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Pessoas portadoras de deficiência e concurso público.

Amplitude constitucional do art. 37, VIII, da Constituição de 1988

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18/11/2014 às 12:13
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2 ASPECTO TERMINOLÓGICO DE DEFICIÊNCIA

De acordo com Nair Lemos Gonçalves, citada por Luiz Alberto David Araujo, há diversos nomes em idiomas nacionais e estrangeiras que fazem menção à pessoa portadora de deficiente, tais como, ‘indivíduos de capacidade limitada’, ‘minorados’, ‘impedidos’, ‘descapacitados’, ‘excepcionais’, ‘minusválidos’, ‘disable person’, ‘hadicapped person’, ‘unusual person’, ‘special person’, ‘inválido’ e ‘deficiente’. [13]

Consoante Luiz Alberto David Araujo, a par dos constructos indicados por Nair L. Gonçalves, é possível chegar a interpretações variadas do conceito desse grupo de pessoas. Segundo o autor, alguns termos destacam a ideia de incapacidade, enquanto outros o sentido de ‘deficiência’. Há, ainda, segundo Luiz Alberto, expressões que sequer arranham a questão posta, minimizando os problemas relacionados ao tema. [14]

De acordo com Luiz Alberto, o termo ‘excepcional’ foi o utilizado na Emenda Constitucional de 1969, que ancora, basicamente, na deficiência mental. Em função disso, o autor rechaça a aplicação desta palavra, dada sua limitação e vinculação a somente uma espécie de deficiência, impedindo sua extensão às físicas ou mesmo as de cunho metabólico. Tal termo foi empregado até 1978, posteriormente, passou-se a utilizar o verbete ‘deficiência’. [15]

Quanto à expressão ‘deficiente’ tem a vantagem de recair diretamente sobre a deficiência do indivíduo, de forma abrangente, segundo Luiz Alberto. Por outro lado, entende o autor que a expressão ‘pessoas portadoras de deficiência’ seja a mais consentânea, haja vista que centraliza a pessoa per se, tendo a palavra ‘deficiência’ nesse arranjo terminológico o sentido de indicar questão situacional do ser humano, afastando qualquer tipo de discriminação. [16]

Após uma breve excursão histórica a respeito da situação e condição de pessoas portadoras de deficiência, Rosanne de Oliveira Maranhão identifica algumas denominações atribuídas às pessoas portadoras de deficiência, as quais a Autora considera inapropriadas e afirma:

Notamos no decorrer da história, que várias denominações foram utilizadas, quando nos reportávamos aos ‘portadores de deficiência’. Ainda hoje isso acontece, nacional e internacionalmente, quando se faz referência aos portadores de deficiência. Além dos termos mais comumente usados que são, deficiente e pessoa deficiente, encontramos na lei e na doutrina outros termos, tais como: excepcionais, incapacitados, impedidos, descapacitados, inválidos, portadores de necessidades especiais etc.

[...]

É necessário advertir, em virtude dessa diversidade terminológica, que o uso do termo ‘pessoa deficiente’ ou ‘deficiente’ ou qualquer outro dos acima citados, não deve ser adotado. A terminologia a ser usada é ‘portador de deficiência’ ou ‘pessoas portadoras de deficiência’, porque esta expressão abrange qualquer tipo de deficiência, não só a física, como também as sensoriais (auditiva e visual) e a mental. [17]

Em análise dos conceitos de ‘deficiência’ contidos nos dicionários (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Cândido de Oliveira, Houaiss etc.), Luiz Alberto identifica que os sentidos axiais remetem às ideias de falta, de carência e de falha. Segundo o Autor, é “importante frisar que a falha, a falta, não se situa no indivíduo, mas em seu relacionamento com a sociedade”. (grifos inseridos) [18]

Sandro Nahmias Melo diverge parcialmente do entendimento até aqui exposto a respeito da expressão caracterizadora de deficiência a ser utilizada juridicamente e que parece predominar entre os doutrinadores. Segundo o autor, a expressão mais adequada seria ‘pessoa portadora de necessidades especiais’, por entender que esta última reforça mais as ‘diferenças’ do que a própria deficiência, é o que se depreenda de sua afirmação abaixo:

[...]

Ante o exposto, apesar de estarmos cientes de que a expressão mais comumente empregada é a de ‘pessoas portadoras de deficiência’, inclusive em sede constitucional e infraconstitucional, entendemos como mais adequada a expressão ‘pessoas portadoras de necessidades especiais’. Frise-se, ainda, que a expressão proposta não tem a pretensão de se impor como prevalente, devendo ser acolhida de bom grado toda terminologia que não ressalte a dependência da pessoa com deficiência, mas evidenciando as mesmas como seres humanos, detentores de direitos, com o reconhecimento mais de suas ‘diferenças’ do que de suas ‘deficiências’. [19]

Seguindo esse raciocínio, Sandro Nahmias Melo defende que o importante é colocar em evidência a pessoa humana, que é o substantivo, o ser existencial, senão corre-se o risco de enfatizar um atributo em detrimento da essencialidade ontológica do ser, in verbis:

O adjetivo utilizado não pode se sobrepor jamais ao substantivo básico identificador da condição humana: pessoa! Em outras palavras, as deficiências jamais podem vir antes das pessoas, sob pena de, a partir daí, compor-se uma visão estereotipada das pessoas portadoras de deficiência, sendo este mais um motivo para que sejam totalmente abandonadas as qualificações pejorativas [...]. [20]

É interessante observar, ainda, que Ariolino Neres Sousa Júnior tem um entendimento diferenciado para a expressão a ser utilizada, considerando a relação deficiência e pessoa. Segundo este autor, as deficiências não são portadas, mas se apresentam nos indivíduos, daí a expressão inapropriada ‘pessoa portadora de deficiência’. Sendo assim, para Ariolino Neres Sousa Júnior a expressão mais adequada seria ‘pessoa com deficiência’, in verbis:

Dessa forma, observamos que se tem abandonado a expressão ‘pessoa portadora de deficiência’ com uma concordância em nível internacional, sendo que, conforme foi ressaltado pelo comentário exposto anteriormente, as deficiências não se portam, haja vista que as próprias pessoas as apresentam, em outras palavras, as deficiências estão com a pessoa, daí optarmos pela expressão ‘pessoa com deficiência’. [21]

Romeu Kazumi Sassaki também comunga do entendimento de Ariolino Neres Sousa Júnior, haja vista que, após efetuar uma breve análise histórica dos termos designadores de deficiência, defende a utilização da expressão “pessoas com deficiência” sob o fundamento de que esta última ganha maior número de adeptos, tanto de pessoas com deficiência ou não. Segundo Romeu Kazumi Sassaki, em ‘Encontrão’ das organizações de pessoas com deficiência, ocorrido em 2000 em Recife, o público presente clamou pelo uso do termo “pessoas com deficiência”, o que se coaduna com a Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e da Dignidade das Pessoas com Deficiência, destaca o autor. A ideia central é de que ninguém “porta” a deficiência, in verbis:

Os movimentos mundiais de pessoas com deficiência, incluindo os do Brasil, estão debatendo o nome pelo qual elas desejam ser chamadas. Mundialmente, já fecharam a questão: querem ser chamadas de “pessoas com deficiência” em todos os idiomas. E esse termo faz parte do texto da Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e Dignidade das Pessoas com Deficiência, a ser aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 2005 ou 2006 e a ser promulgada posteriormente através de lei nacional de todos os Países- Membros.

Eis os princípios básicos para os movimentos terem chegado ao nome “pessoas com deficiência”:

1. Não esconder ou camuflar a deficiência;

2. Não aceitar o consolo da falsa ideia de que todo mundo tem deficiência;

3. Mostrar com dignidade a realidade da deficiência;

4. Valorizar as diferenças e necessidades decorrentes da deficiência;

5. Combater neologismos que tentam diluir as diferenças, tais como “pessoas com capacidades especiais”, “pessoas com eficiências diferentes”, “pessoas com habilidades diferenciadas”, “pessoas dEficientes”, “pessoas especiais”, “é desnecessário discutir a questão das deficiências porque todos nós somos imperfeitos”, “não se preocupem, agiremos como avestruzes com a cabeça dentro da areia” (i.é, “aceitaremos vocês sem olhar para as suas deficiências”);

6. Defender a igualdade entre as pessoas com deficiência e as demais pessoas em termos de direitos e dignidade, o que exige a equiparação de oportunidades para pessoas com deficiência atendendo às diferenças individuais e necessidades especiais, que não devem ser ignoradas;

7. Identificar nas diferenças todos os direitos que lhes são pertinentes e a partir daí encontrar medidas específicas para o Estado e a sociedade diminuírem ou eliminarem as “restrições de participação” (dificuldades ou incapacidades causadas pelos ambientes humano e físico contra as pessoas com deficiência). [22]

Cabe consignar que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, já foram incorporados ao ordenamento pátrio por meio do Decreto nº 6.949/2009. Verifica-se que o próprio título da referida convenção estampa a expressão “pessoas com deficiência” e em diversas partes de seus dispositivos este termo é o único utilizado, a exemplo do art. 1, art. 4, art. 8, art. 9, art. 10, a fim de designar pessoas desse segmento.

