estrutural ou institucional. Examina-se, por fim, os termos do Projeto de Lei da Câmara (PLC) n.º 37/2013, que altera a Lei n.º 11.343/2006, apontando a omissão de dispositivo sob a perspectiva de gênero, o que o torna duvidoso quanto à sua eficácia social na prevenção do tráfico, pelo que, para comparação, traz-se à colação legislação estrangeira afirmativa da desigualdade e vulnerabilidade de gênero.

 Palavras-chave: Tráfico de Drogas, Mulheres, Perspectiva de Gênero, Vulnerabilidade. 

Sumário: Introdução. 1. Abordagem histórica, socioeconômica e cultural. 2. Conceito de gênero. 3. Feminização de delitos de drogas. 4. Convenções e Tratados Internacionais de Direitos Humanos. 5. Jurisprudência dos Tribunais. 5.1. Tribunais Superiores. 5.2. Tribunais Estaduais e do DF. 6. Legislação Estrangeira. 6.1. Inglaterra. 6.2. República da Costa Rica. 7. Projeto de Lei da Câmara n.º 37/2013. Conclusão. Referências.


Introdução

A sociedade – não só presente, mas também do futuro – verá a mulher cada vez mais envolvida nas diversas segmentações do crime: roubo, furto, receptação, drogas, etc.

O comportamento criminoso da mulher já não se encaixa nos delitos do sexo feminino – infanticídio, aborto, assassinato passional, entre outros –, tendo havido, no atual cenário histórico, socioeconômico e cultural brasileiro, recrudescimento da taxa de condenações por crimes de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, principalmente pela agravante de transporte no interior de estabelecimento prisional.

Alterar a Lei n.º 11.343/2006 e revisar a jurisprudência nacional, para inclusão da perspectiva de gênero nos crimes do art. 33, caput, c/c o art. 40, inciso III, praticados por mulheres em situação de vulnerabilidade, terá relevância direta na redução dos encarceramentos femininos e, por consequência, evitar-se-á a estigmatização da mulher, da sua família e de seus filhos.

Demonstrar-se-á que não há na Lei n.º 11.343/2006 e nem no Projeto de Lei da Câmara (PLC) n.º 37/2013[2] – promove alterações na atual Lei de Drogas –, quaisquer dispositivos que façam distinção com foco na perspectiva de gênero.

Em outras palavras, a atual Lei de Drogas não têm norma que promova a igualdade substancial entre homem e mulher, com o escopo de conferir a esta tratamento diferenciado, quando em precedente situação de vulnerabilidade.

É o caso da condenação pelo art. 33, caput, c/c o art. 40, inciso III, da Lei n.º 11.343/2006, os quais, em seus preceitos primários, não preveem as circunstâncias históricas, socioeconômicas e culturais que levam a mulher – esposa, companheira, namorada, avó, mãe, filha, tia, sobrinha, prima, ou mesmo, em alguns casos, sem vínculo com o preso – a praticar a conduta de tráfico ilícito de drogas, com a qualificadora de transporte no interior de estabelecimento prisional.

Não bastasse a ausência da perspectiva de gênero na Lei n.º 11.343/2006, a demonstrar que a Lei de Drogas não está em conformidade (a) com a Constituição Federal (arts. 1º, III, 3º, I e 5º, I), (b) com as Convenções e Tratados Internacionais de Direitos Humanos, e (c) com o cenário histórico, socioeconômico e cultural brasileiro; tem-se, também, que os atores judiciários da segunda e da terceira fases do processo de criminalização (Magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública) cegam-se, no processo penal, quanto à presença da vulnerabilidade da mulher.

Isto porque, nos crimes de tráfico ilícito de drogas, com a agravante de transporte da droga no interior de estabelecimento prisional, os atores judiciários referidos acreditam não haver parâmetro legal de aplicação para isenção da pena por ausência de culpabilidade (CPP, art. 386, VI).

O presente artigo tem como pretensão demonstrar que o reconhecimento da precedente vulnerabilidade da mulher nos crimes de tráfico ilícito de drogas, com a qualificadora de transporte no interior de estabelecimentos prisionais, contribuíra para que a Lei de Drogas e as decisões judiciais integrem-se congruentemente à igualdade substancial já proclamada pelo Supremo Tribunal Federal, em favor das mulheres, na ADC 19 e na ADI 4429.

