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Encarceramento: cegueira e indiferença da vulnerabilidade e da desigualdade de gênero na Lei de Drogas

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12/03/2015 às 14:36
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3. Feminização de delito de drogas

GIACOMELLO (2013:2-3)[20] consigna que as mulheres, na escala das organizações criminosas de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, ocupam posições baixas e se encontram em situação de vulnerabilidade.

Segundo a Doutora, Investigadora da Universidad Nacional Autónoma de México:

       São apresentadas principalmente como cultivadoras, coletoras, vendedoras de varejo, correios humanos (o que é geralmente conhecido como 'mulas' ou 'burreras', entre outros nomes) e introdutoras de drogas em centros de reclusão.

       (…).

….muitas delas são mães solteiras que entram no negócio das drogas somente para poder alimentar seus filhos.

       (…).

       Na América Latina coexistem processos mistos a respeito do papel das mulheres: por um lado, estas têm maior acesso à educação e uma maior presença nos espaços públicos, mas também são as principais protagonistas da pobreza e da pobreza extrema. Muitas vezes isto se combina com a maternidade e a responsabilidade tradicional das mulheres para com 'os outros'. O número de famílias monoparentais chefiadas por mulheres e de gravidezes adolescentes entre meninas dos níveis socioeconômicos mais baixos está aumentando, o que implica um maior número de mulheres em situação de pobreza e responsáveis únicas de seus filhos.

       (…).

       Estas mulheres encontram normalmente emprego nas atividades da economia informal muito mal remuneradas (atividades de limpeza) e desempenham uma dupla ou tripla jornada laboral. As redes de tráfico identificam muito bem as mulheres que relutam e as envolvem aproveitando sua vulnerabilidade e, por outro lado, há a falta de mecanismos preventivos e de proteção por parte do Estado.

       (…).

       Frente a isto, se faz necessário adaptar a perspectiva de gênero para analisar espaços como o narcotráfico, o que permite visibilizar como homens e mulheres se envolvem em atividades delituosas relacionadas com drogas de maneira diferente, a partir de diversos fatores, entre eles sua identidade de gênero e os papéis que a sociedade os atribuem[21]. (tradução nossa)

Em mesa redonda organizada pela Comisión Interamericana para el Control del Abuso de Drogas - CICAD (2014:34-38)[22], distribuiu-se questionário a 34 (trinta e quatro) Estados Membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), entre eles o Brasil, obtendo deste país, no que toca à posição da mulher no tráfico ilícito de drogas e à situação de maior relevo que as leva ao encarceramento, a seguinte resposta:

Tem havido um aumento do número de mulheres condenadas por narcotráfico. A CIDH assinala que, do total de 549.577 pessoas privadas da liberdade: 30.039 são mulheres (6.6%). Tanto para os homens (24.8%) como para as mulheres (53.9%), o tráfico de drogas (não internacional) tem sido o principal motivo de encarceramento, ainda que para as mulheres, a proporção em comparação com outros tipos de delito é muito maior.

Na maioria dos casos estão envolvidas com atividades conexas, ocupando um posto marginal na estrutura do tráfico de drogas. A Secretaria de Políticas para as Mulheres e a Secretaria de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres indicam que as mulheres tendem a ter menos recursos para negociar sua liberdade e não serem presas.

Uma situação comum é quando as mulheres tratam de introduzir drogas nos estabelecimentos prisionais para seus cônjuges, companheiros, membros de sua família e, neste momento, são presas. Os contextos que facilitam a participação das mulheres no narcotráfico refletem a falta de oportunidades que há no mercado de trabalho formal, a atração de pertencer a uma rede poderosa, o desejo por adquirir status, poder numa cultura masculina e a sólida presença do narcotráfico nas comunidades economicamente instáveis. (tradução nossa)

O perfil da mulher presidiária no Brasil é o da mulher com filho, sem estudo formal ou com pouco estudo na escola elementar, pertencente à camada financeiramente vulnerável e hipossuficiente e que, na época do crime, encontrava-se desempregada ou subempregada.

BIANCHINI e BARROSO (2012)[23] dizem que, em geral, as mulheres criminosas são negras ou pardas (20.756 delas, enquanto apenas 9.318 são brancas – MACEDO, 2010 –, num universo em que a população negra ou parda é de 91 e a branca de 92 milhões de pessoas, no Brasil – SEADE, 2011:1).

Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN[24], datado de 2013, o encarceramento de mulheres cresceu 256% nos últimos 12 anos.

Atualmente, 7% de todos os presos no Brasil são mulheres, o que corresponde a algo em torno de 36 mil detentas[25].

Esses dados demonstram que a Lei n.º 11.343/2006, nos seus 8 anos de vigência, elevou substancialmente o número de mulheres presas, em boa parte dos casos condenadas pelo art. 33, caput, c/c o art. 40, III, dada a relação afetiva entre a mulher e o homem que a atrai para o tráfico ilícito de entorpecentes ou por problemas socioeconômicos.

ROSA (2011)[26], em questionamento que faz sob o título: “Levar drogas para parente no estabelecimento penal é tráfico?”, anota que aquilo que pode parecer só mais uma modalidade de tráfico, quem sabe, pode ser o sintoma de uma conduta, que está sendo mal avaliada por quem é incapaz de perceber o seu entorno, ou seja, no fundo, muitas destas mulheres não possuem escolha.

Não bastasse a ablepsia do legislador, a cegueira da desigualdade de gênero ilude – de quem mais se espera Justiça – os atores judiciários do processo de criminalização secundária e terciária, os quais não percebem as circunstâncias históricas, socioeconômicas e culturais que estão entorno da conduta de tráfico ilícito de entorpecentes da mulher (mormente em presídio).

Quais seriam, então, esses entornos?

Sem esgotar as possibilidades, tem-se que a mulher ao traficar (a) está, quase sempre, vinculada em família com pessoas que traficam; (b) tem o sentimento interno de consolo exposto por ter feito isso por amor ao marido, companheiro, namorado, filho, neto, sobrinho, etc. [especialmente no tráfico em presídio]; (c) é seduzida, ludibriada, oprimida e/ou coagida [especialmente no tráfico em presídio]; (d) somente denota o conceito social, biologizado (BOURDIEU Apud KÜHER, 2002:9)[27], de que lhe cabem apenas tarefas de cuidado, de zelo, de compaixão, de fraternidade pelos entes familiares e/ou queridos [especialmente no tráfico em presídio]; (e) está desempregada ou em subemprego; (f) tem filhos menores que são dependentes psicológica e economicamente; (g) tem pessoas maiores incapazes dependentes de cuidado físico, psicológico e econômico; e (i) não alcançam a capacidade própria de determinação diante do fato [especialmente no tráfico em presídio].

Esses fatores – tomados a título de exemplo – clarificam o quanto a Lei n.º 11.343/2006 e boa parte dos atores do processo de criminalização, nas três fases, não notam a vulnerabilidade e a desigualdade de gênero, que reforçam o papel dominado daquela que está instintiva e culturalmente subalterna, submissa, obediente e humilhada, principalmente no cenário da Lei de Drogas.

BOURDIEU (Apud KÜHER, 2002:51)[28] leciona que os atos de conhecimento e de reconhecimento práticos da fronteira mágica entre dominantes e dominados, que a magia do poder simbólico desencadeia, e pelos quais os dominados contribuem, muitas vezes à sua revelia, ou até contra sua vontade, para sua própria dominação, aceitando tacitamente os limites impostos, assumem muitas vezes a forma de emoções corporais – vergonha, humilhação, timidez, ansiedade, culpa – ou de paixões e de sentimentos – amor, admiração, respeito –, emoções que se mostram ainda mais dolorosas, por vezes por se traírem em manifestações visíveis, como o enrubescer, o gaguejar, o desajeitamento, o tremor, a cólera ou a raiva onipotente, e outras tantas maneiras de se submeter, mesmo de má vontade ou até contra a vontade, ao juízo dominante, ou outras tantas maneiras de vivenciar, não raro com conflito interno e clivagem do ego, a cumplicidade subterrânea que um corpo que se subtrai às diretivas da consciência e da vontade estabelece com as censuras inerentes às estruturas sociais.

Os mais cépticos, esmagadora maioria, entendem, contudo, inexistir fundamento jurídico para olvidar a prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, mormente no transporte de drogas para estabelecimentos prisionais.

Mister, porém, como o fez o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande Sul[29], que estando presente a vulnerabilidade geradora de fundada dúvida quanto à culpabilidade da mulher deve-se aplicar o art. 386, inciso VI, do CPP, até mesmo em homenagem ao princípio do favor rei.