Considerando que o debate a respeito do termo mais adequado para lidar com a deficiência foge ao propósito desta pesquisa e de que a Constituição Federal aplica a expressão “pessoas portadoras de deficiência”, em vários de seus dispositivos, tais como, art. 7º, inciso XXXI, art. 23, inciso II, art. 37, inciso VIII, art. 227, parágrafo 1º, inciso II, art. 227, parágrafo 2º, optou-se pela expressão constitucional.

Por outro lado, tendo por base na superficial análise ora realizada, entende-se que o termo “pessoas com deficiência” parece ser o mais consentâneo, tendo em vista que Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, sendo o normativo mais recente e já incorporado ao ordenamento jurídico, preferiu esse termo, o que pode sinalizar que este seja mais representativo linguisticamente da situação e da condição de tais pessoas.

De todo modo, não se pode perder de vista que o entendimento do significado, do sentido ou alcance, em síntese, do conceito é bem mais relevante do que a discussão da nomenclatura em si, pelo menos para efeito de se identificar a amplitude constitucional do art. 37, inciso VIII.


3 DEFINIÇÃO JURÍDICA E CONCEITO DE DEFICIÊNCIA

Pode-se crer, muitas vezes, que a questão da deficiência é muito óbvia, transparente, se for seguido pura e simplesmente o raciocínio classificatório de que a pessoa é isto ou aquilo. No entanto, adotando esse tipo de abordagem, acaba-se por desconhecer as articulações, as implicações e complexidades que giram em torno e no fundo de "um óbvio", o qual na verdade mostra apenas as superfícies das questões. Não é admissível mais essa postura científica de partir da certeza inabalável daquilo que se parece "tão evidente", de problemáticas que se parecem já superadas, transpostas ou explicadas.

Por trás de "um óbvio" certamente há entrelaçamento de relações e desdobramentos, uma série de valores, ideias e preconceitos não discutidos, mas simplesmente aceitos. Tendo em vista esse raciocínio, entende-se leviandade científica esquivar-se a discutir o que se supunha "óbvio", pois isto significaria pensar que se entende o objeto de pesquisa apenas pelas suas mais gritantes evidências, quando se sabe que a busca do conhecimento requer antes de tudo uma cautela sobre o próprio processo cognitivo, quanto mais das inferências dele emergidas.

Sendo assim, se realmente existe o "óbvio" não é na dimensão de sua fachada que se deve restringir, mas tentar entendê-lo e reconstruí-lo a partir do que lhe sustenta, descobrindo seu véu que muitas vezes é negado e tentando mostrar que nesse "óbvio" podem estar presentes camadas de preconceitos e discriminações que afrontam o princípio da igualdade, conforme se discutirá oportunamente.

Com essas ressalvas, na sequência serão apresentadas a definição e a taxonomia utilizadas juridicamente para reconhecimento de deficiência em concurso público, nos termos do art. 37, inciso VIII, Constituição. Todavia, ressalte-se que o importante é ter ideia não da nomenclatura auto-definidora, mas da multiplicidade e diferenças, as quais infelizmente não serão analisadas na profundidade necessária. Posteriormente, será discutida a concepção jurídica de deficiência, antecipando-se que conceito e definição são inter-relacionados e interdependentes, mas o primeiro sempre antecede o segundo em qualquer tipo de estruturação científica.

3.1 Modelos de classificação e definição de deficiência: abordagem evolutiva

O assunto abordado neste capítulo consiste na definição de deficiência, tanto sob o ponto de vista do legislador quanto da doutrina. Esse nível de debate, da definição de deficiência é atividade extremamente complexa e necessita, previamente, do entendimento minimamente equalizado da amplitude constitucional (conceito) do art. 37, inciso VIII, sendo este último o propósito do presente trabalho.

Numa breve análise histórica é fácil constatar que a deficiência sempre foi pautada de modo tacanho e segregador, impedindo compreensão do fenômeno a ponto de viabilizar maior interação de indivíduos portadores de alguma limitação no meio social. Nesse sentido, é oportuna a abordagem sociológica feita por Lívia Barbosa, Débora Diniz e Wederson Santos, in verbis:

A história da deficiência é também uma história de exclusão e estigma. O corpo da pessoa com deficiência foi submetido a diferentes formas de controle, sendo as narrativas religiosas e biomédicas as que mais fortemente dominaram os saberes sobre a deficiência nos últimos dois séculos. De um castigo divino a um corpo abjeto pelas mutações genéticas, a deficiência foi descrita como a alteridade sem possibilidade de identificação pela cultura da normalidade [...]. (grifos inseridos) [23]

De acordo com Lívia Barbosa, Débora Diniz e Wederson Santos, a perspectiva biomédica, ainda no século XIX, representou um avanço diante das explicações religiosas a respeito da deficiência até então predominantes. Apesar disso, tais autores alertam que a visão biomédica firmou-se na premissa de “normalizar” as pessoas portadoras de deficiência, o que, segundo eles, passou a desvirtuar o sentido da própria reabilitação, conforme explicam:

A emergência da narrativa biomédica foi a primeira guinada para a garantia dos direitos aos deficientes no século XIX. Antes uma expressão do azar ou do pecado, os impedimentos físicos, sensoriais ou cognitivos da pessoa com deficiência passaram a ser explicados com base na embriologia e na genética, e surgiram soluções nos campos da cirurgia ou da reabilitação. O corpo com impedimentos tornou-se alvo do poder biomédico, cujo principal objetivo era normalizá-lo. A cultura da normalidade ganhou fôlego com os saberes biomédicos, que, ao explicarem a deficiência em termos científicos, apresentavam alternativas para a sobrevivência em uma regra de exclusão pela diferença [...]. (grifos inseridos) [24]

Diante da limitação da abordagem biomédica para com a deficiência, Lívia Barbosa, Débora Diniz e Wederson Santos, entendem que o modelo social seja mais apropriado, na medida em que conduz o tema sob a perspectiva de direitos humanos. Em função disso, afirmam:

[...] Esse cenário começou a ser alterado com a emergência do modelo social da deficiência, cujo esforço argumentativo foi o de aproximar a deficiência de outras narrativas de opressão, como a desigualdade de classe e, mais recentemente, o sexismo e o racismo. O modelo social afirmou a insuficiência da biomedicina para enfrentar a questão da deficiência como um desafio de direitos humanos. (grifos inseridos) [25]

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Wederson Santos afirma que o modelo social de deficiência possibilitou demonstrar a fragilidade da abordagem biomédica a respeito desse fenômeno e também evidenciou a opressão a que as pessoas portadoras de deficiência eram submetidas, conforme se depreende abaixo:

[...] Por um lado, os estudos sobre deficiência serviram para fragilizar a perspectiva biomédica, que compreendia os impedimentos corporais como patológicos e anormais, portanto, com necessidades de reabilitação e de tratamento. Mas, por outro, serviram para denunciar a opressão a que os corpos com deficiência estão submetidos em razão de práticas, valores e estruturas sociais pressuporem corpos sem impedimentos [...]. [26] (grifos inseridos)

Por outro lado, Lívia Barbosa, Débora Diniz e Wederson Santos, alertam que a proposta do modelo social de estudar o fenômeno da deficiência não significa entender que todos os problemas de acessibilidade decorrem de aspectos sociais. In verbis:

A proposta do modelo social, no entanto, não é a de que todas as restrições de atividades vividas pelas pessoas com impedimentos corporais são causadas por barreiras sociais, mas a de que a deficiência passa a existir quando aspectos da prática e da estrutura social contemporânea geram desvantagens e excluem os corpos com impedimentos[...](grifos inseridos)[27]

Numa perspectiva marxista e firmando-se em I. Pessoti, particularmente, Samira Saad Pulchério Lancillotti consigna que desde a Idade Média o aspecto orgânico era preponderante na caracterização de pessoa portadora de deficiência. Segundo a autora, tal visão se modificou a partir do século XX em que os atributos intelectuais passaram a ser relevantes na nova sociedade em formação, de modo que as pessoas que não atingissem dado nível de intelecção foram incluídas na lista das deficiências, conforme se depreende da reflexão abaixo:

Se, a partir da Idade Média, a questão orgânica era definidora da condição da deficiência, isto se modificou no século XX. Aqueles sujeitos incapazes de aquisições acadêmicas foram, também, incorporados à categoria dos deficientes, por não atenderem às expectativas culturais emergentes. Assim, no século XX, a incompetência escolar passou a ser compreendida como deficiência mental leve, associada aos quadros anteriormente reconhecidos, como o cretinismo, a idiota, a imbecilidade e a debilidade mental, legados pelo sabor do século XX. (grifos inseridos) [28]

De todo modo, em 1980, a Organização Mundial de Saúde – OMS – editou uma taxonomia de abrangência internacional das situações de: 1) impedimento; 2) deficiência; 3) incapacidade. De acordo com Ribas, cada uma dessas situações contemplavam limitações diferenciadas, a saber:

O impedimento diz respeito a uma alteração (dano ou lesão) psicológica, fisiológica ou anatômica em um órgão ou estrutura do corpo humano. A deficiência está ligada a possíveis sequelas que restringiriam a execução de uma atividade. A incapacidade diz respeito aos obstáculos encontrados pelos deficientes em sua interação com a sociedade, levando-se em conta a idade, sexo, fatores sociais e culturais. (grifos inseridos) [29]

