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Pessoas portadoras de deficiência e concurso público.

Amplitude constitucional do art. 37, VIII, da Constituição de 1988

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18/11/2014 às 12:13
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4 EPISTEMOLOGIA E HERMENÊUTICA: AMPLITUDE CONSTITUCIONAL DE DEFICIÊNCIA

A utilização de métodos e de técnicas de interpretação constitucional deve contemplar previamente a discussão dos pressupostos e das perspectivas epistemológicas que lhe dão sustentação. Nesse sentido, os métodos e as técnicas decorrem da base teórica a que se filia o operador de direito, destacando-se que o atual momento reflete a convivência das mais diversas epistemes, cujo contexto foi denominado de pós-modernidade, de maneira não se poder afastar quaisquer delas aprioristicamente. [76]

Nesse contexto da pós-modernidade eclodem questões até então pouco debatidas ou até mesmo não aventadas em épocas passadas, e.g., a crise paradigmática em que a própria ciência tem seus pilares sacudidos, rediscutidos, reconstruídos ou transformados. Assim, as últimas epistemologias generalizantes e abarcadoras de explicação do mundo real (dimensão do ser), quais sejam, Positivismo propagado por Augusto Comte e Marxismo formulado por Karl Marx e seus respectivos desdobramentos teóricos não mais persistem, uma vez que não são suficientes para solucionar os problemas que emergem num mundo cada vez mais complexo e em contínuas mudanças. Certamente tal transformação reflete igualmente na ciência jurídica, que lida com a dimensão do dever ser. [77]

Verifica-se, então, o surgimento e desdobramento de várias epistemes, muitas vezes contraditórias e irreconciliáveis entre si, na medida em que adotam premissas, métodos e objetos específicos de interpretação dos fenômenos. Na verdade, em algumas situações, os ramos epistêmicos que se propagaram desde o final do século XIX e expandiram no século XX, tais como o estruturalismo, a fenomenologia, o existencialismo, a semiótica, a teoria crítica de ascendência marxista, a semiologia, entre outros, têm encontrado certos pontos de convergência. Todavia, isso não é tão comum, haja vista que no meio acadêmico hodierno, particularmente, entre as ciências sociais aplicadas, que é o caso do Direito, a divergência e a contradição predominam no embate científico. Assim, a polissemia dos discursos a respeito dos objetos científicos na pós-modernidade são vistos por Jean-François Lyotard, em clara inspiração em Wittgenstein, nos seguintes termos:

Simplificando ao extremo, considera-se ‘pós-moderana’ a incredulidade em relação aos metarrelatos [...].

[...]

Assim, nasce uma sociedade que se baseia menos numa antropologia newtoniana (como o estruturalismo ou a teoria dos sistemas) e mais numa pragmática das partículas da linguagem. Existem muitos jogos de linguagem diferentes; trata-se da heterogeneidade dos elementos [...].

Na sociedade hodierna não se tem mais uma “ciência normal” ou paradigma compartilhado, em que os problemas se adéquam ao modelo teórico vigente, senão ficariam descartados a priori para qualquer tipo de análise científica. Tal postura científica já não é mais admissível, cujo diagnóstico Thomas S. Kuhn fez nos seguintes termos:

A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma frequentemente nem são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias; frequentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros. Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma. (grifos inseridos) [78]

Nesse sentido, a atividade de interpretação do objeto de conhecimento exige posicionamento crítico do operador do direito, em função do momento ora vivenciado – da pós-modernidade, de mudança paradigmática. Thomas S. Kuhn entende que, embora o mundo em si não mude com essa transformação da ciência, a aplicação de epistemes emergentes acabam por conduzir o intérprete a um novo mundo, cuja visão passa a identificar outras facetas do fenômeno até então não percebidas, in verbis:

[...] embora o mundo não mude com uma mudança de paradigma, depois dela o cientista trabalha em um mundo diferente [...] Em vez de ser um intérprete, o cientista que abraça um novo paradigma é como o homem que usa lentes inversoras. Defrontado com a mesma constelação de objetos que antes e tendo consciência disso, ele os encontra, não obstante, totalmente transformados em muitos de seus detalhes. (grifos inseridos) [79]

Para Michel Foucault, o processo hermenêutico tem concepção ainda mais radical, na medida em que Foucault trata a ciência em geral como ambiente de interpretação contínua, numa construção e reconstrução de discursos que não conseguem retornar à suposta origem ou ao sentido primeiro do conhecimento. Segundo o autor, tudo é interpretação de interpretação, ou seja, a construção discursiva da ciência revela mais do tempo-espaço a que se vincula do que propriamente do momento em que o texto sob análise foi elaborado, in verbis:

[...] As próprias palavras não passam de interpretações; ao longo de sua história, elas interpretam antes de serem signos, e só significam finalmente porque são apenas interpretações essências [...] não é porque há signos primeiros e enigmáticos que estamos agora dedicados à tarefa de interpretar, mas sim, porque há interpretações, porque não cessa de haver, debaixo de tudo o que se fala, a grande trama das interpretações violentas. (grifos inseridos)

[...]

[...] A interpretação se confronta com a obrigação de interpretar a si mesma infinitamente, de sempre se retomar [...] A morte da interpretação é acreditar que há signos, signos que existem primeiramente, originalmente, realmente, como marcas coerentes, pertinentes e sistemáticas. (grifos inseridos) [80]

Diante do que foi abordado até aqui, pode-se constatar que uma discussão da hermenêutica constitucional e dos métodos/técnicas correspondentes de aplicação deve ter como pano de fundo a questão da própria linguagem – na dimensão epistemológica – senão corre-se o risco de reduzir a interpretação de determinado direito fundamental ou garantia tão somente tendo por base os aspectos metodológico e instrumental. Nesse sentido, a opção por este ou aquele método ou técnica de interpretação deve ser evidenciada no plano epistemológico, ou seja, colocando-se a própria teoria de sustentação de dada interpretação na sua nudez estrutural.