A omissão do Estado Brasileiro quanto à inclusão da perspectiva de gênero na Lei n.º 11.343/2006, arts. 33, caput, c/c 40, III, viola os direitos humanos da mulher, constituindo-se como violência estrutural[3] ou institucional.

CASTILHO (2008:101-123)[4] observa que:

É comum a utilização do termo “gênero” como sinônimo de “mulheres”. Acredita-se que a simples referência ou preocupação com as mulheres em determinado contexto basta para implementar a perspectiva de gênero. É importante, em qualquer estudo social, tornar visíveis as mulheres, mas isso, por si só, não configura a visão de gênero. A Criminologia Crítica feminista mostra como o sistema penal é sexista, como reproduz a desigualdade entre homens e mulheres, mesmo quando, aparentemente, suas regras estão formalmente destinadas a proteger as mulheres.

A partir da abordagem das circunstâncias históricas, socioeconômicas e culturais, que estão ao redor da mulher, alterca-se a necessidade de as análises magistrais, ministeriais e as das defensorias examinarem, sob a perspectiva de gênero, a presença ou não da precedente vulnerabilidade na Lei n.º 11.343/2006.

O artigo não objetiva o consenso de que todo e qualquer crime de tráfico ilícito de drogas, quando praticado por mulher, inviabilize a custódia.

É óbvio que há situações em que a custódia é o remédio para a proteção da ordem pública e para o interesse da justiça.

Vislumbra-se, contudo, que a peculiar situação de mulheres em precedente situação de vulnerabilidade, primárias, com bons antecedentes, não dedicadas às atividades criminosas e não integrantes de organização criminosa, quando, pela primeira vez, praticarem o crime do art. 33, caput, c/c o art. 40, III, da Lei n.º 11.343/2006, possam obter o direito ao exame – na denúncia e na sentença, expressamente declarados (CF, art. 93, IX) – de todas as circunstâncias que estão em seu entorno, para, se o caso: (a) afastar-se a culpabilidade (CPP, art. 386, VI), (b) reconhecer-se a coação irresistível (CPP, art. 386, VI c/c CP, art. 22), ou, em último caso, (c) serem condenadas.

Propõe-se o artigo em mais sete tópicos e quatro subtópicos, divididos da seguinte forma: 1. Abordagem histórica, socioeconômica e cultural; 2. Conceito de gênero; 3. Feminização de delitos de drogas; 4. Convenções e Tratados Internacionais de Direitos Humanos; 5. Jurisprudência dos Tribunais, 5.1. Tribunais Superiores, 5.2. Tribunais Estaduais e o DF; 6. Legislação Estrangeira, 6.1. Inglaterra, 6.2. República da Costa Rica; 7. Projeto de Lei da Câmara n.º 37/2013.


1. Abordagem histórica, socioeconômica e cultural.           

A história, para SOARES (1978:246)[5], mostra que as desigualdades jurídico-sociais tiveram início com o surgimento das propriedades privadas no final do período Homérico (séc. XII a VII a.C.) e, por consequência, os homens assumiram relevantes papéis nas sociedades (regime patriarcal), inclusive, o monopólio da política.

A educação feminina no regime patriarcal era baseada na privação: confinamento ao lar, severas prescrições, e desfavorecimento em relação ao homem, tudo controlado pelo mecanismo da violência manifestado física, psicológica e simbolicamente (BOURDIEU. Apud Küher, 2002:24)[6].

No século VIII a.C., Homero (HOMERO, 2002:117)[7] disse: (...) cada um dita a lei aos filhos e às esposas (...).

No plano religioso, o advento do cristianismo não proporcionou mudanças na condição da mulher, ratificando a ideia desta como inferior, submissa e devedora de obediência ao marido[8][9].

Percebe-se, então, que durante séculos a mulher esteve relegada às funções do lar e aos prazeres e desejos masculinos, sendo submetida a todo tipo de constrangimento, submissão, opressão e monopólio.

O capitalismo e a formação de uma sociedade de consumo fomentaram a opressão, a coação e o determinismo biológico[10] (ANDRADE, 2011:41-42) sobre a mulher, contribuindo, este último, para a hierarquização das diferenças de gênero e, por consequência, para a inferiorização das mulheres.