Em que pesem a Declaração e a nova terminologia propugnadas pela ONU e OMS, respectivamente, segundo João B. Cintra Ribas ainda persiste a necessidade de definir com maior precisão o que seria deficiência, afastando-se preconceitos e pré-noções que muitas vezes eclodem nesse tema, a fim de evitar deturpações e generalizações que alimentam a ideologia dominante – que impõe o ‘normal’ como o padrão, como valor construído culturalmente. A reflexão levantada por João B. Cintra Ribas parece bastante atual, conforme se verifica abaixo:

Se entrarmos por este caminho, surgirá ainda a seguinte pergunta: mesmo com a tentativa de ‘definição por parte da Organização Mundial de Saúde (que tenta responder a estas questões: limitações físicas ou mentais tornam uma pessoa deficiente? Na prática, existiria diferença entre pessoa ‘incapacitada’ e ‘deficiente’?), a rigor, grande parte de todos nós não é em maior ou menor grau deficiente? Afinal, muitos de nós são (sic) portadores de algum tipo de lesão, são míopes, diabéticos, hipertensos, têm altura ou peso não considerados adequados, possuem algum tipo de disfunção orgânica etc. [...] Neste sentido, quando falamos de pessoas deficientes, podemos relativizar a este ponto? [...] [30] (grifos inseridos)

No momento das reflexões feitas por João B. Cintra Ribas as deficiências eram classificadas em três categorias: 1) físicas; 2) sensoriais e 3) mentais. Nas primeiras estão as limitações de procedência motora: amputações, malformações ou sequelas de vários tipos. Nas segundas estão as deficiências auditivas, que incluem surdez total ou parcial, e visual, as quais se apresentam como cegueira total ou parcial. Já as deficiências mentais consistem em vários níveis, de origem pré, peri ou pós-natal. [31]

Não obstante se tenha se apegado a tal classificação, João B. Cintra Ribas reconheceu, naquele instante histórico, a complexidade do tema, quando levantou o seguinte questionamento em tom reflexivo:

[...] Certamente teremos deficientes com graves limitações incapacitadoras, mas também teremos indivíduos cuja deficiência não lhes traz nenhuma (ou quase nenhuma) incapacidade. Um portador de deficiência mental severa tem limitações. Um portador de paralisia cerebral leve não tem limitações. Mas, então, novamente, podemos chamar de ‘deficientes’ aqueles que não possuem nenhuma (ou quase nenhuma) limitação? [32]

Mais adiante fica mais evidenciada essa cautela de Ribas em classificar e definir a deficiência, dadas as dificuldades teórica e prática na abordagem da temática. Segundo o autor, as limitações dependem muito de como o indivíduo enfrenta tais obstáculos e das suas condições socioeconômicas, bem como do peso que sofre de preconceitos e dos estigmas. Suas ponderações são relevantes na medida em que chamam a atenção para os desdobramentos da deficiência na concretude e não a classificação em si, in verbis:

O que estou querendo mostrar, apenas, é que a deficiência é relativa. Relatividade esta que se apresenta tanto a nível sociocultural, como também exclusivamente a nível físico. Aliás, nem a OMS conseguiu uma definição matematicamente precisa de quem é ou quem não é deficiente neste nosso mundo [...] A coisa mais importante são as implicações que decorrem a partir de um processo que engloba a deficiência. [33] (grifos inseridos)

Na análise que fazem da classificação de deficiência nos termos do Decreto 3.298/99, ainda sem os ajustes operados pelo Decreto nº 5.296/04, Luciana Toledo Távora Niess e Pedro Henrique Távora Niess alertam para as diferenças das três categorias, o que continua sendo um aspecto fundamental a ser considerado até mesmo para a definição do modelo de prova a ser aplicado para cada grupamento de deficiência num concurso público, por exemplo. Nesse sentido, cabe aqui transcrever seus comentários:

As deficiências classificam-se em três grupos: físicas, sensoriais e mentais. O elemento que caracteriza um grupo não tem, em grande parte, identidade com o que caracteriza outro. A ausência de um sentido não equivale à falta de um membro ou ao desenvolvimento mental limitado ou mais demorado. (grifos inseridos)

Pensar de outra forma seria o mesmo que equiparar aquele que joga golfe com um nadador, porque ambos são esportistas; o cardíaco com o tuberculoso, porque os dois são doentes; o Governador de Estado com um Senador, porque são políticos. [34]

Com a regulamentação da Lei 7.853/1989, mediante o Decreto nº 3.298/99, que foi alterado pelo Decreto nº 5.296/04, foram definidas cinco categorias de deficiência e respectivos desdobramentos, que convém transcrever com os acréscimos ilustrativos feitos por Maria Aparecida Gugel, a saber:

I- Deficiência física, uma alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, triplegia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membros, paralisia cerebral (AVC), nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, excepcionadas as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções.

II – Deficiência auditiva, perda bilateral, parcial ou total de 41 dB (quarenta e um decibéis) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000HZ e 3.000HZ.

III – Deficiência visual, é a cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 a 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60º, ou a ocorrência simultânea de qualquer uma das condições anteriores.

IV – Deficiência Mental, funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e com limitações de duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como 1. Comunicação; 2) cuidado pessoal; 3) habilidades sociais; 4) utilização dos recursos da comunidade; 5) saúde e segurança; 6) habilidades acadêmicas; 7) lazer e 8) trabalho.

V - Deficiência Múltipla, a associação de duas ou mais deficiências. A deficiência múltipla pode ser exemplificada com as pessoas surdocegas, que têm uma perda substancial de audição e visão, de tal modo que a combinação dessas duas deficiências resultam em dificuldades de acesso à educação, profissionalização, trabalho e lazer. (inserções da autora) [35]

De acordo com Maria Aparecida Gugel, o Decreto nº 3.298/99, que regulamentou a Lei nº 7.853/89 – esta lei decorreu da Constituição Federal de 1988 – foi um avanço legislativo, muito embora na prática tenha ficado aquém de sua teleologia, mesmo porque a pessoa portadora de deficiência não foi considerada, naquele momento, um sujeito de direitos, de modo a ter igualdade de oportunidades na prática. Dessa forma, a Autora extrai as definições de deficiência estampadas no referido decreto:

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O Decreto n. 3.298/99 considera deficiência toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade dentro do padrão considerado normal para o ser humano. Por deficiência permanente, entende-se como aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir a recuperação ou a alteração, apesar de novos tratamentos. O termo ‘incapacidade’ também foi considerado pelo regulamento como sendo uma redução efetiva da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.

[...]

Referida concepção, ainda que considerada um avanço, não reflete o reconhecimento de que a pessoa com deficiência é sujeito de direitos e, portanto, deve gozar das mesmas, e todas, oportunidades disponíveis na sociedade, independentemente do tipo ou grau de sua deficiência. É necessário construir um novo conceito que se afaste em definitivo do conceito de doença e de incapacidade para a vida independente. (grifos inseridos) [36]

Na hermenêutica do art. 227, inciso II, da Constituição Federal, Sandro Nahmias Melo entende que a expressão “pessoa portadora de deficiência” é bem mais ampla do que pode se supor, para efeito de classificação. A análise feita pelo autor naquele dispositivo certamente pode ser transportada também para o contido no art. 37, inciso VIII, da Carta Magna, dentro do propósito da presente pesquisa, conforme se depreende de seu comentário abaixo:

Não podemos deixar de anotar, todavia, que o espectro das deficiências é muito mais amplo que o apontado na classificação constitucional (art. 227, inciso II). Além das condições aparentes temos aquelas não aparentes que, igualmente, dificultam a integração social de seu portador. [37] (grifos inseridos)

Seguindo a classificação disposta na Constituição Federal, art. 227, inciso II, Sandro Nahmias Melo, busca um aprofundamento da interpretação para os três tipos clássicos de pessoas portadores de deficiência: físico, mental e sensorial. No caso da deficiência mental, o autor, firmando-se em Alexander e Selenisk, apresenta três métodos de abordagem para melhor compreensão dessa categoria: o método mágico; o método orgânico e o método psicológico. In verbis:

A adoção do método mágico, para explicar as doenças mentais, predominou em períodos históricos nos quais as causas das doenças não eram evidentes. O homem primitivo as atribuía a influências malignas, quer de outros seres humanos quer de seres sobre-humanos. E lidava com as primeiras pela magia ou feitiçaria e com as últimas pelas práticas mágico-religiosas. Tais métodos de tratamento eram tentativas de mudar psicologicamente as consequências das referidas influências malévolas. A abordagem orgânica, também denominada de médica, atribui a fatores organogênicos as causas da doença mental. Já o método psicológico está respaldado na teoria freudiana ou em outras decorrentes dela, como a psiquiatria dinâmica. [38]

De acordo com Sandro Nahmias Melo, a deficiência mental tem basicamente três causas: a) Pré-natais: aberrações cromossômicas, causas gênicas, malformação cerebral, ambientais: infecciosas (toxoplasmose, sífilis, rubéola, CMV, listeriose) etc.; b) Perinatais: anoxia ou hipoxia, prematuridade, baixo peso, infecções (HSV, estreptococos beta-hemolítico, listeria); c) Pós-natais: infecções (meningencefalites e encefalites), traumas cranianos, radiações, convulsões etc. [39]