Inspirando-se nas perspectivas teóricas de Heidegger e Wittgnstein, Lênio Luiz Streck, sintetiza que a linguagem não é um ente externo ao homem, mas um atributo essencial que lhe é peculiar para gestação do próprio conhecimento do ser geral no sentido ontológico, da alteridade e de si mesmo. Segundo Lênio Luiz Streck, o denominado “jogo de linguagem” não decorre do homem em seu isolamento existencial e nem de uma decisão particular com caráter autônomo, mas de uma construção ou convenção intersubjetiva, in verbis:

A partir das Investigações Filosóficas, Wittgenstein passa a ser, ao lado de Heidegger, um dos mais ardorosos críticos da filosofia da subjetividade (filosofia da consciência). Parte da ideia de que não existe um mundo em si, que independa da linguagem; somente temos o mundo na linguagem. As coisas e as entidades se manifestam em seu ser precisamente na linguagem, posição que também o aproxima muito de Heidegger. (grifos inseridos)

A linguagem deixa de ser um instrumento de comunicação do conhecimento e passa a ser condição de possibilidade para a própria constituição do conhecimento [...] (grifos inseridos)

[...]

No jogo de linguagem, o homem age, mas não simplesmente como indivíduo isolado de acordo com seu próprio arbítrio, e sim de acordo com regras e normas que ele, juntamente com outros indivíduos, estabeleceu (intersubjetividade). (grifos inseridos) [81]

Feitas essas considerações teóricas, entende-se que a atividade hermenêutica consiste na busca do sentido, do significado ou do conceito o mais representativo possível do objeto de investigação. Em se tratando de matéria jurídica em sede constitucional – na presente pesquisa a expressão “pessoa portadora de deficiência” no contexto do art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal – esse comprometimento é ainda mais rigoroso e relevante a ser exigido do intérprete, dado os reflexos que a interpretação predominante em certo momento gera nas normas infraconstitucionais e direciona a aplicação normativa na concretude. Esse alerta é muito bem efetuado por Alexandre de Morais nos seguintes termos:

A interpretação jurídica, portanto, constitui a atividade prática de descobrimento do conteúdo, do significado e do alcance de determinada norma, dentro do contexto para decidir um caso concreto. Como salientado por Luís Roberto Barroso ‘a aplicação de uma norma jurídica é o momento final do processo interpretativo, sua concretização, pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato.

O intérprete, para realização de sua tarefa, deve analisar os diferentes significados possíveis da norma e indagar-se qual deles é o mais exato. Para isso, indaga sobre os diversos sentidos do texto, bem como sobre seu próprio conhecimento da matéria tratada pela norma. [82]

Mais adiante Alexandre de Morais, inspirando-se em Antônio Francisco Rodrigues dos Santos, esclarece que a interpretação jurídica da norma é uma atividade que se impõe, haja vista que o enunciado per se, ainda que claro, depende de utilização de técnica e metodologia inerentes à ciência jurídica, de modo que se aplique adequadamente ou de forma justa determinado dispositivo, in verbis:

A necessidade de interpretação surge no momento em que a norma deve ser, na prática, aplicada a determinado contexto, independentemente de sua maior ou menor clareza, pois, embora a lei se utilize de linguagem comum, por ter como destinatário o homem do povo, o Direito apresenta os rigores técnicos e gramaticais de uma ciência que, não obstante acessível e perceptível, segue uma linguagem técnica e tradicionalmente peculiar [...] [83]

Para Paulo Nader, o desafio maior da interpretação é identificar o alcance da norma em toda a sua extensão, haja vista que a dinâmica da realidade possui um ritmo bem mais veloz do que o que fora previsto pelo legislador no instante da elaboração da norma. Segundo o autor, esse descompasso, no entanto, não impede o intérprete de buscar o sentido e significado normativo, uma vez que essa atividade se configura de várias formas, daí poder se dizer que a interpretação é sempre provisória. Cabe aqui transcrever os comentários do autor:

Interpretar cientificamente a norma jurídica é desenvolver um ato intelectual de revelação de seu sentido e alcance. Consiste em desentranhar o significado subjacente ao texto ou à fórmula oral verbalizada. Norma é condensação de pensamento que se manifesta por signos; é objeto cultural que encerra significados e carece de interpretação. O sentido da norma corresponde à determinação contida, que pode ser uma conduta social ou um modelo de organização. O alcance diz respeito às situações atingidas pela norma. Ao planejar o padrão de conduta, o legislador, com frequência, não antevê o alcance em toda sua extensão. É que as normas são modelos abstratos e se prestam a enquadrar toda uma classe de fatos. (grifos do Autor)

Como a interpretação jurídica é processo de conhecimento de normas por seu significado, desde que o operador revele intelectualmente o conteúdo de uma norma terá efetuado a sua interpretação. Não é preciso que o processo de cognição seja complexo para que se tenha atividade hermenêutica [...] Há interpretações captadas pelo espírito intuitivamente e há as que exigem operação lógica mediante raciocínio complexo e até mesmo sociológica ou histórica. Em todo caso se terá interpretação [...] (grifo do autor) [84]

