4. Convenções e Tratados Internacionais de Direitos Humanos
O direito de as mulheres viverem uma vida livre de qualquer tipo de violência foi estabelecido pela Convenção de Belém do Pará[43], em 1994, porquanto constituem violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. A despeito da Convenção do Pará, àquela época, não ter mencionado especificamente quanto à vulnerabilidade da mulher no tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, essa situação de risco, sob as muitas formas de violência que se lhe antepõe, reclama previsão na Lei de Drogas.
Frequentemente, a introdução de mulheres no tráfico ilícito de drogas ocorre com ameaças diretas, indiretas, veladas e simbólicas para atuarem como “mulas” – até mesmo humanas – para os autores de organizações criminosas, não se olvidando – o que com maior frequência ocorre – serem elas as transportadoras de entorpecentes para o interior de estabelecimentos prisionais.
A violência contra a mulher constitui ofensa aos direitos humanos[44], porque limita suas liberdades fundamentais total ou parcialmente no sentido de gozar e exercer os direitos decorrentes dessas liberdades, constituindo-se, pois, em clara manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens.
MORAES (Apud SARLET, 2009:119)[45] informa que os princípios da igualdade, da integridade [física] e moral [psicofísica, liberdade e solidariedade] são obtidos a partir da propensão ampliativa do princípio-base constitucional, qual seja, da dignidade humana.
O debate, portanto, passa pela violência que as mulheres sofrem nesse processo de recrutamento para o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, violência essa que, num horizonte mais ampliado daquele doméstico, traduz-se na exploração da vulnerabilidade da mulher e de sua família.
A propósito, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos[46] (1993) realçou a importância de se atuar de modo afirmativo:
...no sentido de eliminação da violência contra as mulheres na vida pública e privada, a eliminação de todas as formas de assédio sexual, a exploração e o tráfico de mulheres, a eliminação de preconceitos contra o sexo feminino na administração da justiça e a erradicação de quaisquer conflitos que possam surgir entre os direitos das mulheres e os efeitos nocivos de certas práticas tradicionais ou consuetudinárias, preconceitos culturais e extremismos religiosos.
Em seu art. 1°, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (ONU)[47], de 18.12.1979, define a discriminação contra a mulher como:
...toda distinção baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, exercício pela mulher, independente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil.
Descoberto o conceito de direitos humanos – como direitos inerentes a cada pessoa e anteriores a qualquer Constituição e legislação dos Estados –, alcança-se uma conclusão de trágicas consequências que, na contemporaneidade, incorre numa estranha contradição: justamente neste terceiro milênio em que muito se proclama os direitos fundamentais invioláveis da pessoa e, publicamente, afirma-se o valor da dignidade da pessoa humana, justeza, liberdade, solidariedade e igualdade, esses mesmos direitos são praticamente esquecidos ou negados, particularmente, nos momentos mais críticos da existência, como é o caso das mulheres vulneráveis recrutadas para o tráfico ilícito de drogas.
A propósito, embora sem menção ao tráfico ilícito de drogas, mas com claro viés de proteção de direitos humanos, a Regra 65[48], constante das REGRAS DE BANGKOK, impõe aos Estados signatários – servindo como norteamento aos Estados não signatários – que as decisões judiciais considerem a vulnerabilidade de gênero das jovens do sexo feminino, a fim de evitar a institucionalização.
O disposto na Regra 65 revela similaridade com a vulnerabilidade de gênero das mulheres relativamente ao crime do art. 33, caput, c/c o art. 40, III, da Lei n.º 11.343/2006, merecendo, por força do princípio Ubi eadem ratio ibi idem jus (onde houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito), tratamento idêntico nas decisões judiciais, a fim de se evitar o encarceramento (institucionalização).
Nesse prisma, constatadas a precedente vulnerabilidade da mulher no crime acima referido e a integral favorabilidade das circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, as decisões judiciais devem evitar a custódia e, por consequência, em face da ausência de culpabilidade, conceder-lhes a absolvição na forma do art. 386, VI, do CPP.