Em relação à deficiência física, Sandro Nahmias Melo apresenta um conceito ao tempo em que alerta para não se generalizar uma situação que é bem particular, conforme se depreende abaixo:

A deficiência física refere-se ao comprometimento do aparelho locomotor que compreende o sistema ósteo-articular, o sistema muscular e o sistema nervoso. As doenças ou lesões que afetam quaisquer desses sistemas, isoladamente ou em conjunto, podem produzir quadros de limitações físicas de grau e gravidade variáveis, segundo os segmentos corporais afetados e o tipo de lesão ocorrida. Um procedimento comum é referir-se às pessoas portadoras de qualquer tipo de deficiência como ‘deficientes físicos’, o que é um equívoco, uma vez que não leva em consideração as especificidades das pessoas com deficiência sensorial ou mental. [40]

No que tange à deficiência sensorial, Sandro Nahmias Melo segmenta em auditiva e visual, com suas respectivas gradações. Assim, firmando-se em Clelma Cristina Silva, o Autor entende que “A deficiência auditiva consiste na ‘perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e níveis’. A deficiência auditiva inclui as diacusias leves, moderadas, severas e profundas”. De forma semelhante, firmando-se em Luiz Alberto David Araújo, o Autor entende que “A deficiência visual consiste na ‘perda ou redução da capacidade visual em ambos os olhos em caráter definitivo e que não possa ser melhorada ou corrigida com o uso de lentes e tratamento clínico ou cirúrgico’ ”. [41]

De forma semelhante, Rosanne de Oliveira Maranhão, na interpretação do art. 227, inciso II, da Constituição Federal, chama a atenção para o fato de que a utilização da expressão “pessoa portadora de deficiência”, que será mais adiante aprofundada ao se abordar o conceito, não significa o reconhecimento de um grupo homogêneo. Assim, afirma a Autora:

Já sabemos, também, que os portadores de deficiência não constituem um grupo homogêneo. A própria Constituição Federal em vigor, no inciso II do art. 227, diz que a deficiência pode ser física, sensorial ou mental.

Entendemos que dentro desta classificação existem ainda outros fatores a serem analisados, tais como: se a deficiência é de nascença, se surgiu na infância, na adolescência ou na fase adulta, se apareceu na fase escolar ou no emprego etc. [42]

Consoante Maria Aparecida Gugel, com a incorporação da Convenção de Guatemala no ordenamento pátrio por meio do Decreto nº 3.956/2001, o modelo da CIF – Classificação Internacional de Funcionalidade – estaria mais consentânea com o conceito de deficiência propugnado pela referida convenção, que inseriu as dimensões econômicas e sociais ao termo. Por outro lado, o modelo da CID – Classificação Internacional de Doença – coloca o problema na pessoa portadora de deficiência e não no meio ambiente, razão pela qual a autora afirma:

Explica-se melhor a nova ferramenta: a Classificação Internacional de Funcionalidade – CIF , apoia-se no modelo de funcionalidade, tendo por elementos as funções e estruturas do corpo; atividades e participação; fatores ambientais e pessoais que se relacionam de forma complexa, interferindo dinamicamente entre si. Determinado elemento têm o potencial de alterar os demais elementos [...] (grifos inseridos)

A compreensão dos elementos que compõem a CIF é importante, pois permite que se proceda a comparação com o atual modelo da CID, 1980, Classificação Internacional de Doença, cuja avaliação está baseada em doenças e distúrbios, deficiências, incapacidades e desvantagens. Esse modelo vem sendo contestado pois é linear, com definição de uma única categoria de deficiências (impairement), frente ao elemento de desvantagem (as limitações da própria deficiência). O elemento da desvantagem é negativo, recaindo somente sobre a pessoa, e não interage com o ambiente à sua volta. (grifos inseridos) [43]

Segundo Wederson Santos, a CIF passou a incorporar a dimensão sociológica da deficiência, em que a limitação, qualquer que seja ela, não é problema do indivíduo em si, mas também da própria sociedade que, muitas vezes, não dá a acessibilidade na diversidade existencial. Assim, segundo o Autor, “A CIF busca agregar a perspectiva sociológica sobre a deficiência, que passou a compreendê-la como desigualdade social e não mais apenas como questão biomédica”. [44]

Sendo assim, cabe registrar que os elementos constitutivos da CIF são: a) funções e estruturas do corpo; b) atividade e participação e c) atividades ambientais e pessoais. Segundo Maria Aparecida Gugel, tais elementos caracterizam-se da seguinte forma, in verbis:

Funções e estruturas do corpo:

As Funções do Corpo são as fisiológicas do sistema do corpo, incluídas as psicológicas, 1) mentais; 2) sensoriais e dor; 3) da voz e da fala; 4) do sistema cardiovascular, hematológico, imunológico e respiratório; 5) dos sistemas digestivo, metabólico e endócrino; 6) geniturinárias e reprodutivas; 7) neuromusculoesqueléticas e relacionadas ao movimento; 8) da pele e estruturas relacionadas.

As Estruturas do Corpo são as partes anatômicas do corpo, tais como órgãos, membros e seus componentes como, 1) estruturas do sistema nervoso; 2) olho, ouvido e estruturas relacionadas; 3) estruturas relacionadas à voz e à fala; 4) estruturas dos sistemas cardiovascular, imunológico e respiratório; 5) estruturas relacionadas aos sistemas digestivo, metabólico e endócrino; 6) estruturas relacionadas aos sistemas geniturinário e reprodutivo; 7) estruturas relacionadas ao movimento; 8) pele e estruturas relacionadas.

As deficiências no contexto da CIF são eventos da função ou estrutura do corpo como uma perda ou anormalidade importante.

Atividade e participação:

Atividade, é a execução de uma tarefa ou ação por um indivíduo. Participação, é o envolvimento em uma situação de vida e estão indicadas na CIF como: aprendizagem e aplicação do conhecimento; tarefas e demandas gerais; comunicação; mobilidade; cuidado pessoal; vida doméstica; relações e interações interpessoais; áreas principais da vida; vida comunitária, social e cívica.

Limitações na atividade, são as dificuldades que um indivíduo pode ter em executar referidas atividades.

Restrições na participação, são os problemas que um indivíduo pode experimentar no seu envolvimento em situações de vida.

Os fatores ambientais transformam o ambiente físico, social e de atitudes no qual as pessoas vivem e conduzem suas vidas. Os fatores ambientais interagem com as funções do corpo, sendo típicos os exemplos de interação a qualidade do ar e a respiração do indivíduo; a luz e os sons dos ambientes com a visão e a audição. Portanto, são determinantes para a definição do grau de incapacidade em cada indivíduo. Nesses fatores ambientais incluem-se os Fatores Pessoais e Sociais.

Fatores ambientais:

Os Fatores Sociais são as características particulares de um indivíduo e suas situações de vida. Compreendem dados que não são partes da condição de saúde, por exemplo gênero, idade, raça, preparo físico, estilo de vida, hábitos, origem social, outras condições de saúde.

Os Fatores Sociais, ou as estruturas sociais, contém as regras de conduta ou sistemas da sociedade que incidem diretamente sobre os indivíduos. São exemplos, as organizações e serviços relacionados ao ambiente de trabalho, as atividades comunitárias, os órgãos governamentais, os serviços de comunicação e de transporte; as leis, os regulamentações, as atitudes e as ideologias. [45]

O modelo da CIF passou a ser aplicado com maior regularidade desde então e tem se intensificado sua utilização, ainda mais depois da incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em assinados em Nova York, em 30 de março de 2007 por meio do Decreto nº 6.949/2007.

Em momento anterior à incorporação da Convenção indicada logo acima, Luiz Alberto David Araujo levantou a respeito da expressão “pessoa portadora de deficiência” questionamento que ainda se pode considerar atual, que é a de se buscar a ampliação do entendimento de deficiência no nível de definição. Frise-se, a discussão do autor se encontra em nível da “definição” e não do “conceito” de deficiência. Segue o comentário do autor:

O desenvolvimento do estudo mostra que essa ideia deve ser ampliada para englobar um rol maior e mais variado de pessoas portadoras de deficiência, desde as originadas por problemas crônicos em órgãos (os renais crônicos, por exemplo) como aqueles que têm uma deficiência imunológica (portadores de AIDS) ou, ainda, os que apresentam erros natos de metabolismo (os fenilcetonúricos, por exemplo). [46] (grifos inseridos)

Ainda sob o prisma de definição, Luiz Alberto David Araujo chama a atenção para algumas deficiências que o autor denomina de “não aparentes”. Certamente tal questão ainda se mostra atual e controvertida, o que pode contribuir para uma reflexão mais apurada do próprio conceito de deficiência, haja vista que a definição vigente decorreu de concepção plasmada em determinado contexto socioeconômico. Então, suspeita-se que a classificação (definição) vigente pode não estar em sintonia com a sociedade hodierna. Em função disso, os comentários de Luiz Alberto David Araujo se mostram oportunos:

[...] O deficiente de audição ou de locomoção é logo notado, enquanto, por exemplo, uma pessoa portadora de deficiência de metabolismo não pode, sequer, ser identificada. (grifos inseridos) [47]

Consoante Luiz Alberto David Araujo, sob a ideia de dificuldade de integração social, podem-se identificar algumas condições de saúde, muitas delas “não aparentes”, têm o mesmo efeito prático limitador das deficiências já reconhecidas, tais como portadores do HIV, insuficiência renal crônica, talassemia, etc. Firmando-se nessa perspectiva, seria de se perquirir na possibilidade de ampliar a definição de deficiência, senão vejamos:

A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, também conhecida como AIDS ou SIDA (nos países de origem espanhola, em Portugal e na França), consiste em uma queda na resistência do indivíduo, acarretando uma fragilidade muito grande do organismo, expondo-o às mais variadas doenças [...]