Impera, ainda hoje, o pensamento machista.

A propósito, quantas mulheres continuam a ser valorizadas mais pelo aspecto físico (mulher maça, mulher melancia, mulher jaca, mulher filé, etc.) do que pela (a) competência, (b) profissionalidade, (c) obras da inteligência, (d) riqueza da sua sensibilidade e, em última análise, pela própria dignidade do seu ser!

Infelizmente, a mulher é herdeira de uma história com imensos condicionamentos de violência estrutural ou institucional que, nas diversas épocas, tornaram o seu caminho difícil: reduzida à escravidão, deturpada nas suas prerrogativas, não raro marginalizada e ignorada na sua dignidade.

Na contemporaneidade, mesmo com o desenvolvimento jurídico, socioeconômico e cultural da humanidade, as antigas circunstâncias que se antepunham à mulher continuam presentes: patriarcado, inferioridade da mulher, dever de obediência, violência física, psíquica, moral, patrimonial, econômica, as quais denotam a dominação masculina e a desigualdade entre homens e mulheres.

Afora as exceções, as circunstâncias ao redor da mulher impediram-na de ser profundamente ela mesma.

Como epicentro da família, cuja proteção encontra-se no art. 226 da Constituição Federal, não há se admitir que a mulher vulnerável seja relegada ao jugo do patriarcado, da dominação masculina e da omissão do Estado, porque são violências que empobrecem a sociedade brasileira, mundial e a própria humanidade inteira das riquezas que, naturalmente, estão internalizadas na mulher.

Urge, no atual estágio da realidade jurídica, socioeconômica e cultural brasileira, assegurar – onde quer que seja e nos moldes que afirmado pela Constituição Federal, pelas Convenções e Tratados Internacionais de Direitos Humanos da Mulher e pelo microssistema da Lei Maria da Penha – a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a justeza, a solidariedade e a igualdade material.

Cuida-se de um ato de justiça e de uma necessidade social incluir a perspectiva de gênero na Lei n.º 11.343/2006, mormente nos casos – que são muitos – de crime do art. 33, caput, c/c o art. 40, III, praticados por mulheres em precedente situação de risco (vulnerabilidade).

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Em tal grau, dado que as normas penais, processuais penais e penitenciárias estão, em sua essência e na extensa maioria, formuladas para a prática de crimes tipicamente masculinos, o Estado Brasileiro e os atores das três fases do processo de criminalização têm o ônus de atualizarem esses sistemas, sob a perspectiva de gênero.

Neste terceiro milênio, não é cabível às instituições Legislativas, Judiciárias, Ministério Público e Defensoria Pública permanecerem passíveis e resignadas diante do fenômeno tratado neste artigo, qual seja, a cegueira e indiferença da vulnerabilidade e desigualdade de gênero no art. 33, caput, c/c o art. 40, III, da Lei de Drogas, os quais têm causado enorme recrudescimento de encarceramento de mulheres, cujas circunstâncias judiciais (CP, art. 59) são todas favoráveis.

É hora de condenar vigorosamente o explorador da vulnerabilidade da mulher (CP, art. 22), o qual a recruta para o crime de tráfico ilícito de drogas para o interior de estabelecimento prisional.

Assim não se podendo concluir, é hora, então, de dar vida a instrumentos legislativos e judiciários – inclusive de forma concreta nas análises magistrais e ministeriais – de defesa contra quaisquer tipos de violência contra a mulher, inclusive estrutural ou institucional.

Neste século XXI, não há mais se admitir a difusa cultura hedonista e mercantilista que, tomadas sob o aspecto da maldade, promovem o prazer pela violência e sistemática exploração da mulher, levando-as, entre outros fatores socioeconômicos, a cair no circuito do tráfico ilícito de drogas.

Para o Ministro Ricardo Lewandowski[11] as mulheres sofrem permanente coação moral e física que inibe a sua livre manifestação da vontade.

A força das sedimentações culturais que, ao longo dos séculos, plasmaram mentalidades e instituições, certamente, não permite atribuir precisas responsabilidades.