Atualmente, em razão da tendência mundial de ampliação das proteções às mulheres, fala-se em danos estruturais e institucionais como violadores dos direitos humanos da mulher, os quais se manifestam como: (a) derivados dos efeitos da organização da economia na vida das mulheres; e (b) derivados da omissão quanto à perspectiva de gênero, neste caso, subdivididos, por exemplo, em: (b.1) comportamentos, (b.2) ideologias, (b.3) atitudes, (b.4) interpretações e aplicações das normas jurídicas, etc.
FREITAS[49], em tese de doutorado no programa de direitos humanos, junto à Universidade Carlos III de Madri, aborda a questão dos danos estruturais e institucionais como violadores de direitos humanos da mulher a partir da perspectiva de gênero. Na síntese, a doutoranda consigna:
A questão será abordada a partir de uma perspectiva de gênero, sublinhando-se que a sociedade e o Estado, envoltos pelo sistema patriarcal, praticam violência estrutural e institucional contra as mulheres, manifestada e transmitida por um tratamento desigual de gêneros, ou através dos comportamentos, ideologias, atitudes, quer através da criação e interpretação da aplicação das normas. Nós estamos falando sobre a violência estrutural e institucional contra as mulheres, engendrada pelo patriarcado e, como resultado, constitui um problema que deve ser enfrentado a partir da perspectiva de poder, dentro ou fora de casa, ou seja, na esfera pública e no campo privado[50]. (tradução nossa)
A revista eletrônica Alemã[51]: “Logo: Mulheres contra a Violência”, no que tange à violência estrutural contra as mulheres anota que:
Relações desiguais de poder em uma sociedade são muitas vezes em detrimento das mulheres. As mulheres são particularmente afetadas pela violência estrutural e prejudicadas no seu desenvolvimento e sobrevivência. (…).
...outras formas de violência contra as mulheres, como violência doméstica, estão relacionadas à violência estrutural. (…).
A violência estrutural não afeta todas as mulheres de forma igual. As mulheres com deficiência são mais afetadas pela violência estrutural, em primeiro lugar por causa das dependências da deficiência associada e discriminação, por outro lado, por causa de seu gênero. No entanto, as mulheres provenientes de meios desfavorecidos, as mulheres com história de migração, as mulheres lésbicas e bissexuais, transexuais ou pessoas intersexo sofrem uma violência estrutural em maior extensão, devido às múltiplas experiências de discriminação[52].
Se assim é, o questionamento e a resposta de CASTILHO[53] (2008:103) – já transcritas no tópico 4 deste artigo – alinham-se perfeitamente ao que os estudos jurídicos europeus têm intitulado de “violência estrutural ou institucional”.
Os Poderes Legislativo e Judiciário e as Instituições (Ministério Público e Defensoria Pública), sob pena de reforçarem[54] a violência estrutural e institucional, devem ser capazes de eliminar a ablepsia e indiferença da vulnerabilidade e da desigualdade de gênero na Lei n.º11.343/20006, quando praticados por mulheres em situação de vulnerabilidade.
Essa capacidade homenageia os direitos humanos da mulher e demonstra que o tráfico ilícito de drogas, praticados mulheres em situação de vulnerabilidade, é um problema histórico, social, econômico e cultural, sendo, também, decorrente das estruturas e instituições, públicas ou privadas.
Os direitos humanos das mulheres, pela importância que denotam, são, aqui e ali, invocados pelo Supremo Tribunal Federal para espancar as relações de desigualdade de gênero, a fim de ratificar e/ou conferir maior proteção aos direitos femininos, sejam eles materiais ou processuais, penais ou civis.
Confiram-se, na oportunidade, trechos de votos proferidos pelos Ministros Rosa Weber e Marco Aurélio, quando do julgamento da ADC 19:
(Ministra Rosa Weber)
...impende ter em mente o amplo reconhecimento do fato de que, uma vez marcadas, em uma sociedade machista e patriarcal como a nossa, as relações de gênero, pelo desequilíbrio de poder, a concretização do princípio isonômico (art. 5º, I, da Lei Maior), nessa esfera – relações de gênero – reclama a adoção de ações e instrumentos afirmativos voltados, exatamente, à neutralização da situação de desequilíbrio.