A queda de resistência, provocada pela doença, faz com que o indivíduo permaneça, em alguns casos, sob tratamento prolongado, passando, obrigatoriamente, todas as tardes em hospitais, recebendo potássio; tudo isso e de acordo como estágio da doença, dificulta e chega a impedir sua integração social.

A insuficiência renal crônica pode ser provocada por uma série de doenças, dentre elas, a nefrite, hipertensão arterial, diabetes, infecções urinárias etc. A doença consiste na atrofia total e irreversível dos rins.

Os sintomas da doença já visualizam a dificuldade de integração social de seus portadores: urina frequente e, em fase adiantada, redução e espaçamento maior entre as idas ao banheiro, pressão alta, palidez, inchaço nas pálpebras e pernas.

O tratamento do doente renal crônico passa pela hemodiálise e pela diálise peritoneal, cuidados que devem ser seguidos por toda a vida afora. Outra solução é o transplante.

A talassemia é uma doença hereditária, que se identifica pela redução da quantidade de hemoglobina no sangue, daí acarretando anemia.

[...]

O tratamento pode ser feito de duas formas: a tradicional, mediante transfusão periódica de sangue e ingestão de remédios em, em alguns casos, transplante do baço. A segunda forma de tratamento é através do transplante de medula óssea.

[...]

Esses doentes, por necessitarem de transfusão de sangue, a cada três ou quatro semanas, encontram problemas de adaptação, especialmente diante da possibilidade, infelizmente cada vez maior, de sangue contaminado. [48]

Comunga do entendimento de Luiz Alberto David Araujo a respeito de deficiências “não aparentes”, Maria Ortega, citada por Sandro Nahmias Melo, a qual apresenta situações concretas de certas limitações, mas que não impedem o desempenho de atividade laboral. A autora faz descrição detalhada e argumentos sólidos com intuito de expandir a definição de deficiência, in verbis:

Os indivíduos com insuficiência cardíaca em decorrência de revascularização miocárdica com implantação de pontes de safena, assim como os portadores de insuficiência pancreática endócrina (diabetes) estão incluídos na categoria de deficientes.

Isto porque, como bem salientado pelo ínclito professor doutor Marcos de Almeida, da Escola Paulista de Medicina – em resposta aos quesitos que lhe formulamos para instruir ação por nós patrocinada – no primeiro caso ocorreu, em caráter permanente, perda de tecido muscular cardíaco e de células beta das ilhotas de Langerhans do pâncreas, no segundo caso. E,  em sequência acrescenta: ‘Esses elementos não se refazem. Há portanto que se restringir ações que exijam mais do que é capaz o músculo cardíaco que sobrou e ministração de medicação de reforço para as células betas que sobraram.

Tais pessoas, portanto, são deficientes, mas, também, são plenamente capazes de desempenhar diversas atividades, embora não dentro do padrão considerado normal pelo ser humano, visto estarem sujeitas a constantes acompanhamentos médicos, muitas vezes com períodos de internação hospitalar, além de dependerem de medicações específicas e controladas, de exercícios físicos e dietas alimentares rígidas.

Tais sujeições, contudo, não lhes retira a capacidade laborativa, mas apenas, limita seu grau de produtividade, gerando discriminação social. [49]

Por outro lado, Sandro Nahmias Melo esclarece que o entendimento mais amplo da expressão “pessoa portadora de deficiência”, aí considerando no âmbito de definição, não significa abandonar a observância do nível de limitação e o tipo de função a ser exercida, de modo a se buscar uma equalização adequada, in verbis:

Com relação ao tema deste estudo, o trabalho da pessoa portadora de deficiência, cumpre advertir que, apesar dos robustos argumentos expendidos por Maria Ortega e Luiz David Araujo, há que existir uma compatibilidade entre as limitações do portador de deficiência e a função a ser exercida. Ou seja, nem toda pessoa portadora de deficiência no metabolismo está apta a exercer qualquer função ou, mesmo em casos graves, sequer de exercer atividade que envolva labor. [50]

Para Sandro Nahmias Melo sua concordância com Maria Ortega e Luiz David Araujo a respeito da necessidade de se ampliar o significado e o sentido da expressão “pessoa portadora de deficiência”, não implica acatar qualquer tipo de deficiência “não aparente”, havendo necessidade de análise criteriosa do caso concreto, arremata Sandro Nahmias Melo. Nesse sentido afirma:

De resto, apesar de concordarmos com a tese dos autores supracitados no que tange ao reconhecimento de limitações não visíveis como deficiências, entendemos que, para o fim de identificar a pessoa portadora de deficiência para as quais a Constituição fez reserva legal de vagas, deve-se proceder em análise criteriosa de cada caso concreto. Não é tampouco, qualquer enfermidade ou problema no metabolismo capaz de equiparar uma pessoa ao portador de deficiência. Entendemos para que seja reconhecida a deficiência, a limitação não pode ser superada sem a ajuda de medicamentos (como a pressão alta) ou através de outros meios corretivos. [51]

Com base nas reflexões suscitadas até aqui, suspeita-se que a extensão da definição e da classificação da deficiência para efeito do contido no art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal, parece não estar em sintonia com a amplitude constitucional (conceitual) da expressão “pessoa portadora de deficiência”, na forma como será abordada na sequência.

Importa afirmar, mais uma vez, que transcende em muito ao propósito desta pesquisa aprofundar a definição e a classificação vigentes de deficiência para concorrência em concurso público, as quais estão contidas essencialmente no Decreto nº 3.298/99, dada a complexidade e a diversidade de situações de pessoas com deficiência ou até mesmo com doenças eventualmente passíveis de inclusão no rol classificatório, assim entendido, para efeito do teor do art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal.

3.2 Pessoa portadora de deficiência: conceito jurídico

O conceito e definição do objeto de estudo são sempre fundamentais para delinear claramente a amplitude de discussão científica. No presente caso, o conceito em si se confunde com o próprio tema de pesquisa, que consiste na busca do alcance constitucional de “pessoa portadora de deficiência” no contexto do inciso VIII do art. 37 da Carta Magna. Portanto, no capítulo anterior, foi apresentada a classificação de deficiência em perspectiva evolutiva, sem a pretensão de discutir a definição, porquanto foge ao escopo desta pesquisa.

Dessa forma, a discussão da amplitude constitucional do termo “pessoa portadora de deficiência” contido no art. 37, inciso VIII, trafegará nesta pesquisa na órbita da extensão conceitual. Nesse sentido, a classificação posta de forma descritiva no capítulo anterior teve o propósito somente de indicar o entendimento concreto do legislador e da doutrina. Tratou-se ali, também, da definição adotada atualmente de deficiência, inclusive para efeito de concurso público, cuja aplicação em editais será objeto de análise em capítulo que aborda a hermenêutica constitucional.

A importância da noção ou delineação prévia do objeto de estudo científico é condição sine qua non para se chegar a uma conclusão razoável e plausível, ainda que provisória. A exemplo do que ocorre com a discussão do conceito da ciência do próprio Direito em si, resguardadas as devidas proporções, no caso em estudo da amplitude constitucional de “pessoa portadora de deficiência” para efeito de concurso público, verifica-se que a concepção equalizada a priori permite desdobramento lógico e racional do que se pretende interpretar cientificamente. Assim, tornam-se oportunos os ensinamentos de Paulo Nader, nos seguintes termos:

Ainda que o jurista não apresente uma definição formal do Direito, nem haja cogitado a respeito, necessariamente há de ter um conceito daquele objeto. Isto é forçoso, de vez que não é possível conhecer e utilizar bem um sistema jurídico sem a prévia representação intelectual do Direito. Como se posicionar diante de indagações relativas à efetividade, como as que envolvem os problemas de obrigatoriedade das leis injustas ou das leis em desuso, sem a prévia convicção do que seja Direito? Pode-se afirmar que esse conceito, um dos mais nobres versados na Filosofia do Direito, uma vez alcançado pelo espírito, será diretor do pensamento e das ideias quanto a numerosas questões. Sem que o analista identifique, previamente, aquela noção, não poderá desenvolver, por exemplo, a sua teoria da interpretação. (grifos inseridos) [52]

Cabe assinalar que há diferença entre conceito e definição, embora ambos os termos estejam inter-relacionados e sejam interdependentes. No caso de conceito, trata-se do próprio processo cognitivo em si, do intuir e direcionar o pensar científico para o objeto de análise, enquanto a definição é a delimitação desse juízo prévio estabelecido pelo conceito, mediante sinalização de atributos substanciais e caracterizadores. Paulo Nader lida com o tema da seguinte forma:

Enquanto a definição é juízo externo, que se forma pela indicação de caracteres essenciais, conceito ou noção é juízo interno que se revela apreensão mental. Com a posse ou saber, pelo que se distingue o gênero da espécie ou uma espécie de outra, o espírito exercita o pensamento, reflete. O Direito enquanto conceito é objeto em pensamento; enquanto definição, é divulgação de pensamento mediante palavras. O conceito pode ser expresso tanto pela definição como por formas desenvolvidas. Para a primeira, há regras técnicas ditadas pela Lógica. Para a segunda, o espírito voa livre [...]. (grifos inseridos)

[...]