Consoante Eros Roberto Grau, citado por Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, a norma é plasmada não somente com a utilização do texto normativo (dimensão do dever ser), mas em sintonia com a concretude (dimensão do ser), in verbis:

[...] A norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos colhidos no texto normativo (mundo do dever ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual ela será aplicada, isto é, a partir de dados da realidade (mundo do ser). [85]

Nesse sentido, o processo hermenêutico tem a finalidade de identificar a norma, ou melhor, delineá-la e construí-la. Para isso, há necessidade de transcender o próprio texto em si, o qual não consegue atingir as hipóteses ou situações emergidas a partir da dinâmica da realidade social. Considerando a complexidade da relação entre o dever ser e o ser, Paulo Gustavo Gonet Branco faz os seguintes comentários:

A norma, portanto, não se confunde com o texto, isto é, com o seu enunciado, com o conjunto de símbolos linguísticos que forma o preceito. Para encontrarmos a norma, para que possamos afirmar o que o direito permite, impõe ou proíbe, é preciso descobrir o significado dos termos que compõem o texto e decifrar, assim, o seu sentido linguístico [...] (grifos inseridos)

A interpretação orientada à aplicação não se torna completa se o intérprete se bastar com a análise sintática do texto. Como as normas têm por vocação própria ordenar a vida social, os fatos que compõem a realidade e lhe desenham feição não podem ser relegados no trabalho do jurista. Para se definir o âmbito normativo do preceito constitucional, para se delinear a extensão e intensidade dos bens, circunstâncias e interesses atingidos pela norma, não se prescinde da consideração de elementos da realidade mesma a ser regida. (grifos inseridos)

A norma constitucional, assim, para que possa atuar na solução de problemas concretos, para que possa ser aplicada, deve ter o seu conteúdo semântico averiguado, em coordenação com o exame das singularidades da situação real que a norma pretende reger [...]. (grifos inseridos) [86]

Feita essa breve abordagem na dimensão epistemológica na qual são estruturados os métodos e as técnicas de hermenêutica, de compreensão do fenômeno que se coloca ao cientista, na sequência será discutido o alcance da expressão “pessoa portadora de deficiência”, contida no art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal, num diálogo simultâneo com os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, bem como da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e editais de concurso público recente.

4.1 Amplitude de deficiência nos termos do art. 37, inciso VIII

Com base na discussão teórica anterior, fica patente a incerteza e o caráter provisório do processo cognitivo. Por outro lado, o reconhecimento desse diagnóstico não implica assumir uma espécie de “niilismo” teórico que se recusa a delinear o ser fenomênico sob o argumento da impossibilidade de se atingir a sua essência, seu significado primeiro e sentido original. Nesse contexto da crise paradigmática, a observação feita por Clifford Geertz sob perspectiva epistemológica da semiótica no âmbito da Antropologia Cultural, parece oportuna na presente discussão:

[...]

[...] A análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda, menos completa. É uma ciência estranha, cujas afirmativas mais marcantes são as que têm a base mais trêmula, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocado é intensificar a suspeita, a sua própria e a dos outros, de que você não o está encarando de maneira correta [...].

[...]

[...] Nunca me impressionei com o argumento de que, como é impossível uma objetividade completa nesses assuntos (o que de fato ocorre), é melhor permitir que os sentimentos levem a melhor. Conforme observou Robert Solow, isso é o mesmo que dizer que, como é impossível um ambiente perfeitamente asséptico, é válido fazer uma cirurgia num esgoto [...]. [87]

Estando o presente trabalho circunscrito ao debate do alcance em nível conceitual da expressão “pessoa portadora de deficiência”, nos termos do art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal, não é demais consignar que a configuração deste termo se apresenta numa dimensão fenomênica “complexa” ou “divisível”, não se podendo afastar aprioristicamente qualquer tipo de limitação funcional virtualmente manifestada nas pessoas. Esta premissa permeia a hipótese desta pesquisa, ora mais vidente, ora subjacente. Nesse sentido, permita-se evocar Mário Ferreira dos Santos em sua profícua discussão a respeito de conceito, a fim de deixar sempre claro a natureza deste debate, in verbis:

Propriamente, o exame que fizemos da ideia corresponde, por sua vez, ao conceito, pois tais termos são tomados, na Lógica, como sinónimos. Desse modo, tudo quanto propusemos à ideia corresponde ao que se pode dizer quanto ao conceito. As classificações que oferecemos não são as únicas que propõem os lógicos. Há outras, sobre as quais passaremos a tratar. (grifos inseridos)

[...]

Há ideias simples e indivisíveis em si mesmas, como a de homem, vermelho, animal racional, que formam uma essência, da qual nada podemos extrair, sob pena de lhes tirarmos a essência, transformando-as em outras coisas. Tais ideias ou conceitos chamam-se incomplexos, ou indivisíveis.

Outros, porém, chamados complexos ou divisíveis, são os possuidores de várias essências ou conteúdos noético-eidé-ticos, tais como "a casa amarela da serra". [88]

Assim, desde já, que a expressão “pessoa portadora de deficiência” no âmbito do art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal, necessita de reflexão mais aprofundada e crítica, de modo a possibilitar interpretação a mais próxima possível da realidade social vigente, acompanhando suas mudanças. Dessa forma, entende-se, que o enunciado da Carta Magna deste inciso dota a expressão “pessoa portadora de deficiência” de caráter mais expansivo do que a princípio poderia se supor.