Com efeito, a Constituição expressamente confere à mulher, em alguns dispositivos, tratamento diferenciado, protetivo, na perspectiva de, nas palavras da Ministra Cármen Lúcia, 'acertar na diferença de cuidado jurídico, a igualdade do direito à dignidade na vida' (Rocha, Cármen Lúcia Antunes. O Princípio Constitucional da Igualdade. Belo Horizonte: Editora Lê, 1990, p. 75)
(Ministro Marco Aurélio)
...a mulher é eminentemente vulnerável quando se trata de constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos em âmbito privado. Não há dúvida sobre o histórico de discriminação e sujeição por ela enfrentado na esfera afetiva.
(...).
A legislação ordinária protetiva está em fina sintonia com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, no que revela a exigência de os Estados adotarem medidas especiais destinadas a acelerar o processo de construção de um ambiente onde haja real igualdade entre os gêneros.
BRITTO (2003:216-217)[55], ao examinar a evolução histórica do constitucionalismo, entende que a Constituição Federal contém uma filosofia de eliminação dos preconceitos, por força do “constitucionalismo fraterno”, sintetizando, entre outras compreensões, o seguinte:
Efetivamente, se considerarmos a evolução histórica do Constitucionalismo, podemos facilmente ajuizar que ele foi liberal, inicialmente, e depois social. Chagando, nos dias presentes, à etapa fraternal da sua existência. Desde que entendamos por Constitucionalismo Fraternal esta fase em que as Constituições incorporam às franquias liberais e sociais de cada povo soberano a dimensão da Fraternidade; isto é, a dimensão das ações estatais afirmativas, que são atividades assecuratórias da abertura de oportunidades para os segmentos sociais historicamente desfavorecidos, como, por exemplo, os negros, os deficientes físicos e as mulheres [para além, portanto, da mera proibição de preconceitos].
Portanto, estreme de dúvidas a legitimidade constitucional das políticas de ações afirmativas, cumpre estabelecer que estas se desenvolvem também por medidas de caráter minimalista/reducionista na seara do direito penal, este como ultima ratio.
Tratar os desiguais na medida de suas desigualdades (homens e mulheres), no âmbito da Lei n.º 11.343/2006, conferindo-lhes diferenças na aplicação da lei penal e processual penal – como a muito já ocorre em relação a outros sujeitos considerados vulneráveis: (a) criança e adolescente; (b) idosos; (c) deficientes físicos; (d) os indígenas; e (f) a própria mulher no âmbito da Lei n.º 11.340/2006 –, é não fomentar a indesejada violência estrutural ou institucional e muito menos compactuar com os abusos da intensidade e grau da resposta estatal.
O encarceramento, de mulheres em situação de vulnerabilidade – em que pese a prática do tráfico ilícito de drogas com a agravante de transporte no interior de estabelecimentos prisionais –, como única resposta penal, não tem o condão de construir um Estado Democrático real porque carece de políticas públicas que atendam aos graves problemas socioeconômicos e culturais que se afiguram, precedentemente, na vida daquelas antes mesmo da prática do delito.
Nesse particular, o exame da jurisprudência dos tribunais nacionais é revelador quanto à cegueira ou indiferença da perspectiva de gênero na Lei n.º 11.343/2006.
5. Pesquisas nos Tribunais
5.1. Tribunais Superiores.
No âmbito dos EE. Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça não há acórdãos, que tenham sido examinados à luz da Lei n.º 11.343/2006 (Lei de Drogas), sobre os prismas: (a) da desigualdade de gênero, (b) da vulnerabilidade da mulher e/ou (c) da hipossuficiência da mulher.
No campo pesquisa à jurisprudência[56], constata-se que há no STF:
a) 11 (onze) acórdãos com a pesquisa “tráfico-drogas-presídio”. Nenhum deles – ver-se-á exceção logo abaixo –, no entanto, aplicou a absolvição ou examinou esse crime sob a ótica da desigualdade de gênero, vulnerabilidade ou hipossuficiência da mulher no âmbito da Lei de Drogas.
Em pesquisa aos informativos, encontrou-se no Informativo n.º 522, 29 de setembro a 3 de outubro de 2008, o HC n.º 94.916/RS, o qual, ainda sob a égide da Lei n.º 6.368/1976, em caso específico de tráfico ilícito de drogas, com a agravante de ter ocorrido em estabelecimento prisional (transporte humano de maconha), a paciente (mulher) obteve a liberdade provisória ao fundamento de que – sem expressamente mencionar, mas em razão da vulnerabilidade – seu estado de saúde era debilitado e dela dependia, inclusive economicamente, uma filha.