Quem pretende elaborar a definição de Direito deve primeiramente conceituá-lo, compreendê-lo amplamente, pois só podemos indicar os caracteres de um objeto na medida em que o conhecemos. A arte de definir é a arte de derivação de conceito. Tão complexa quanto a tarefa de conceituar o Direito é defini-lo. Entre uma e outra deve haver perfeita simetria, pois quem expressa deve fazê-lo na forma de seu pensamento [...] (grifos inseridos) [53]

Constata-se por meio da análise acima feita por Paulo Nader que a articulação do conceito antecede a da definição, de modo que o primeiro condiciona o segundo. Em função disso, caso não haja aprofundamento suficiente para se delinear o “ser” de determinado objeto, seu conceito, certamente seus atributos e especificidades indicados na definição ficam comprometidos.

Naturalmente a questão particular ora posta – diferença entre conceito e definição – remete à discussão ontológica bem mais profunda, que se constitui por sua vez numa verdadeira epistemologia para desvelamento de fenômenos, do que é o “ser”, de sua essência e de sua configuração na concretude. Muito embora não haja pretensão nesta pesquisa de aprofundamento deste tema, pode-se afirmar, sob a perspectiva da epistemologia fenomenológica que o “conceituar” e o “definir” compõem atividades cognoscíveis da compreensão e interpretação do objeto de pesquisa, em que se discute a possibilidade do conhecimento, sua origem e limitações. Assim, convém evocar André Dartigues que afirma:

[...] Consciência e objeto não são, com efeito, duas entidades separadas na natureza que se trataria, em seguida de pôr em relação, mas consciência e objeto se definem respectivamente a partir desta correlação que lhes é, de alguma maneira, co-original [...] Se a consciência é sempre ‘consciência de alguma coisa’ e se o objeto é sempre ‘objeto para a consciência’, é inconcebível que possamos sair dessa correlação, já que, fora dela, não haveria nenhum dos dois pólos [...] [54] (grifos inseridos)

Em síntese apertada, na perspectiva fenomenológica, o reconhecimento de consciência intencional e objeto intencional remetem-nos ao cerne desta epistemologia: intencionalidade. Assim, a intenção significa que a “consciência está para um objeto", assim como "o objeto está para uma consciência”. As implicações mais imediatas deste raciocínio são: não existe o ser-em-si, o noúmeno kantiano e nem o sujeito em si, o cogito cartesiano, em outros termos, não é a partir do sujeito puro que se chega ou se conhece o objeto, e nem do contrário, isto é, não é o objeto (por si mesmo) que transmite o sentido ao sujeito (consciência).

Então, conceituar e definir determinado objeto de pesquisa, em última instância, consiste em conhecer o fenômeno, atingir seu significado, seu sentido e desvelá-lo, desde que admitidas certas premissas, regras e metodologia de dada teoria do conhecimento. Nesse particular a fenomenologia é bastante elucidativa, porquanto se propõe a “volta às coisas mesmas”, na medida em que nega a existência do ser em si e da consciência cognoscível solipsista, permitindo compreensão e interpretação do fenômeno despido de visões apriorísticas, conforme se depreende da afirmação de André Dartigues, segundo o qual “Voltar às coisas mesmas é voltar a esse mundo antes do conhecimento, do qual o conhecimento fala sempre e com relação ao qual toda determinação científica é abstrata, signitiva e dependente [...]. (grifos inseridos) [55]

Esse postulado da teoria fenomenológica “volta às coisas mesmas” é uma alternativa promissora para elucidação do tema ora posto, haja vista que o alcance do sentido de “pessoa portadora de deficiência” para efeito de concurso público requer abordagem que transcenda o entendimento normativo já sedimentado. Consoante discutido alhures o Decreto nº 3.298/99 – com respectivas alterações – é composto de classificações que tendem mais a “marcar” certas pessoas do que propriamente possibilitar a inserção de indivíduos que detêm atributos diferenciados e exigem tratamento também sob a perspectiva do princípio da igualdade. Então, ao invés de debater definição, é mais produtivo aprofundar o debate a respeito da amplitude a ser dada ao contido no art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal. Neste ponto, cabe a afirmação teórica de W. Luijpen:

Todo o universo da ciência se constrói sobre o mundo, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciando-lhe exatamente o seu sentido e o seu alcance, cumpre despertar primeiro essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. (grifos inseridos) [56]

Nunca é demais registrar que o conceito sempre emerge em determinado contexto socioeconômico, ficando condicionado às possibilidades da sociedade na qual impõe valores, regras, visão de mundo, rituais etc. Conforme afirmado logo acima, se a definição ou classificação se sobrepõem ao conceito do qual depende, certamente cria-se um descompasso entre a lei e a realidade. Ora, o próprio conceito se transforma em função da mutação socioeconômica, o que se dirá da definição e classificação, conforme se depreende da afirmação de Samira Saad Pulchério Lancillotti, nos seguintes termos:

O princípio que norteia esta análise é o de que a noção de deficiência vai se modificando historicamente, à medida que as condições sociais são alteradas pela própria ação do homem, gerando novas necessidades na sua relação com o meio social. (grifos inseridos) [57]

Prosseguindo nessa linha de raciocínio Samira Saad Pulchério Lancillotti destaca que a deficiência é um constructo histórico e plasmada a partir das condições sociais, cuja identificação está condicionada ao próprio modelo de sociedade que se constrói. Com isso, a discriminação de indivíduos fora dos padrões estabelecidos como ideais, certamente os afasta de ter acesso às oportunidades para melhorar suas condições em nível de igualdade em relação àqueles que não possuem qualquer tipo de deficiência. Neste caso, cabe aqui transcrever os comentários da autora a respeito desta questão:

Ante a afirmação de que a deficiência é uma condição histórica, resta a assertiva de que, em todos os tempos, de uma forma ou de outra, algumas deficiências foram identificadas e esses homens foram discriminados em seu grupo social, o que aparentemente indicaria o caráter permanente da deficiência. (grifos inseridos)

Assim, o conceito de anormalidade social vai sendo historicamente construído, complexificando-se na mesma medida em que as condições sociais vão sendo transformadas pela relação do homem com o meio. Dessa maneira, com base na ciência, observam-se mudanças no perfil daqueles identificados como deficiente. [58] (grifos inseridos)

Para Marcelo Medeiros, Débora Diniz e Lívia Barbosa, numa perspectiva sociológica, mas aderente ao enfoque jurídico ora apresentado, a definição – entende-se este termo aqui na perspectiva de conceito, na forma tratada anteriormente – de deficiência não ocorre somente pela análise da limitação, mas no nível de interação com o meio ambiente, in verbis:

Não há dúvida de que definir deficiência é um passo crucial de uma política voltada aos deficientes. Tradicionalmente essa definição foi tratada como um ato técnico de natureza biomédica, e os reflexos estão na forma como a deficiência é identificada nos censos demográficos ou tratada como critério de elegibilidade para benefícios com o BPC – Benefício de Prestação Continuada. Porém, à medida que se reconheceu que a deficiência não é dada exclusivamente por uma limitação do corpo, mas pela interação desse corpo com um ambiente hostil, a definição de deficiência se deslocou do modelo biomédico em direção a um modelo social fundamentalmente preocupado com a relação entre indivíduo e sociedade. [59] (grifos inseridos)

Desde logo convém registrar que esta empreitada de se discutir o conceito de deficiência não é das mais simples e se não houver a devida cautela, corre-se o risco de perder de vista o essencial, que é o próprio ser humano, em sua existência multiforme, polissêmica e descambar para as limitações da deficiência per se. De todo modo, o que se pretende nesta pesquisa é projetar o olhar o mais expansivo possível, respeitando-se os princípios hermenêuticos, a fim de vislumbrar possibilidades do que poderiam ser ‘pessoas portadoras de deficiência’ para além do que se reconhece atualmente, atentando-se para a sociedade contemporânea. Esse posicionamento é adotado por Sandro Nahmias Melo quando afirma:

Como resta evidente, após a exposição do que convencionamos chamar ‘problema terminológico’, a tarefa de conceituar a pessoa portadora de deficiência é extremamente complexa, em função dos inúmeros elementos e fatores que podem gerar uma ‘condição de deficiência’. (grifos inseridos)

[...]