Tal enunciado constitucional é de eficácia limitada, conforme se abordou alhures, mais uma razão para se admitir a possibilidade de que a regulamentação efetuada mediante lei esteja em descompasso com a sociedade para a qual é direcionado. Torna-se forçoso trazer à baila reflexão de Paulo Gustavo Gonet Branco sobre esse particular:

De fato, a Constituição, além de normas de índole análoga à dos ramos infraconstitucionais do Direito, está marcada, no atual momento do constitucionalismo, pela presença de normas que apenas iniciam e orientam a regulação de certos institutos, deixando em aberto, tantas vezes, o modo e a intensidade de como se dará a sua concretização por parte dos órgãos políticos. Não há coincidência, nesse aspecto, com a estrutura normativa típica das leis. A Constituição, em tantos dos seus dispositivos, assume o feitio de um ordenamento-marco, estipulando parâmetros e procedimentos para a ação política. Percebe-se que o método clássico não foi concebido para esses casos e se sente a necessidade de alternativas para lidar com preceitos desse cariz. (grifos inseridos) [89]

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Segundo Alexandre de Moraes afirma que, acatando-se o pressuposto da supremacia das normas constitucionais, a hermenêutica de seus dispositivos devem observar determinados princípios e regras. Alexandre de Moraes, em evidente inspiração em doutrinadores clássicos do constitucionalismo contemporâneo, particularmente, José Joaquim Gomes Canotilho, in verbis:

Partindo-se da premissa fundamental da supremacia das normas constitucionais, são os seguintes os princípios e regras interpretativas das normas constitucionais:

a)   Da unidade da constituição: a interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas. Assim, a análise sistêmica do texto magno é impositiva e primordial, pois, como salienta Canotilho, o intérprete deve ‘considerar a constituição na sua globalidade e procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar’ [...];

b)   Do efeito integrador: na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deverá ser dada maior primazia aos critérios favorecedores da integração política e social, bem como ao reforço da unidade política;

c)   Da máxima efetividade ou da eficiência: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia conceda-lhe. Consequentemente, todas as normas constitucionais têm validade, não cabendo ao intérprete optar por umas em detrimento total do valor de outras;

d)   Da justeza ou da conformidade funcional: os órgãos encarregados da interpretação da norma constitucional não poderão chegar a uma posição que subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador constituinte originário;

e)   Da concordância prática ou da harmonização: exige-se a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito, de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros;

f)    Da força normativa da constituição: entre as interpretações possíveis, deve ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais [...] [90]

A interpretação adequada do inciso VIII do artigo 37 da Constituição Federal só será consentânea à luz de princípios e valores que dão sentido ao modelo de sociedade que se está construindo, tais como da dignidade da pessoa humana, da igualdade, que norteiam a própria Lei Maior. No presente caso, trata-se de “pessoa portadora de deficiência”, que exige tratamento diferenciado, a fim de poder interagir no meio ambiente e ter acesso às oportunidades de trabalho público em iguais condições às pessoas que não possuem nenhum tipo de obstáculo. Nesse sentido, cabe evocar Nagib Slaibi Filho:

Os princípios fundamentais, também chamados princípios estruturantes, têm relevante função na indicação dos valores que devem predominar no processo hermenêutico, isto é, o de descoberta do sentido da norma constitucional. Os princípios fundamentais estão muito além de indicadores da atuação do Estado, pois consubstanciam os valores de suprema importância na organização da sociedade brasileira. [91] (grifos inseridos)

No caso do princípio da dignidade da pessoa humana, Nagib Slaibi Filho enaltece o humanismo que é o sentido profundo e o significado do ser ontológico nas suas dimensões existenciais, in verbis:

Como fundamento da atividade estatal, a Constituição coloca a dignidade da pessoa humana, o que significa, mais uma vez, que o homem é o centro, sujeito, objeto, fundamento e fim de toda a atividade pública. (grifos inseridos)

O princípio democrático do poder exige que à pessoa humana, na inteireza de sua dignidade e cidadania, se volte toda a atividade estatal.

Nesse aspecto, na interpretação axiológica, que leva em conta os valores protegidos pela norma jurídica, pode-se dizer que o valor supremo da Constituição é o referente à dignidade da pessoa humana. [92] (grifos inseridos)

Consoante Alexandre de Moraes, o princípio da dignidade da pessoa humana se apresenta em duas perspectivas: uma com conotação protetiva do indivíduo na sua relação com o Estado e as demais pessoas, enquanto outra se reveste de dever axial de tratamento igual entre os cidadãos. Segundo o Autor, este último aspecto de “dever fundamental”, remonta a três princípios romanos, sendo oportuno transcrever seu raciocínio:

O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. (grifos inseridos)

Esse dever configura-se pela exigência de o indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhantes tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria. A concepção dessa noção de dever fundamental resume-se a três princípios do Direito Romano: honestere vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudique ninguém) e suum cuique tribuere (dê a cada um o que lhe é devido). [93]

Uadi Lammêgo Bulos comunga da transversalidade do princípio da dignidade da pessoa humana, segundo o qual ocupa uma posição de vértice entre os demais princípios constitucionais, conforme se depreende de sua assertiva abaixo:

A dignidade da pessoa humana, enquanto vetor determinante da atividade exegética da Constituição de 1988, consigna um sobreprincípio, ombreando os demais pórticos constitucionais, como o da legalidade (art. 5º, III), o da liberdade de profissão (art. 5º, XIII), o da moralidade administrativa (art. 37) etc. Sua observância é, pois, obrigatória para a interpretação de qualquer norma constitucional, devido à força centrípeta que possui, atraindo em torno de si o conteúdo de todos os direitos básicos e inalienáveis do homem. [94]