Entretanto, resulta que as desigualdades devem ser enfrentadas criativamente por meio do referencial do debate jurídico-científico, na espécie e quanto ao tema, sob a ótica da perspectiva de gênero na Lei n.º 11.343/2006.

Espera-se, então – ao menos enquanto não houver alteração legislativa da Lei n.º 11.343/2006, inclusiva da perspectiva de gênero –, que os atores judiciários das segundas e terceiras fases do processo de criminalização, muito mais que numa simples atividade de subsunção do fato à norma, atualizem o conteúdo significativo do art. 33, caput, c/c o art. 40, inciso III, da Lei de Drogas, a fim de associá-los aos princípios fundamentais que alicerçam a ordem jurídica e democrática, entre os quais os da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I) e da igualdade substancial (CF, art. 5º, I).

Ver além e estabelecer novos horizontes de discussão, da mesma forma como se fez na ADC 19 e na ADI 4424 em relação à Lei Maria da Penha, permitirá discutir se a vulnerabilidade e a igualdade material, sob a perspectiva de gênero, devem compor o espaço de conformação do art. 33, caput, c/c o art. 40, III, da Lei n.º 11.343/2006, quando praticado por mulheres.


2. Conceito de gênero

A distribuição de poder entre homens e mulheres, a partir da desigualdade de gênero, envolve o exame de como se constituem essas relações, nos diversos estratos socioeconômicos e segmentos populacionais distintos.

ROWBOTHAM (2004:53)[12] afirma que o conceito de gênero viabiliza entender a forma pela qual o poder, nas relações entre homens e mulheres, é definido, estruturado e exercido, conclamando, contudo, para a necessidade de não se perder de vista outros fatores sociais que subordinam a mulher.

Segundo a socióloga inglesa da Universidade de Manchester, o conceito de gênero não deve congelar nosso olhar, tornando difícil enxergar aqueles aspectos da subordinação das mulheres afetadas por outros fatores sociais (ROWBOTHAM, 2004:53)[13].

No sentido de se promover constantemente redefinições para o conceito de gênero, ROWBOTHAM (2004:54)[14] anota:

...é importante perceber o gênero não como um conceito fixo, mas como sendo constantemente redefinido e moldado pelos indivíduos em situações históricas particulares nas quais eles se encontram.

CASTILHO (2006)[15] informa não haver definição da palavra gênero, demonstrando tratar-se – como o fez Sheila Rowbotham –, de termo que está em constante redefinição (construção) a despender das circunstâncias históricas, socioeconômicas e culturais, visto que é um modo de pensar que viabiliza a mudança nas relações sociais e, por consequência, nas relações de poder.

Confiram-se as anotações doutrinárias da Penalista e Criminologista da Universidade de Brasília:

       A palavra gênero começa a ser utilizada nos anos 80 do século XX, pelas feministas americanas e inglesas, para explicar a desigualdade entre homens e mulheres concretizada em discriminação e opressão das mulheres. Nessa época, as investigações sobre a condição social das mulheres já apontavam uma forte desigualdade entre homens e mulheres, que tendia a aumentar conforme a classe social, raça, etnia e outras condições de vida. A desigualdade abarcava a esfera pública e privada. Na primeira, era visível nos salários menores do que o dos homens em serviços iguais e na pequena participação política. Na esfera privada, se evidenciava pela dupla moral sexual e na delegação de papéis domésticos.

A desigualdade era e ainda é justificada, por setores conservadores religiosos, científicos e políticos, pela diferença biológica entre homens e mulheres. Muitos creem que as diferenças sociais são essenciais, naturais e inevitáveis.

O sexo é uma categoria biológica insuficiente para explicar os papéis sociais atribuídos ao homem e à mulher. “Gênero” veio como uma categoria de análise das ciências sociais para questionar a suposta essencialidade da diferença dos sexos, a ideia de que mulheres são passivas, emocionais e frágeis; homens são ativos, racionais e fortes. Na perspectiva de gênero, essas características são produto de uma situação histórico-cultural e política; as diferenças são produto de uma construção social. Portanto, não existe naturalmente o gênero masculino e feminino.