Não se há de negar que a enorme maioria das transportadoras de drogas para presos é constituída de mulheres advindas de estratos socioeconômicos vulneráveis e ligadas emocionalmente aos seus entes queridos.

Vislumbra-se, nesse prisma, não só o desemprego, a pobreza – até mesmo a miséria –, mas também a fidelidade do amor, do cuidado feminino e a subordinação aos presos.

Tais aspectos conduzem, neste ponto, à adequada interrogação sobre a dignidade da mulher e sua vocação.

Ao se dizer que a mulher é aquela que ama para, então, receber amor, não se está a entender só, ou antes de tudo, a relação esponsal específica do matrimônio, senão algo mais universal, baseado no fato, em si mesmo, do ser feminino no conjunto das relações interpessoais, que nas formas mais diversas estruturam a convivência familiar, comunitária, social e a colaboração entre as pessoas: homens e mulheres.

Em outras palavras, sob o foco de um horizonte mais ampliado, a mulher representa um valor particular como pessoa humana e, ao mesmo tempo, como pessoa concreta, pelo só fato de que a violência baseada no gênero ocorre quando um ato é dirigido contra a mulher porque é mulher (PIOVESAN, 2009:229)[30], a demandar, por essa razão, atuação concreta do Estado no sentido de afirmar a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a justeza e a igualdade material entre homens e mulheres.

Por óbvio, se assim não fosse, não se teria na própria constituição federal e legislação ordinária parâmetros de distinção entre homens e mulheres, os quais concretizam a igualdade material retroafirmada –, como por exemplo, só para citar alguns, os arts. 7º, XX, 40, §1º, III, “a” e “b”, 143, §2º, 201, §7°, I e II, e 10, §, 1° (ADCT), todos da CF/1988 e, também, a própria Lei nº 11.340/2006.

Não se olvida, ainda, que muitas das mulheres que se envolvem com o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (especialmente no transporte a estabelecimentos prisionais) são mães, pobres e responsáveis por pessoas que delas dependem econômica, psicológica e até fisicamente, capazes ou incapazes.

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A necessidade de cuidar e sustentar as pessoas do núcleo familiar e/ou prestar solidariedade aos parceiros presos, por certo, supera o medo que essas mulheres têm de acabar na prisão ao tentarem introduzir drogas em estabelecimentos prisionais.

Por isso mesmo, diante da natureza velada ou face oculta da violência – direta ou indireta, estrutural ou institucional –, contra a mulher de estrato socioeconômico vulnerável, a expor a risco ela própria, a sua família e a paz social, reclama-se dos tribunais nacionais conferir efetiva hermenêutica constitucional e de direitos humanos da mulher, sob a perspectiva de gênero, ao art. 33, caput, c/c o art. 40, III, da Lei n.º 11.343/2006.

CHAVARRIA (2008:43-44)[31], ao examinar as condicionantes de vulnerabilidade da mulher condenada e privada da liberdade por força da Lei Drogas do Panamá, assentou:

No entanto, estas representações limitam a compreensão do fenômeno das mulheres dentro do tráfico de drogas e o polarizam. Por um lado se identifica estas mulheres como mães desinteressadas, despreocupadas pelos cuidados de seus filhos, ingênuas e débeis por se deixarem manipular por um homem que as engana e as utiliza para seus negócios ilícitos e onde elas não têm poder de decisão. Em outro extremo estão as mulheres identificadas como problemáticas, aquelas que em razão de seu vício não logram materializar as oportunidades que a sociedade lhes oferece, mães más, prostitutas, ladras e responsáveis por seu próprio destino. Ambas posturas complicam a compreensão integral do fenômeno e delimitam as soluções do problema ao não integrarem em suas análises os diferentes fatores que intervém em cada caso e como é necessário compreender a interação entre aspectos estruturais e situações particulares.

O aumento da participação das mulheres neste tipo de atividade é uma situação que se inscreve em um contexto onde a desigualdade de gênero é um fenômeno de dimensões estruturais, e que se tornou invisível ao longo da história.

Somente tomando em conta que a desigualdade de gênero tem dimensões estruturais que atravessam todas as situações sociais será possível criar estratégias que permitam resolver os problemas com sucesso.