No que tange ao princípio da igualdade, Nagib Slaibi Filho afirma que este princípio encontra-se inserto no contexto dos direitos e garantias fundamentais, o que, segundo o autor, indica a sua relevância do ser existencial, que busca interagir na sociedade, assumindo e desempenhando papéis para o seu desenvolvimento e o da própria sociedade, in verbis:

Para realçar o princípio de isonomia, também chamado de princípio de igualdade perante a lei ou o princípio de igualdade formal, o mesmo veio inscrito no caput do artigo introdutório dos direitos e garantias fundamentais, juntamente com os direitos fundamentais de vida (o da existência do ser), de liberdade (que propicia o desenvolvimento do ser, facultando-lhe os espaços sociais e materiais necessários para a integração de sua personalidade), de segurança (que é o de manter os espaços sociais e materiais já alcançados) e o direito de propriedade (espécie do direito de segurança, que é usufruir as utilidades materiais dos bens incorporados em seu patrimônio. [95] (grifos inseridos)

Ao tangenciar especificamente sobre o princípio da igualdade para os portadores de deficiência no âmbito do direito do trabalho, no contexto do art. 7º, inciso XXXI, da Constituição Federal, Nagib Slaibi Filho afirma:

A regra de igualdade formal, esculpida na Constituição, não significa que os desiguais sejam tratados com igualdade.

[...]

Vê-se, assim, que não se trata, na realidade, de igualdade de direitos, mas de dação de oportunidades iguais a todos – poder-se-ia dizer que o princípio tem o nome de igualdade de oportunidades: a regra do artigo 7º, inciso XXXI, que defere prerrogativas aos portadores de deficiência física, na verdade, ao lhes propiciar maiores condições, não os coloca em posição de supremacia, mas, sim, de igualdade de condições. (grifos inseridos) [96] (grifos inseridos)

Essa interpretação dada por Nagib Slaibi Filho ao disposto art. 7º, inciso XXXI, da Constituição Federal, é perfeitamente aplicável também à expressão “pessoa portadora de deficiência” contida no art. 37, inciso VIII, da Carta Magna. Nas duas situações o propósito é de garantir igualdade concreta de oportunidade. A analogia entre os dois dispositivos é possível em função da similaridade de situações que enfrenta. Nesse, cabe mais uma vez transcrever assertiva de Nagib Slaibi Filho a respeito do princípio da igualdade:

Ao afirmar que todos são iguais perante a lei, pretende a Constituição que somente ela pode criar tratamento desigual para pessoas em igualdade de condições e, realmente, ela o faz, por exemplo, ao conferir prerrogativas funcionais que, aliás, não protegem o servidor, mas o exercício de sua atividade, pelo que o mesmo dela não pode renunciar. [97] (grifos inseridos)

Na mesma linha de raciocínio a respeito do princípio da igualdade segue Uadi Lammêgo Bulos, o qual propugna uma perspectiva ponderada e esclarecedora, que busca maior ancoragem com a concretude, portanto, numa perspectiva realística, in verbis:

Os homens nunca foram iguais e jamais o serão no plano terreno. A desigualdade é própria da condição humana. (grifos inseridos). Por possuírem origem diversa, posição social peculiar, é impossível afirmar-se que o homem é totalmente idêntico ao seu semelhante em direitos, obrigações, faculdades e ônus. Daí se buscar uma igualdade proporcional, porque não se pode tratar igualmente situações provenientes de fatos desiguais. O raciocínio que orienta a compreensão do princípio da isonomia tem sentido objetivo: aquinhoar igualmente os iguais e desigualmente as situações desiguais. Dessa maneira, atribui-se ao princípio sentido real e não nominal, igualdade integral e não incidental ou particular, porquanto a igualdade consiste em assegurar aos homens que estão equiparados os mesmos direitos, benefícios e vantagens, ao lado dos deveres correspondentes. O mesmo ocorre em relação àqueles que estiverem desequiparados, os quais deverão receber o tratamento que lhes é devido à medida de suas desigualdades. [98] (grifos do Autor)

Por outro lado, Uadi Lammêgo Bulos reconhece a dificuldade na interpretação e aplicação adequadas do princípio da igualdade, in verbis:

A noção de situação idêntica leva-nos, inexoravelmente, à interrogativa: no caso sub judice, o que podemos entender por igual ou desigual, identifico ou diferente, equiparado ou desequiparado? Quando utilizamos a locução situação idêntica, queremos expressar a sua dimensão no seguinte sentido: os iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente. Entretanto, o critério para se auferir, no caso sub judice, o que seja igual ou desigual, idêntico ou diferente, equiparado ou desequiparado está em aberto. Inexiste qualquer exatidão a respeito desses vocábulos [...] [99]

Antes de se avançar na interpretação e aplicação de princípios constitucionais, entende-se oportuno trazer à tona os ensinamentos de Luís Roberto Barroso, segundo o qual há necessidade de utilização de critérios ao lidar com o princípio da igualdade, por exemplo. Assim, Luís Roberto Barroso considera a razoabilidade e a proporcionalidade como mecanismos essenciais na busca de hermenêutica equilibrada da isonomia, in verbis:

Estabelecida a premissa de que é possível distinguir pessoas e situações para o fim de lhes dar tratamento jurídico diferenciado, cabe determinar os critérios que permitirão identificar as hipóteses em que as desequiparações são juridicamente toleráveis [...]