Com relação ao conceito da pessoa portadora de deficiência, preocupa-nos mostrar a amplitude do mesmo. São inúmeras as chamadas ‘condições marginalizantes’. Como distingue Hugo Nigro Mazzilli ‘o campo das deficiências tem natureza mais variada possível. Desde a subnutrição, o subdesenvolvimento, os acidentes ecológicos, os acidentes de trânsito, os acidentes de trabalho, o uso indevido de drogas, a falta de uma política pré-natal adequada – tudo isso tem contribuído para o surgimento de pessoas de acentuadas deficiências mentais, sensoriais, orgânicas, comportamentais e sociais’. (grifos inseridos) [60]

Para Sandro Nahmias Melo o aspecto social também é relevante para propiciar um conceito adequado para a expressão ‘pessoa portadora de deficiência’, a fim de delinear extensão com o maior alcance possível. Tal perspectiva de análise certamente deve reflete a preocupação do autor não somente com a classificação ou definição, mas com a abrangência a ser dada ao termo, conforme se depreende de sua assertiva abaixo:

[...] Por isso, entendemos que o conceito de pessoa portadora de deficiência deve ser, com base em critérios razoáveis e sensatos, o mais amplo possível. Centrado, não apenas nas eventuais limitações físicas, mentais ou sensoriais, mas, também, nas limitações sociais. [61] (grifos inseridos)

Na análise das legislações iniciais a respeito do tema no ordenamento jurídico pátrio, Sandro Nahmias Melo tece breves comentários da Lei n. 7.853/89, Decreto n. 914/1993 e Decreto n. 3.298/1999, mediante perspectiva evolutiva, registrando o autor a dificuldade que tem o legislador em delinear um conceito o mais representativo possível de deficiência, in verbis:

A própria Lei n. 7.853/89 que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, a integração social destas, bem como sobre a Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, não teceu qualquer definição sobre o seu público-alvo. (grifos inseridos)

Apenas com o Decreto n. 914, de 6 de setembro de 1993 é que surgiu a primeira definição, ainda que genérica, de pessoa portadora de deficiência, dispondo, in verbis:

Art. 3º. Considera-se pessoa portadora de deficiência aquela que apresenta, em caráter permanente, perdas ou anormalidade de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano.

[...]

Apenas com o advento do Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999, regulamentador da Lei n. 7.853/89 que dispõe sobre a Política Nacional para integração da pessoa portadora de deficiência, é que foram especificados os critérios para a caracterização de deficiência. Este Decreto, por seu turno, embasou seus preceitos na conceituação adotada pela Organização Mundial de Saúde – OMS, estabelecendo as definições de deficiência, deficiência permanente e incapacidade e enfocando as categorias de deficiência (física, sensorial, mental e múltipla) [...]. [62]

Antes de se prosseguir na discussão conceitual de deficiência, convém consignar que esta é totalmente diversa de doença. Assim, segundo Maria Aparecida Gugel, desde a edição do Decreto nº 3.956/2001, que promulgou a Convenção de Guatemala, foram agregados outros elementos ao conceito de deficiência que o distingue de doença ou incapacidade, bem como destaca o papel do impacto do ambiente externo (físico, social e de trabalho) sobre o portador de deficiência. Em função dessa nova abordagem conceitual, propuseram-se identificar as situações a respeito da funcionalidade da pessoa e suas restrições, decorrentes da estrutura corporal e na interação com o ambiente, in verbis:

Na definição de deficiência da Convenção da Guatemala, reforça-se a idéia de que a deficiência física, mental ou sensorial decorre das restrições geradas pelas limitações da deficiência que poderão, ou não, ser agravadas pelo ambiente externo. É certo que se o ambiente externo (pessoas reunidas em comunidades, a arquitetura urbana, o transporte coletivo, as ferramentas de apoio para o trabalho, entre outros elementos) for desfavorável, não estiver adaptado e pronto para receber e adequadamente interagindo com a pessoa com deficiência, as limitações ocasionadas pela deficiência não serão superadas. (grifos inseridos)

Sob qualquer ângulo de análise das definições até aqui expostas, o que não se pode permitir ao intérprete das normas em vigor é a associação da deficiência com doença ou incapacidade, principalmente para o trabalho e para a vida independente. (grifos inseridos)

A atual definição de deficiência da Convenção da Guatemala aproxima-se mais da definição assentada na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF – da Organização Mundial da Saúde, que não se refere a pessoas doentes, mas ‘a todas as pessoas’. A saúde e os estados relacionados à saúde associados a todas as condições de saúde’ (CIF, 2003, p. 18), com o objetivo de descrever situações relacionadas à funcionalidade da pessoa e suas restrições, causadas pela estrutura do corpo (nos casos de deficiência) em relação ao ambiente físico, social e de trabalho. [63] (grifos inseridos)

Também comunga do entendimento de que o termo ‘deficiência’ não se confunde com ‘doença’ João B. Cintra Ribas, segundo o qual a relação existente entre ambas é de que algumas deficiências são oriundas de doença, conforme se verifica abaixo:

[...] As pessoas deficientes, salvo algumas poucas exceções, não são pessoas doentes. Ao contrário, como quaisquer outras pessoas, devem gozar de boa saúde. A relação existente entre doença e deficiência é que algumas deficiências se originam em doenças. A deficiência, neste caso, é a sequela trazida pela doença [...] (grifos inseridos)

Doença é um processo. Deficiência é um estado físico ou mental eventualmente limitador. Existem, é verdade, alguns casos – mais incomuns – de simultaneidade. Nestes as pessoas são portadoras de uma doença que se associa à deficiência. Três exemplos devem ser o bastante: a distrofia muscular progressiva (tipo de doença muscular), a hanseníase (mal-de-Hansen, indevidamente chamada de lepra) e os distúrbios cardiovasculares. Mesmo assim, a maioria destas doenças pode ser curada, restando somente a deficiência ou nem isso [...] [64] (grifos inseridos)

Nessa mesma linha de raciocínio encontra-se Sandro Nahmias Melo, o qual se firmando em Maria Ortega, entende que deficiência não se confunde com doença, mas é como se fosse uma ‘insuficiência’, uma falha, que acaba por limitar o indivíduo, in verbis:

Seguindo a divisão conceitual da Organização Mundial de Saúde, Maria Ortega defende que ‘deficiência não é ‘doença’. É uma ‘insuficiência’, uma falha, um defeito que cria limitações ao seu portador, sem contudo, torná-lo absolutamente incapaz para o desempenho de determinadas atividades laborativas’ [...]. [65]

Muito embora deficiência seja distinta de doença, consigne-se que o efeito prático de condição existencial nos dois casos pode apresentar, em muitas situações, limitações e dificuldades de integração ao meio social em graus semelhantes. Para efeito ilustrativo, conforme abordado alhures, tem-se a pessoa que se utiliza de cadeiras de rodas para locomoção, quer seja por razões congênitas ou acidente, o que se reconhece como deficiência, conforme art. 4º, do Decreto nº 3.298/99. De outro lado, o indivíduo que padece de alguma anomalia cardíaca, em que necessita de utilização de medicamentos ou outros recursos da medicina, e.g., marca-passo para manter convivência com a alteridade. Observe-se que em ambas as situações os indivíduos enfrentarão obstáculos que outras pessoas sem deficiência ou sem doença não terão.

Feito isso, e, retomando a questão conceitual de deficiência, verifica-se em Luiz Alberto David Araújo reflexão que leva muito em consideração o aspecto da “integração na sociedade” como determinante do conceito da expressão em estudo. Assim, segundo o autor o conceito de pessoa portadora de deficiência deve ter como parâmetro o grau de dificuldade para integração social e não somente a falta de um membro ou reduções auditivas ou visuais:

O que define a pessoa portadora de deficiência não é falta de um membro nem a visão ou audição reduzidas. O que caracteriza a pessoa portadora de deficiência é a dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade. O grau de dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade, o grau de dificuldade para a integração social é que definirá quem é ou não portador de deficiência. (grifos inseridos)

[...]

A deficiência, portanto, há de ser entendida levando-se em conta o grau de dificuldade para a integração social e não apenas a constatação de uma falha sensorial ou motora, por exemplo. (grifos inseridos) [66]

Em reforço à ideia de que a “integração na sociedade” é condição determinante de deficiência, Luiz Alberto David Araujo afirma à frente que não é a deficiência per se, mas o nível de dificuldade de integração social o fator a ser considerado para definir se a pessoa é portadora ou não de deficiência, in verbis:

A questão, assim, não se resolve sob o ângulo da deficiência, mas, sim sob o prisma da integração social. Há pessoas portadoras de deficiência que não encontram qualquer problema de adaptação social [...] [67] (grifos inseridos).

Verifica-se em Wederson Santos, Débora Diniz e Natália Pereira, abordagem no campo da sociologia que se torna bastante oportuna na presente temática, ainda que o enfoque desses autores seja o Benefício de Prestação Continuada – BPC – nos termos do art. 203, da Constituição Federal, na medida em que se reforça a dimensão socioeconômica, na qual a pessoa portadora de deficiência busca interagir. Nessa perspectiva de análise, a deficiência per se não é considerada uma ‘anormalidade’ ou um fenômeno existencial a se ‘ajustar’ ou ‘integrar’ com o ‘padrão’, ao contrário, busca-se indicar o seu caráter inerente do próprio ser-no-corpo, de forma que o desafio dado é a interação ou inclusão social das pessoas portadoras de deficiência, in verbis:

[...] Habitar um corpo deficiente é viver em um corpo marcado socialmente pelo estigma, pela desvantagem social ou pela rejeição estética. A desvantagem social imposta pela deficiência não é uma sentença da natureza, mas uma expressão da opressão pelo corpo considerado anormal. Esse giro argumentativo da deficiência como tragédia pessoal para a deficiência como matéria de justiça social foi o que permitiu o deslocamento do debate dos saberes biomédicos para os saberes sociais. (grifos inseridos)

[...]