Para Teresa Incháustegui (2002) ao considerar o enfoque de gênero na criação de soluções para um problema de interesse social e público facilita em se reconhecer as diferenças entre os sexos, como base para a eleição e formulação de políticas públicas, assim como nos procedimentos de evolução e reprogramação de políticas sociais.

No contexto latinoamericano, estas recentes manifestações de criminalidade feminina requerem o exame das completas condições sociopolíticas da região, exacerbadas pelas crises fiscais e a crescente deterioração econômica dos últimos anos, que tem aumentado os níveis de pobreza e o crescente desenvolvimento da chamada economia informal, controlada em grande parte pelo setor feminino. A seu turno, há que se destacar o espetacular desenvolvimento da agroindústria das drogas que como empresas transnacionais buscam recursos básicos de todo tipo, por isso de maneira informal, devido a ilegalidade de seu funcionamento (del Olmo: 2000)[32]. (tradução nossa)

A falta de leis e políticas adequadas para abordar os problemas das mulheres encarceradas, bem assim o papel dessas na sociedade e o estigma que sofrem, foi objeto de estudo da Criminologista Chilena GARCÍA (2007:1)[33], que, em esclarecedores linhas, anota:

A situação das prisões femininas é dramática. Não só porque as mulheres detidas sofrem o estigma de romper com o papel de esposas submissas e mães presentes que lhes foi atribuído pela sociedade, mas também pela falta de leis e políticas adequadas para abordar problemas como os de mães lactantes e dos filhos de mulheres encarceradas. Isso se soma a outras questões, como a violência sexual e a superlotação resultado do aumento da população carcerária feminina, geralmente por delitos relacionados com o microtráfico de drogas. Este artigo argumenta que, para resolver estes graves problemas, é necessário incluir um enfoque de gênero nas políticas penais e penitenciárias[34].

Indaga-se: na criminalização secundária, isto é, na definição da conduta punível em concreto e de quem é criminoso, tratando-se de tráfico [ilícito de drogas praticado por] mulheres [em situação de vulnerabilidade], os juízes examinam a prova e sentenciam desde uma perspectiva de gênero? Se a resposta for positiva significa que esses profissionais de direito estão atentos à desigualdade material entre homens e mulheres, estão conscientes de sua causa e, portanto, cuidam para que o processo penal não reforce a vitimização delas ou, em outras palavras, não reproduza a violência de gênero contra as mulheres. Se a resposta for negativa significa que o processo penal reproduz a violência contra as mulheres (CASTILHO, 2008:103)[35].

Percebe-se, então, que não se pode perder de vista os cenários históricos, socioeconômicos e culturais que criaram condições propícias para as desigualdades de gênero, ainda hoje vigentes, que necessitam ser eliminados do contexto social ligados às mulheres vulneráveis.

Essas circunstâncias trazem à tona o atualíssimo questionamento e resposta, que, à época do julgamento da ADI 4424, o Ministro Ricardo Lewandowski[36] fez para, entre outros fundamentos, solucionar a ação direta de inconstitucionalidade, confira-se:

O que acontece com a mulher, sobretudo a mulher fragilizada, que se situa nos extratos inferiores da camada social? Ela está exatamente nesta condição: sob permanente temor de sofrer um dano pessoal, ou que os seus filhos ou familiares sofram um dano, ou que o seu patrimônio, de certa maneira, sofra também algum atentado.

Não se duvida, pois – na conformidade das palavras do Ministro Lewandowski –, que é essa a fotografia da realidade socioeconômica e cultural brasileira, de modo que cabe aos atores das três fases do processo de criminalização tomarem providências para proteger a mulher em situação de vulnerabilidade, quando do tráfico ilícito de drogas com a agravante de transporte no interior de estabelecimento prisional.

A violência de gênero contra mulher, no âmbito do art. 33, caput, c/c o art. 40, III, da Lei n.º 11.343/2006, é epidemiológica, resulta da dominação masculina, de problemas socioeconômicos e da falta de políticas públicas adequadas, os quais implicam o recrudescido do número de mulheres encarceradas por esse delito.

São determinantes para a aceitação social dessa violência as relações hierarquizadas, o machismo e a omissão Estatal.