Parece-me, contudo, que a compatibilização entre a regra isonômica (na vertente do tratamento desigual) e outros interesses prestigiados constitucionalmente exige que se recorra à ideia de proporcionalidade. Somente assim se poderá obter um equilíbrio entre diferentes valores a serem preservados.

[...]

Vê-se, assim, que é possível discriminar em prol dos desfavorecidos economicamente, em detrimento dos mais abonados. Mas o tratamento desigual há de encontrar limites de razoabilidade para que seja legítimo. Este limite poderá vir expresso ou implícito no texto constitucional, e a conciliação que se faz necessária exige a utilização de um conceito flexível, fluido, como o de proporcionalidade. (grifos inseridos) [100]

Os sentidos de razoabilidade e proporcionalidade dados por Luís Roberto Barroso contêm ideias, tais como, meio empregado, a teleologia pleiteada, bem como sopesamento de custo e benefício, de modo a se verificar o grau de legitimidade da medida, in verbis:

Além da adequação entre o meio empregado e o fim perseguido, a ideia de razoabilidade compõe-se ainda de mais dois elementos. De um lado, a necessidade ou exigibilidade da medida, que impõe verificar a inexistência de meio menos gravoso para a consecução dos fins visados [...].

Por fim, a razoabilidade deve embutir, ainda, a ideia de proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se a medida é legítima [...].

[...]

O princípio da razoabilidade necessariamente interage com o da isonomia. Em face da constatação de que o legislar, em última análise, consiste em discriminar situações e pessoas por variados critérios, a razoabilidade é o parâmetro pelo qual se vai aferir se o fundamento da diferenciação é aceitável e se o fim por ela visado é legítimo. [101]

Particularmente no que tange ao princípio da igualdade, Luciana Toledo Távora Niess e Pedro Henrique Távora Niess são críticos quanto ao teor do inciso VIII do art. 37 da Constituição Federal, in verbis:

Ou seja, nada se deu ao portador de deficiência que extravase o seu direito de disputar vagas no serviço público em pé de igualdade com os outros concorrentes – aqueles também portadores de deficiência – a fim de tornar reais suas chances de classificação, diminuídas, em relação aos que não portam deficiência, não só em função da deficiência em si, mas dos transtornos que ela acarreta no próprio aprendizado recebido nas escolas, na formação profissional, no dia-a-dia, sempre mais difícil até nas coisas aparentemente simples. [102]

Segundo Luciana Toledo Távora Niess e Pedro Henrique Távora Niess, há de se aplicar de forma distinta o princípio da igualdade até mesmo no próprio segmento de pessoas portadoras de deficiência, particularmente em concurso público, haja vista as diferenças de limitações identificadas entre tais pessoas, o que já foi referenciado alhures. In verbis:

[...]

Não é correto, pois, submeter os portadores de deficiências sensoriais e mentais que disputam vagas, nos concursos públicos e vestibulares, a provas com questões a que se submetem os que são livres de deficiências e os portadores de deficiência física, as quais, por seu conteúdo, sejam discriminatórias daquelas primeiras deficiências, porque ao portador de deficiência sensorial ou mental será provavelmente mais difícil alcançar a nota mínima.

[...]

Igualmente a surdez tem suas peculiaridades, o que a distingue da cegueira, façam parte, embora, a deficiência visual e a auditiva, das deficiências sensoriais. [103]

As críticas suscitadas pelos autores ainda se mostram atuais, na medida em que o próprio conceito de deficiência, particularmente sob o enfoque dado pelo Decreto nº 6.949/2009 – que incorporou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo – ainda não gerou os reflexos suficientes no Decreto nº 3.298/99, quer dizer, na definição e na classificação. Também não se verifica tratamento distinto de “pessoas portadoras de deficiência”, com base em seus graus de obstáculos e condições distintas vivenciadas, bem como a natureza peculiar da deficiência.

Entende-se que, sendo o trabalho um aspecto estrutural na existência humana, o seu acesso deve ser amplo e despido de preconceito, discriminação ou de barreiras de cunho ideológico ou socioeconômico. Nesse sentido, cabe aqui evocar as reflexões de Sandro Nahmias Melo a respeito da matéria:

[...] O direito à igualdade, por considerar positivamente as diferenças humanas, é o verdadeiro alicerce de todos os direitos constitucionalmente conferidos às pessoas portadoras de deficiência.

Assim, o princípio constitucional da igualdade, no decorrer deste estudo, é considerado como instrumento hábil para remoção dos obstáculos de acesso ao emprego impostos às pessoas portadoras de deficiência, bem como fundamento dos instrumentos destinados a ultrapassar a real desigualdade entre os cidadãos. [104].

Aprofundando a interpretação do princípio da igualdade sob o enfoque da “pessoa portadora de deficiência” no contexto do trabalho, o que certamente pode ser aplicado ao disposto no art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal, Sandro Nahmias Melo defende a necessidade de ‘discriminação’ para possibilitar o mínimo de igualdade, conforme se depreende de sua assertiva abaixo:

Assim, é dentro deste binômio discriminação-razoabilidade que se busca, com o presente trabalho, evidenciar que, para que o princípio da igualdade seja efetivado, seja eficaz, há que existir discriminação, positivamente considerada, em proveito de determinadas pessoas ou grupos sociais.

Como será analisado de maneira minuciosa adiante, é virtualmente impossível cogitar-se em igualdade, no que tange às oportunidades de trabalho, para as pessoas portadoras de deficiência, sem admitir a existência de práticas discriminatórias (legítimas).