Gênero é uma categoria relacional do feminino e do masculino. Considera as diferenças biológicas entre os sexos, reconhece a desigualdade, mas não admite como justificativa para a violência, para a exclusão e para a desigualdade de oportunidades no trabalho, na educação e na política. É um modo de pensar que viabiliza a mudança nas relações sociais e, por consequência, nas relações de poder. É um instrumento para entender as relações sociais e, particularmente, as relações sociais entre mulheres e homens.

Gênero tem a ver com feminismo, mas não é igual a mulher ou a feminismo. As relações de gênero podem ser estudadas a partir da identidade feminina e masculina. Gênero significa relações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas relações. O feminismo vai além ao mostrar que essas relações são de poder e que produzem injustiça.

A expressão gênero vem, paulatinamente, se incorporando nos instrumentos normativos internacionais e na legislação dos países. No Brasil, foi introduzida na Convenção de Belém do Pará (Decreto n. 1.973, de 01/08/1996), para esclarecer o conceito de violência contra a mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero. Não há definição de gênero, mas do contexto se infere o conceito de relação de poder. Aparece também no Estatuto de Roma (Decreto n. 4.388, de 25/09/2002), com um significado mais restrito.

O Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma, incorpora (a) uma definição de gênero, (b) o princípio da não-discriminação baseada em gênero, (c) normas de procedimento e prova, proteção e participação em relação a vítimas e testemunhas de crimes de violência sexual, e (d) criminaliza em nível internacional a violência sexual e de gênero.

O primeiro ponto notável é a introdução do conceito gênero em um instrumento legal internacional. De acordo com o art. 7º, item 3, “entende-se que o termo “gênero” abrange os sexos masculino e feminino, dentro do contexto da sociedade, não lhe devendo ser atribuído qualquer outro significado”. É uma redação fruto de negociação intensa com o Vaticano e os países islâmicos, que reduzem o gênero a uma questão biológica. A expressão “dentro do contexto da sociedade” dá-lhe a perspectiva cultural necessária, embora de forma imprecisa e insuficiente.

Com a criação, no Brasil, da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, em 2003, fortaleceu-se a perspectiva de gênero em todas as políticas públicas.

O conceito de gênero segue em construção. A identidade sexual, antes dicotômica (masculino-feminino), ampliou-se para abranger homossexuais, lésbicas, transexuais, travestis etc., que não se identificam como homens ou mulheres. Hoje se sabe que o suposto sexo biológico e a identidade subjetiva nem sempre coincidem.

Uma das versões mais atuais do conceito de gênero, de Marta Lamas, alude a uma rede de inter-relações e interações sociais que se constroem a partir da divisão simbólica dos sexos. Lamas nega qualquer base biológica e mesmo cultural à noção de gênero. A seu ver, é uma lógica de pensamento, emoções e representação da subjetividade íntima das pessoas[16].             

No atual contexto da sociedade brasileira – a despeito das conquistas femininas em vários espaços dos segmentos sociais –, não há se negar que, nos estratos socioeconômicos mais baixos, a mulher continua, ainda, relegada na divisão social do trabalho, restringindo-se ao âmbito das privacidades familiar e amorosa, imunes e opacos às intervenções e às visibilidades externas, sendo vítima de todo e qualquer tipo de violência de gênero (TEIXEIRA:2010)[17].

A respeito da violência baseada no gênero, PIOVESAN (2009:229)[18] ensina:

...a violência contra a mulher constitui ofensa à dignidade humana, sendo manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens. (...) Vale dizer, a violência baseada no gênero ocorre quando um ato é dirigido contra a mulher porque é mulher, ou quando atos afetam as mulheres de forma desproporcional.

Hodiernamente, a violência sobre a mulher de estratos socioeconômicos vulneráveis é tão desprezível que ela serve de objeto –coisificação[19] (MELHEM, 2013:2) – para vender e transportar todo tipo de produto, inclusive, e o que é pior, drogas ilícitas dentro de seu próprio corpo.

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Sobre o autor
Ronio Neves da Cunha Junior

Servidor do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Aluno Especial da Pós-Graduação em Mestrado na Universidade de Brasília - UNB (2014). Ex-aluno da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (ago 2008 a out 2009).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA JUNIOR, Ronio Neves. Encarceramento: cegueira e indiferença da vulnerabilidade e da desigualdade de gênero na Lei de Drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4271, 12 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31986. Acesso em: 18 abr. 2024.

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