SOUZA (2009:50)[37], ao tratar da relação da violência de gênero com os direitos humanos, aponta que a ideia de perpetuação da submissão da mulher ao mando do homem, no sentido de coisificá-la, afronta o art. 1º, inciso III, da CF/1988:

(…). Mas há que se frisar que o legislador procurou, principalmente, firmar a posição de que a violência de gênero não se confunde com as demais formas de violência, porque ela caracteriza-se principalmente na cultura machista do menosprezo pela mulher, bem como na ideia de perpetuação da submissão da mulher ao mando do homem, autorizando a equivocada e nefasta disseminação da inferioridade do gênero feminino em relação ao masculino, permitindo a “coisificação” da mulher, numa afronta direta à doutrina da dignidade da pessoa humana, consolidada já na filosofia kantiana e expressamente inserida no art. 1°, inc. III, da CRFB.

As incidências e reincidências das múltiplas formas de agressões físicas, psicológicas, sexuais, morais e/ou patrimoniais contra a mulher exigem, efetivamente, não perder de vista a teleologia, no contexto subjetivo, que se extrai do art. 1º da Lei n.º 11.340/2006, porque a finalidade ali prevista permeia o campo de proteção alçado por normas de direitos humanos, espaço que, no âmbito da normatização brasileira, insere-se no cuidado à dignidade da pessoa humana.    SOUZA (2009:50)[38], depois de se referir ao contexto objetivo do art. 1º da Lei n.º 11.340/2006, explica o contexto subjetivo sob os argumentos de que:

...no contexto subjetivo, a preocupação é a proteção da mulher, contra os atos de violência praticados por homens ou mulheres com os quais ela tenha ou haja tido um relação marital ou de afetividade, ou ainda por qualquer pessoa (não importando sequer a orientação sexual), com as quais conviva no âmbito doméstico e familiar, tais quais o pai, o irmão, o cunhado, a filha, o filho, a neta, o neto etc., ou com quem mantenha ou já tenha mantido relação de intimidade, não havendo em relação a essas pessoas a exigência de que a violência tenha ocorrido no âmbito físico-espacial do lugar de convivência, podendo ocorrer em qualquer lugar.

Os fundamentos de Sérgio Ricardo de Souza alinham-se ao pensamento de BOURDIEU (Apud KÜHER, 2002:16)[39], que, ao discorrer sobre a diferença de gênero, divide-os em aspectos objetivo e subjetivo.

Alcança-se, então, que a proteção subjetiva constante do art. 1º da Lei n.º 11.340/2006, em virtude do espectro de proteção da dignidade da pessoa humana, merece ampliação da interpretação para o espaço de conformação da Lei n.º 11.343/2006, nos casos em que a mulher na situação de vulnerabilidade praticar o crime previsto no art. 33, caput, c/c o art. 40, III da Lei de Drogas.

Mais, as normas constitucionais não só admitiram, expressamente, a existência das igualdades materiais – tratar os iguais na medida de suas desigualdades –, como estabeleceram os alcances dos fundamentos (CF, art. 1º, III), objetivos (CF, art. 3º, I) e garantias (CF, art. 5º, I) da República Federativa do Brasil, os quais exigem comportamentos ativos e pedem ações afirmativas sob a perspectiva de gênero na Lei n.º 11.343/2006, como as insertas na Lei 11.340/2006.

É patente, na Lei de Drogas, a desigualdade existente entre os gêneros a merecer o devido tratamento pelos atores das três fases do processo de criminalização, igualando-se substancialmente, dessa forma, homens e mulheres.

KI-MOON (2011)[40], à época, Secretário-Geral da ONU, no dia 25/11/2011 (dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher), discorreu sobre as diversas formas de violência contra as mulheres, afirmando:

       A violência contra mulheres e meninas tem muitas formas e é generalizada em todo o mundo. Ela inclui estupro, violência doméstica, assédio no trabalho, abusos na escola, mutilação genital e a violência sexual em conflitos armados. Ela é predominantemente causada por homens. Seja em países desenvolvidos ou em desenvolvimento, a perversidade desta violência deve chocar a todos. A violência – e, em muitos casos, a simples ameaça da mesma – é uma das barreiras mais significantes para a plena igualdade das mulheres.

Sobre a concreção do princípio da igualdade, o Ministro Eros Roberto Grau, quando do julgado da ADI 3305/DF[41], conceituou que:

       A concreção do princípio da igualdade reclama a prévia determinação de quais sejam os iguais e quais sejam os desiguais. O direito deve distinguir pessoas e situações distintas entre si, a fim de conferir tratamentos normativos diversos a pessoas e a situações que não sejam iguais. 4. Os atos normativos podem, sem violação do princípio da igualdade, distinguir situações a fim de conferir a um tratamento diverso do que atribui a outra. É necessário que a discriminação guarde compatibilidade com o conteúdo do princípio.