O Ministro Eros Grau consignou que submeter a paciente ao cárcere seria incompatível com o direito, ainda que se pudesse ter como adequado à regra. Daí que a captura da exceção se imporia.
Confira-se a ementa:
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PRISÃO EM FLAGRANTE. CONTROVÉRSIA A RESPEITO DA POSSIBILIDADE DE LIBERDADE PROVISÓRIA. IRRELEVÂNCIA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO CAUTELAR. VINGANÇA. A SUBMISSÃO DA PACIENTE AO CÁRCERE É INCOMPATÍVEL COM O DIREITO, AINDA QUE SE POSSA TER COMO ADEQUADO À REGRA. MANTER PRESA EM CONDIÇÕES INTOLERÁVEIS UMA PESSOA DOENTE NÃO RESTABELECE A ORDEM, ALÉM DE NADA REPARAR. SITUAÇÃO PECULIAR A CONFIGURAR EXCEÇÃO. EXCEÇÃO CAPTURADA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO. ORDEM CONCEDIDA 1. Controvérsia a propósito da possibilidade, ou não, de concessão de liberdade provisória ao preso em flagrante por tráfico de entorpecentes. Irrelevância para o caso concreto, face a sua peculiaridade. 2. Paciente primária, de bons antecedentes, com emprego e residência fixos, flagrada com pequena quantidade de maconha quando visitava o marido na penitenciária. Liberdade provisória deferida pelo Juiz da causa, posteriormente cassada pelo Tribunal de Justiça local. Mandado de prisão expedido há cinco anos, não cumprido devido a irregularidade no cadastramento do endereço da paciente. Superveniência de doença contagiosa [AIDS], acarretando outros males. Intenção, da paciente, de entregar-se à autoridade policial. Entrega não concretizada ante o medo de morrer no presídio, deixando desamparada a filha menor. 3. Dizer "peculiaridade do caso concreto" é dizer exceção. Exceção que se impõe seja capturada pelo ordenamento jurídico, mesmo porque, a afirmação da dignidade da pessoa humana acode à paciente. 4. A transgressão à lei é punida de modo que a lei [= o direito] seja restabelecida. Nesse sentido, a condenação restabelece o direito, restabelece a ordem, além de pretender reparar o dano sofrido pela vítima. A prisão preventiva antecipa o restabelecimento a longo termo do direito; promove imediatamente a ordem. Mas apenas imediatamente, já que haverá sempre o risco, em qualquer processo, de ao final verificar-se que o imediato restabelecimento da ordem transgrediu a própria ordem, porque não era devido. 5. A justiça produzida pelo Estado moderno condena para restabelecer o direito que ele mesmo põe, para restabelecer a ordem, pretendendo reparar os danos sofridos pela vítima. Mas a vítima no caso dos autos não é identificada. É a própria sociedade, beneficiária de vingança que como que a pacifica em face, talvez, da frustração que resulta de sua incapacidade de punir os grandes impostores. De vingança se trata, pois é certo que manter presa em condições intoleráveis uma pessoa doente não restabelece a ordem, além de nada reparar. A paciente apresenta estado de saúde debilitado e dela depende, inclusive economicamente, uma filha. Submetê-la ao cárcere, isso é incompatível com o direito, ainda que se possa ter como adequado à regra. Daí que a captura da exceção se impõe. Ordem deferida, a fim de que a paciente permaneça em liberdade até o trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória. (HC 94916, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 30/09/2008, DJe-236 DIVULG 11-12-2008 PUBLIC 12-12-2008 EMENT VOL-02345-02 PP-00243 RTJ VOL-00208-03 PP-01165)
No campo pesquisa à jurisprudência[57], no âmbito do STJ, afere-se:
a) que, com a pesquisa “tráfico-drogas-presídio”, há 88 (oitenta e oito) acórdãos, sendo que nenhum deles aplicou a absolvição ou examinou esse crime sob a ótica da desigualdade de gênero, ou vulnerabilidade, ou hipossuficiência da mulher no âmbito da Lei de Drogas;
b) que, com a pesquisa “tráfico-drogas-vulnerabilidade”, há 18 (dezoito) acórdãos, sendo que todos se referem à vulnerabilidade do adolescente no âmbito do ECA;
c) que, com a pesquisa “tráfico-drogas-presídio-absolvição”, há 3 (três) acórdãos, sendo que todos em HC e foram negados por não ser possível a dilação probatória.
d) que, com a pesquisa “tráfico-drogas-coação-irresistível”, há 5 (cinco) acórdãos, sendo que 4 em HC e foram negados por não ser possível a dilação probatória e 1 em RESp negado, neste tema, pela Súmula 7-STJ.