A compreensão de que a deficiência é uma das muitas formas de se habitar os corpos, podendo inclusive constituir objeto de orgulho pela diferença, como ocorre com as comunidades surdas, é ainda desafiante para os saberes biomédicos. O surdo não é alguém que habita o corpo com restrições auditivas, mas alguém que vive em uma sociedade que discrimina outras formas de comunicação que não o oralismo. A afirmação do sujeito passa a se dar pela enunciação do corpo deficiente e não mais pela negação dos impedimentos corporais, em uma aproximação dos estudos sobre deficiência (disability studies) do campo dos estudos culturais, feministas e antirracistas. Isso não significa o abandono das estratégias de cuidado, cura ou reabilitação oferecidas pela biomedicina, mas anuncia seu caráter insuficiente para a promoção da igualdade em ambientes injustos [...] [68] (grifos inseridos)

Não obstante o posicionamento acima esteja no contexto do Benefício de Prestação Continuada – BPC – e atrelado a uma perspectiva sociológica, é inegável a aderência a respeito do conceito de deficiência no sentido jurídico e no âmbito do inciso VIII do art. 37 da Constituição Federal. Na referida perspectiva de análise a diversidade é reconhecida como premissa, de modo que o existir com deficiência é interpretado como extensão do próprio mundo, cabendo interação intersubjetiva para compreensão recíproca entre quem não tem deficiência e quem tem deficiência.

Dessa forma, há de se reconhecer como relevante a variável “interação” para melhor compreensão e definição jurídica adequada da expressão “pessoas portadoras de deficiência” no contexto inciso VIII do art. 37 da Constituição Federal, motivo pelo qual se torna oportuno evocar a afirmação de Marcelo Medeiros, Débora Diniz e Lívia Barbosa:

No caso do BPC, que seleciona pessoas incapazes para o trabalho e a vida independente, a identificação da incapacidade foi tradicionalmente feita por médicos peritos treinados para ver incapacidade para o trabalho como um fenômeno exclusivamente biológico, cuja intensidade poderia ser determinada em exames clínicos e comparada a um padrão de referência. A nova maneira de entender a deficiência impõe aos peritos ou a quem for responsável pelas avaliações uma preocupação quanto à interação dos atributos corporais com outros atributos individuais, como sexo, idade e educação, e com o mercado de trabalho local. (grifos inseridos)

[...] Em um exemplo paradigmático para outras políticas, os próprios médicos peritos estão assumindo o papel de protagonistas na mudança do modo de operar do BPC em direção a um modelo de compreensão da deficiência que leva em conta a interação com o meio e os demais atributos individuais. [69] (grifos inseridos)

Também partilha de perspectiva sociológica a respeito da discussão conceitual de deficiência Sandro Nahmias Melo, segundo o qual não se pode afastar a leitura sociológica desta temática, ou até mesmo outros ramos científicos, sem que isso implique abandono da compreensão jurídica, in verbis:

[...]

Assim, a referência a termos, bem como a adoção de critérios de outras ciências que não a jurídica, tais como a Medicina, a Psicologia, ou mesmo a Sociologia, se justifica pela necessidade de se fazer uma abordagem didática e clara do tema estudado [...] (grifos inseridos)

Entendemos, para fins deste trabalho, que a deficiência deve ser abordada como uma questão social. A cegueira, por exemplo, não pode ser simplificada a um problema de restrições do campo visual. Ela é resultado das restrições e barreiras sociais. O mesmo ocorre com a surdez, mudez [...]. (grifos inseridos) [70]

Mais adiante Sandro Nahmias Melo clarifica seu conceito a respeito da expressão ‘pessoa portadora de deficiência’, ressaltando que o movimento de integração deve partir do próprio indivíduo que apresenta a limitação, in verbis:

Diante de todo o exposto, sempre considerando o componente social como defendido alhures, parece-nos autorizado concluir que: Os portadores de deficiência: são pessoas com certos níveis de limitação, física, mental ou sensorial, associados ou não, que demandam ações compensatórias por parte dos próprios portadores, do Estado e da sociedade, capazes de reduzir ou eliminar tais limitações, viabilizando a integração social dos mesmos. (grifos inseridos)

Note-se que, no conceito proposto, colocamos em primeiro plano a necessidade de medidas compensatórias por parte dos próprios portadores de deficiência, o que, em síntese estreita, significa que deve partir destes o empenho para superar as suas próprias limitações. O portador de deficiência deve querer, deve decidir, superar as suas limitações. [71] (grifos inseridos)

Segundo Sandro Nahmias Melo, firmando-se em Maria Ortega, é preciso atentar para as ‘insuficiências’ oriundas de estados de saúde ou deficiências “não aparentes”, mas que não obstaculizem o desempenho de atividade laboral, a fim de considerá-las também como deficiência para efeito do contido no art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal. , in verbis:

A Autora (Maria Ortega) conclui que as insuficiências derivadas de condições não aparentes, desde que causem ao portador uma redução da capacidade laborativa, devem ser consideradas como deficiências para efeitos do inciso VIII, do art. 37, da CF/88. [72]

Com a promulgação Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo – aprovada pelo Decreto Legislativo nº 186/2008, ganhou status constitucional, visto que cumpriu o disposto no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal – por meio do Decreto nº 6.949/2009 entende-se que esta se tornou um marco para solucionar com maior grau de justiça as necessidades e problemas enfrentados pelas “pessoas portadoras de deficiência”.

Particularmente no que se refere a concurso público, constata-se o teor da alínea “e” do Preâmbulo da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, reconhece que a deficiência é um conceito em aberto de deficiência e que sua caracterização decorre da interação entre pessoas portadoras de deficiência e as barreiras relacionadas aos comportamentos e ao ambiente, in verbis:

Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas (grifos inseridos) [73]

Ainda no contexto do preâmbulo da referida convenção, são dispostas outras alíneas que convergem para melhor delineação e clarificação do conceito de “pessoa portadora de deficiência”. Dessa forma, é dada relevância para a questão da acessibilidade em todos os seus desdobramentos, não apenas na questão física de locomoção, o que pode se estender para a questão de concurso público, conforme se depreende abaixo, do disposto na alínea “v” e “y”:

V) Reconhecendo a importância da acessibilidade aos meios físico, social, econômico e cultural, à saúde, à educação e à informação e comunicação, para possibilitar às pessoas com deficiência o pleno gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais (grifos inseridos).

Y) Convencidos de que uma convenção internacional geral e integral para promover e proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência prestará significativa contribuição para corrigir as profundas desvantagens sociais das pessoas com deficiência e para promover sua participação na vida econômica, social e cultural, em igualdade de oportunidades, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos (grifos inseridos). [74]

Por outro lado, constata-se na aludida convenção, em seu art. 1, parte 1, que trata do propósito, enunciado que acaba por dar um contorno do entendimento da expressão “pessoa portadora de deficiência”, em nível de definição, que não parece tão aderente à proposta do conceito da alínea “e”, contido no preâmbulo. Prima facie, o teor normativo do art. 1, parte 1, não possibilita hermenêutica com maior amplitude, a fim de considerar, por exemplo, as deficiências “não aparentes” discutidas no capítulo anterior, conforme se verifica abaixo:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (grifos inseridos). [75]

De todo modo, em linhas gerais, a partir do que se extraiu da referida convenção, é possível identificar uma busca, por parte do legislador, em se ampliar o conceito de deficiência, permitindo que pessoas com certas limitações possam também compor o grupamento destinado a vagas de “pessoas portadoras de deficiência” em concurso público, nos termos do art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal, e não somente aquelas situações já definidas e classificadas no Decreto nº 3.298/99 e respectivas alterações. É o caso de limitações orgânicas ou metabólicas, “não aparentes”, que exigem tratamento diferenciando comparativamente a quem não possui nenhum tipo de limitação, de modo a se garantir igualdade de oportunidades.

Por ora, cabe registrar que a proposta de conceito “em evolução” da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o que subtende dar maior amplitude e buscar maior alinhamento com o contexto socioeconômico vigente, parece ainda não refletir na legislação que trata da definição e classificação de “pessoa portadora de deficiência” para efeito de concurso público. Conforme se verificará no capítulo seguinte, a aplicação do art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal, mostra-se restritiva, o que afronta o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade.

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Sobre o autor
Robson Gonçalves Dourado

Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Brasília; Pós-Graduado em Direito e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Distrito Federal; Pós-Graduado em Direito e Prática Processual nos Tribunais pelo Uniceub; Bacharel em Direito pelo Uniceub-DF; MBA em Marketing pela FGV-DF; Licenciado em História pelo Uniceub-DF; Advogado; Colaborador na Defensoria Pública do DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOURADO, Robson Gonçalves. Pessoas portadoras de deficiência e concurso público.: Amplitude constitucional do art. 37, VIII, da Constituição de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4157, 18 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34019. Acesso em: 19 abr. 2024.

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