O tratamento diferenciado, a se conferir na Lei n.º 11.343/2006, coerentemente com os preceitos constitucionais, constituirá ação afirmativa que visa buscar maior e melhor proteção à mulher vítima de violência de gênero em razão de sua vulnerabilidade, homenageando-se, em análise primeira, as diretrizes constitucionais e dos direitos humanos da mulher: dignidade da pessoa humana, liberdade, justeza, solidariedade e igualdade material.

Embora sobre o exame da Lei n.º 11.340/2006 – mas com largo espaço de aplicação na Lei n.º 11.343/2006 –, CORRÊA (2008)[42], Promotora de Justiça do Estado de Mato Grosso, ao examinar a desigualdade material existente entre homens e mulheres, leciona que o Estado tem a obrigação de criar normas de ação afirmativa que visam alcançar o ideal de igualdade efetiva, sob pena de a omissão constituir verdadeira inconstitucionalidade. Confira-se:

       Parece-nos claro que o ordenamento jurídico brasileiro não só permite ao Estado a promoção de políticas de ações afirmativas, como as impõe, a fim de que sejam alcançados os direitos fundamentais baseados no artigo 3º da Constituição Federal, pois na sua redação temos o emprego de verbos como 'erradicar, construir, reduzir e promover', devendo o ente público desenvolver um comportamento ativo, positivo e eficaz neste sentido.

De outra parte, o art. 5º, caput, da Constituição Federal, analisado em conjunto com o art. 3º, ao afirmar que todos são iguais perante a lei, estabelece que: o Estado garantirá a todos o direito à igualdade, sem ignorar as desigualdades existentes, que motivam, dentre outras medidas, a criação das normas de ação afirmativa, visando o alcance do ideal de igualdade efetivo idealizado pelo legislador constituinte ao descrevê-lo formalmente.

Muito já se disse sobre a desigualdade material existente entre homens e mulheres, cujos dados estatísticos demonstrados certamente serão capazes de convencer até os mais incrédulos que porventura se imaginem vivendo em um país em que tal igualdade seja real, sendo certo que o igual tratamento pela lei, para ser legítimo, pressupõe uma igualdade de fato preexistente. Constatando-se que não há igualdade de fato entre homens e mulheres, tratarem-se desiguais como se iguais fossem, é que constituiria a verdadeira inconstitucionalidade.

As ações afirmativas de proteção à mulher, nessa linha, têm encontrado largo campo de concretude.

Argumenta-se, neste artigo – por óbvio à censura dos juristas, porque até mesmo ao se partir do dissenso é possível alcançar o consenso – que o Estado omite-se de sua obrigação de punir, nos crimes de tráfico ilícito de drogas praticados por mulheres em situação de vulnerabilidade, quem realmente deva receber a reprimenda da lei penal, na espécie, o agente coator (art. 22 do CP). Caso não seja possível identificá-lo, considerando que a situação de vulnerabilidade gera fundada dúvida quanto à culpabilidade da mulher, que se aplique, em homenagem ao princípio do favor rei, o art. 386, inciso VI, do CPP – como o fez o Tribunal do Rio Grande do Sul na Apelação Criminal n.º 70058120841.

Manifesta a vulnerabilidade das mulheres, no crime do art. 33, caput, c/c o art. 40, III, da Lei n.º 11.343/2006, não há se permitir qualquer tipo de esvaziamento do conteúdo de proteção sob a perspectiva de gênero, que, amparada nos fundamentos constitucionais dos arts. 1º, III; 3º, I e 5º, I, requer, ainda sob a força de Convenções e Tratados Internacionais de Direitos Humanos, ações afirmativas do Estado no âmbito da Lei de Drogas.

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Sobre o autor
Ronio Neves da Cunha Junior

Servidor do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Aluno Especial da Pós-Graduação em Mestrado na Universidade de Brasília - UNB (2014). Ex-aluno da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (ago 2008 a out 2009).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA JUNIOR, Ronio Neves. Encarceramento: cegueira e indiferença da vulnerabilidade e da desigualdade de gênero na Lei de Drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4271, 12 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31986. Acesso em: 7 nov. 2024.

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