5.2. Tribunais Estaduais e do DF[58]
1) No TJDFT, sobre as pesquisas “tráfico-drogas-vulnerabilidade”, “tráfico-drogas-presídio”, “tráfico-drogas-desigualdade-gênero”, “tráfico-drogas-ausência-dolo” e “tráfico-drogas-absolvição”, há 1 (um) acórdão relacionado à vulnerabilidade da mulher (é dizer, a decisão judicial não foi cega à desigualdade de gênero).
No caso concreto, tráfico de drogas, o acórdão do TJDFT, em Habeas Corpus, considerou a condição social de extrema miséria e vulnerabilidade da mulher e concedeu a liberdade provisória.
Esse acórdão não abordou detalhadamente o que se fala neste artigo. É, todavia, um avanço.
Confira-se a ementa:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO EM FLAGRANTE. NEGATIVA DE LIBERDADE PROVISÓRIA. APREENSÃO DE COCAÍNA. QUANTIDADE POUCO EXPRESSIVA DA DROGA APREENDIDA. PERICULOSIDADE ESCASSA. ORDEM CONCEDIDA EM PARTE.
1 Paciente presa em flagrante por infringir o artigo 33 da Lei 11.343/2006 depois que policiais, averiguando denúncia anônima indicando o funcionamento de "boca de fumo" em uma invasão localizada na Avenida L-2 Sul, realizaram campana e lograram apreender pouco mais de três gramas e meio de cocaína que ela escondia dentro do colchão de dormir, num barraco de lona.
2 Nada obstante a gravidade do fato, não está evidenciada periculosidade capaz de justificar a prisão cautelar como imperativo de ordem pública. A paciente é uma jovem mulher que se conservou primária até os vinte e sete anos de idade, e que sobrevive com extrema penúria em um barraco de lona azul montado dentro da invasão existente na L-2 Sul, junto com dois filhos com quatro anos e com onze meses de idade.
3 O caso reflete com cores vivas a miséria e extrema vulnerabilidade das populações carentes que se amontoam nas grandes cidades vivendo de sobras e da caridade alheia. Não se trata de um simples caso de Polícia, mas, sobretudo, um pungente drama social, que demanda solução diferenciada, impossível de ser proporcionada no presídio, deixando ao desamparo duas crianças que passariam a ver a sociedade como sua inimiga.
4 A paciente faz jus à liberdade provisória clausulada, com acompanhamento pelo Núcleo Psicossocial Forense, em conjunto com a Vara de Infância e Juventude e a Secretaria de Assistência Social do Governo do Distrito Federal.
5 Ordem concedida em parte. (Acórdão n.656846, 20130020018063HBC, Relator: GEORGE LOPES LEITE, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 07/02/2013, Publicado no DJE: 28/02/2013. Pág.: 194)
Nenhuma decisão absolutória por coação moral irresistível decorrente do tráfico de drogas em presídio.
2) No TJRS, há 1 (um) acórdão, em tráfico de drogas, o qual diz que a situação de vulnerabilidade gera fundada dúvida acerca da culpabilidade da mulher, aplicando, ao final, o art. 386, VI, do CPP (Apelação Crime Nº 70058120841, Terceira Câmara Criminal - Julgado em 03/04/2014).
Essa decisão, além de ser de vanguarda – porque visa o desencarceramento nos casos de precedente vulnerabilidade da mulher –, assegura o que se pretende neste artigo, que é o reconhecimento da perspectiva de gênero na Lei n.º 11.343/2006.