No mais, a razoabilidade deve pautar todas as ações discriminatórias, pois, como se apontou, o excesso conduz a práticas discriminatórias odiosas. Mesmo porque, não se pode olvidar que nem todo tipo de atividade pode ser exercida pela pessoa portadora de deficiência, se não adequada às suas respectivas limitações. [105]

De acordo com Sandro Nahmias Melo, no caso específico do segmento de pessoas portadoras de deficiência, a Constituição Federal busca dar maior concretude ao princípio da igualdade, de modo a transcender a igualdade diante da lei, a fim de propiciar a igualdade na lei, senão vejamos:

Ao lado da igualdade formal, ou igualdade perante a lei, devemos destacar a igualdade material ou igualdade na lei. Neste caso verificamos que Constituição ao mesmo tempo que proíbe a discriminação desarrazoada, cuida de realçar direitos de pessoas ou grupos, os quais necessitam de proteção especial, especificando ou diferenciando tais situações. Grupos estes como o das pessoas portadoras de deficiência que só têm a igualdade efetivada, garantida, com a adoção de ações positivas por parte do Estado.

O princípio da igualdade, em sua vertente formal (igualdade perante a lei), refere-se tão-somente à aplicação do direito com relação à coletividade sem qualquer tipo de distinção. [106]

José Afonso da Silva em hermenêutica do art. 5º, caput, da Constituição Federal, tem a concepção de que a desigualdade compõe a realidade social, razão pela qual entende o Autor da necessidade de se buscar ‘igualização’ entre ‘desiguais’, o que certamente deve ser considerado para melhor delineação da amplitude do disposto no art. 37, inciso VIII, da Carta Magna. Nesse sentido, cabe aqui transcrever os comentários a respeito do princípio da igualdade feitos por José Afonso da Silva:

[...] Porque existem desigualdades, é que se aspira à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das condições desiguais, do que se extrai que a lei geral, abstrata e impessoal que incide em todos igualmente, levando em conta apenas a igualdade dos indivíduos e não a igualdade dos grupos, acaba por gerar mais desigualdades e propiciar a injustiça, daí por que o legislador, sob ‘o impulso das forças criadoras do direito [como nota Gerges Sarotte], teve progressivamente de publicar lei setoriais para poder levar em conta diferenças nas formações e nos grupos sociais: o direito do trabalho é um exemplo típico’. (grifos inseridos) [107]

Com base em José Afonso da Silva, verifica-se a importância de interpretação sistemática do art. 37, inciso VIII, combinado com o art. 227, inciso II e art. 5º, caput, todos da Constituição Federal. No caso em análise, que é a identificação da amplitude da expressão “pessoa portadora de deficiência” para fins de concorrência a cargos e empregos públicos, o princípio da igualdade há de ser interpretado na concretude e em associação aos demais dispositivos constitucionais correlatos (art. 37, inciso VIII; art. 227, inciso II), senão corre-se o risco de não observar as diferenças de segmentos e de indivíduos. Nesta última hipótese, tem-se o que os doutrinadores denominam de igualdade formal, quer dizer, sem efeito prático, conforme se depreende da afirmativa abaixo de José Afonso da Silva:

Nossas constituições, desde o Império, inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciado que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos. A compreensão do dispositivo vigente, nos termos do art. 5º, caput, não deve ser assim tão estreita. O intérprete há que aferi-lo com outras normas constitucionais [...] especialmente, com as exigências da justiça social, objetivo da ordem econômica e da ordem social. [108]

Nessa mesma linha de raciocínio segue Ariolino Neres Sousa Júnior em análise direcionada sistema de cotas no mercado de trabalho para pessoas portadoras de deficiência, in verbis:

[...] observamos que a igualdade material tem a preocupação de estabelecer um tratamento equânime e uniformizado para todos os cidadãos, na busca pela fruição dos seus direitos, a fim de que suas individualidades possam ser respeitadas. Quanto à igualdade formal, ela visa aplicar tão somente a legislação pura, sem levar em consideração as diferenças e os atributos inerentes de cada ser humano [...] [109]

Ainda segundo Ariolino Neres Sousa Júnior, a doutrinadora Lutiana Lorentz tem o seguinte entendimento a respeito da igualdade no que tange às pessoas com deficiência, cujos comentários pontuam aspectos concretos desses indivíduos que passam a exigir um tratamento diferenciado, senão vejamos:

Faz-se ‘referência à igualdade como norma constitucional, tendo em vista que ela deve ser lida como a obrigatoriedade de tratamento isonômico a todos os cidadãos, ao mesmo tempo em que possibilita tratamentos diferenciados a pessoas ou grupos que, por sua qualidade diferencial ou desequilíbrio fático em relação ao resto da sociedade, necessitam de um tratamento diferenciado, justamente porque igualdade pressupõe o respeito e a preservação das diferenças individuais e grupais ou da diversidade que é inerente à natureza humana’. [110] (grifos inseridos)

Conforme preleciona Luís Roberto Barroso, o enunciado normativo per se não é clarificador o suficiente para solucionar todas as questões postas, uma vez que a própria atividade de interpretação é uma construção da norma. A hermenêutica mais moderna rechaça a ideia de se buscar um sentido originário, o conteúdo primeiro, a ser revelado pela norma, porquanto o intérprete tornou-se ativo nesse processo. In verbis:

Com o avanço do direito constitucional, as premissas ideológicas sobre as quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram de ser integralmente satisfatórias. Assim: (i) quanto ao papel da norma, verificou-se que a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato do texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz do problema, dos fatos relevantes, analisados topicamente; (ii) quanto ao papel do juiz, já não lhe caberá apenas uma função de conhecimento técnico, voltado para revelar a solução contida no enunciado normativo. O intérprete torna-se co-participante do processo de criação do Direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis. [111]

Seguindo esse raciocínio é forçoso reconhecer que o disposto no art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal, particularmente a expressão “pessoa portadora de deficiência” não pode ser representada de forma estanque por uma taxonomia, ainda que supostamente exaustiva, senão corre-se o risco de não incluir outras pessoas portadoras de deficiências não aparentes. Nesta última hipótese, haverá certamente uma ofensa direta ao princípio da igualdade.