Confira-se a ementa:
TRÁFICO DE DROGAS. MULHER QUE TENTA INGRESSAR NO ESTABELECIMENTO PRISIONAL COM DROGA NA CAVIDADE ANAL. FUNDADA DÚVIDA ACERCA DA CULPABILIDADE. 1. A introdução de drogas nos órgãos genitais e cavidade anal é uma forma grosseira de criminalidade, uma situação constrangedora e aberrante. Essas mulheres estão em grau concreto, elevado e insuportável de vulnerabilidade, frente à perversão do sistema prisional. 2. A compreensão acerca da culpabilidade, como grau de censurabilidade ou de reprovação que pende sobre o sujeito que pratica um fato típico e ilícito (conexão punitiva), não se restringe à previsão normativa, na medida em que o sujeito está inserido em uma realidade própria, social, diferenciada e temporal. A realidade contemporânea mostra a desmaterialização do ser humano enquanto pessoa, uma vez recolhido ao cárcere, o descumprimento das regras humanitárias mínimas e o descaso com a normatividade ordinária, constitucional e convencional. As exigências são cumpridas para o encarceramento, isto é, até a porta do cárcere. Após, a realidade é outra. Essa perspectiva contamina o detido e toda a sua família, a qual passa a cumprir a pena extramuros. A carga maior recai sobre as mulheres, cônjuges ou companheiras dos detidos, as quais passam à submissão de qualquer conduta para amenizar os efeitos do encarceramento. Isso vai desde a satisfação dos apelos do marido, companheiro ou de seu superior na galeria presidiária, a quem deve obediência caso queira continuar sendo protegido. 3. Submeter-se a introdução de drogas nos órgãos genitais, ao vexame da descoberta e às repetidas posições para expelir a droga conduzem à situação de miséria humana, de degradação, somente entendível na perspectiva de não possuir a mulher, outra alternativa, diante das explícitas ou veladas ameaças de assim agir sob pena de o marido, companheiro, filhos, ela própria, sofrer outras sanções, agora não determinadas pelo Estado, mas pelo comando paralelo. 4. Essa situação de vulnerabilidade gera fundada dúvida acerca da culpabilidade da mulher, comportando aplicação a nova redação do art. 396, VI, do CPP. APELO PROVIDO. POR MAIORIA. (Apelação Criminal Nº 70058120841, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 03/04/2014)
O Ministério Público do Rio Grande do Sul interpôs Recurso Especial e Recurso Extraordinário contra este acórdão, juntados em 16/07/2014[59].
Muito em breve, portanto, ter-se-á pronunciamento deste leading case nos EE. Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, caso superem os enunciados das súmulas de barreira, v.g., 279-STF, 284-STF, 282-STF, 7-STJ. Encontra-se, ainda, no TJ/RS acórdão que, por maioria, absolveu a Apelante, condenada, em primeira instância, pelo crime do art. 33, caput, c/c o art. 40, III, da Lei n.º 11.343/2006. A maioria alcançou fundamentos diversos: Revisor absolveu com espeque no art. 386, II, do CPP. O Presidente absolveu com base no art. 386, VII, do CPP (Apelação Criminal n.º 70051788081, Terceira Câmara, Relator para o Acórdão Desembargador Revisor Diógenes V. Hassan Ribeiro, julgado em 23/05/2013).
3) No TJSC, não há acórdãos sobre as pesquisas “tráfico-drogas-vulnerabilidade”, “tráfico-drogas-presídio”, “tráfico-drogas-desigualdade-gênero”, “tráfico-drogas-ausência-dolo” e “tráfico-drogas-absolvição” que trouxessem a discussão, no âmbito da Lei n.º 11.343/2006, da desigualdade de gênero, ou da vulnerabilidade, ou da hipossuficiência e viabilizassem decisões como as do TJDFT e TJRS.
Há, todavia, uma decisão, na Apelação Criminal n.º 2008.067407-4, na qual o TJSC manteve a absolvição da recorrida por falta de provas.
4) No TJRJ, não há acórdãos sobre as pesquisas “tráfico-drogas-vulnerabilidade”, “tráfico-drogas-presídio”, “tráfico-drogas-desigualdade-gênero”, “tráfico-drogas-ausência-dolo” que trouxessem a discussão, no âmbito da Lei n.º 11.343/2006, da desigualdade de gênero, ou da vulnerabilidade, ou da hipossuficiência e viabilizassem decisões como as do TJDFT e TJRS.
Há 1 (um) acórdão absolutório por coação moral irresistível decorrente do tráfico de drogas em presídio, embora, em juízo, a apelada tenha mudado o depoimento dado em sede policial, chamando para si a responsabilidade pelos fatos apurados. (Apelação: 0404730-69.2009.8.19.0001, Juízo de origem: 1ª Vara Criminal Regional de Bangu, Apelante: Ministério Público)
5) Nos TJAC, TJAL, TJAM, TJAP, TJBA, TJCE, TJES, TJGO, TJMG, TJMS, TJMT, TJPA, TJPB, TJPE, TJPI, TJPR, TJRN, TJRO, TJRN, TJSE, TJSP, TJTO, não há acórdãos sobre as pesquisas “tráfico-drogas-vulnerabilidade”, “tráfico-drogas-presídio”, “tráfico-drogas-desigualdade-gênero”, “tráfico-drogas-ausência-dolo” e “tráfico-drogas-absolvição” que trouxessem a discussão, no âmbito da Lei n.º 11.343/2006, da desigualdade de gênero, ou da vulnerabilidade, ou da hipossuficiência e viabilizassem decisões como as do TJDFT e TJRS.
Em verdade as decisões encontradas mantiveram a condenação da mulher que traficou drogas, mormente em presídio.
Nenhuma decisão absolutória por coação moral irresistível decorrente do tráfico de drogas em presídio.
Com efeito, a fim de evitar a violência estrutural ou institucional, é preciso – enquanto o legislador não promove alterações sob a perspectiva de gênero na Lei n.º 11.343/2006 – que o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública intervenham de outra maneira nos crimes do art. 33, caput, c/c art. 40, III, da Lei n.º 11.343/2006, quando praticados por mulheres em situação precedente de vulnerabilidade.
De tudo o que foi exposto nesse artigo, pode-se afirmar que as mulheres encarceradas por tentar introduzir drogas nos centros penitenciários (a) têm baixa escolaridade, (b) têm filhos menores, (c) têm pessoas incapazes sob a dependência delas, (d) formam famílias, em sua maioria, monoparentais, e (e) são, na maioria dos casos, as únicas encarregadas pela economia familiar.
O impacto socioeconômico que o encarceramento tem na vida dessas mulheres, famílias e filhos permitem afirmar que o dano (violência estrutural e institucional) é desproporcional ao bem jurídico que se pretende proteger.
Apresentando-se, dessa forma, os fatos e as circunstâncias, está claro que os atores das três fases do processo de criminalização devem estabelecer parâmetros diferenciadores na Lei n.º 11.343/2006, sob a perspectiva de gênero, a fim de se evitar todo tipo de violência contra a mulher.
Há um desequilíbrio sancionatório atual na Lei n.º 11.343/2006, no que diz respeito ao art. 33, caput, c/c o art. 40, III, que se situa entre o bem jurídico tutelado: (a) a saúde pública vs (b) o impacto social de manter sob custódia mulheres pobres e vulneráveis, responsáveis pela economia familiar, pelos filhos menores e, até mesmo, por pessoas maiores incapazes.
Encarcerar mulheres que se encontram nessas circunstâncias, pela prática de tráfico ilícito de drogas, com a agravante de transporte no interior de estabelecimentos prisionais, é adicionar-lhes uma violência de graves consequências, entre elas a estigmatização da própria condenada e da família, elevando a escala de sofrimento que já passam pela pressão da pobreza/miséria, da intimidação do dominante, da vulnerabilidade socioeconômica e cultural; fatores que bem se inserem, por omissão do Estado e das Instituições, na denominada violência estrutural ou institucional contras as mulheres.
Não há se cegar que as circunstâncias históricas, socioeconômicas e culturais particulares da vulnerabilidade, nas quais se encontram ou vivem as mulheres, por certo, as impedem de incorporar-se à sociedade e acender melhores condições de bem estar, pelo que se veem mais expostas a cometer o tráfico ilícito de drogas, mormente no transporte para o interior de estabelecimentos prisionais.
Por tais razões, faz-se imperioso um olhar crítico sobre a Lei n.º 11.343/2006, no que concerne a ausência de previsão de dispositivo que, efetivamente, promova a igualdade material entre mulheres e homens, sob a perspectiva de gênero.
A respeito, entre as legislações mundiais que promoveram substancial alteração na legislação sobre drogas, com o escopo de incluir a perspectiva de gênero, tem-se o Reino Unido (Inglaterra) e a República da Costa Rica.