O conceito da expressão “pessoa portadora de deficiência” que serviu de parâmetro para elaboração da definição e da classificação, as quais estão contidas no Decreto nº 3.298/99, certamente se encontra em descompasso com a realidade atual, ainda mais se considerar a perspectiva de “conceito em evolução” dada pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo.

Dessa forma, com base na análise feita até aqui, pode-se constatar, ainda que com viés parcial do problema posto, a amplitude do disposto no art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal, não se pode excluir aprioristicamente determinadas doenças e certas deficiências não claramente identificáveis na Lei 7.853/89, Decreto 3.298/99 ou Lei 8.112/90, para efeito de participação em concurso público nas vagas definidas para o segmento de “pessoas portadoras de deficiência”.

4.2 Jurisprudência do STF e editais de concurso público

Observa-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF – parece não se debruçar mais a respeito do conceito e muito menos da definição ou enquadramento de deficiência para efeito de concurso público, nos termos estabelecidos no art. 37, inciso VIII, regulamentado por meio da Lei 7.853/89 e Decreto nº 3.298/99.

Dessa forma, foi realizada no repositório jurisprudencial no sítio daquela Corte, período de 21.08.2014 a 22.08.2014, utilizando-se os verbetes “Deficiência e Conceito” (9 acórdãos), “Deficiência e Definição” (30 acórdãos) e “Deficiência e Concurso” (98 acórdãos), com recorte temporal de 2007 a 2014, excluindo-se as demandas não relacionadas à presente temática, de modo que foram analisadas as ementas por amostragem e na sequência de disponibilização nas páginas de consulta. Considerou-se como marco jurídico a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, em que o Brasil figurou como Estado-parte.

O acórdão ARE 685606 AgR /RJ, julgado em 24.06.2014, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, é representativo do no sentido de que o STF afasta apreciar o mérito no que tange à definição ou enquadramento de pessoa em concurso público na condição de deficiente, remetendo a questão para a legislação infraconstitucional, particularmente a Lei 7.853/89, Decreto nº 3.298/99 e Lei 8.112/90. Note-se que o conceito sequer é tangenciado, nesse sentido, cabe transcrever trecho da fundamentação do referido aresto:

3. Por fim, verifica-se que, tal como assentou a decisão agravada, para dissentir do entendimento do Tribunal de origem, seria necessário nova apreciação dos fatos e do material probatório constantes dos autos, bem como a análise das cláusulas editalícias que regem o concurso ora em debate, o que não tem lugar neste momento processual. A hipótese atrai a incidência das Súmulas 279 e 454/STF [...] [112] (grifos inseridos)

Com base na consulta realizada no repositório jurisprudencial do STF, verifica-se que o posicionamento desta corte se mostra sedimentado quanto à questão ora posta. Nos acórdãos mais recentes remete-se ao entendimento que já vem se adotando, que afasta qualquer tipo de discussão a respeito da definição ou enquadramento de deficiente para efeito de concurso público, na forma enunciada no art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal. A título de ilustração, no aresto analisado anteriormente, faz-se remissão a vários julgados de semelhante decisão, sendo representativo o indicado abaixo, que evidencia a fundamentação jurídica:

Conforme consignado na decisão impugnada, o acórdão recorrido decidiu a questão dos autos – ilegalidade da exclusão da parte recorrida na condição de concorrente a uma vaga de deficiente físico –, com base no conjunto fático-probatório e no edital que rege o certame.

Assim, saliento que a resolução da lide implica obrigatoriamente a revisão dos fatos e provas analisados, bem como das regras do edital do concurso, providência vedada em sede de recurso extraordinário. Incidem, no caso, os Enunciados 279 e 454 da Súmula do STF. (grifos inseridos) [113]

Ainda é oportuno transcrever o aresto ARE 768402 AgR / RJ, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, julgado em 17.12.2013, em que fica ainda mais clarificada essa argumentação recorrente utilizada no Supremo Tribunal Federal ao se debruçar na definição ou enquadramento de “pessoa portadora de deficiência”, na forma descrita no art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal. Frise-se que o conceito da referida expressão não chegar a ser aventada, ainda, que para afastar o enfrentamento do tema, in verbis:

[...]

Conquanto a Constituição Federal haja assegurado a reserva de vagas para os participantes de concurso público que possuam algum tipo de deficiência física, a definição dos casos que se caracterizam como deficiência para o citado fim compete à legislação infraconstitucional, sendo certo que a verificação do enquadramento do candidato nas hipóteses previstas em lei não prescinde da análise do contexto fático. (grifos inseridos)

No presente feito, a Corte de origem limitou-se a analisar a situação do candidato à luz dos entendimentos jurisprudenciais sobre a matéria firmados a partir da análise das normas infraconstitucionais que regulam a participação de candidatos portadores de deficiência física em concursos públicos. (grifos inseridos)

Desse modo, para acolher a tese do agravante de que o agravado não seria deficiente físico, de acordo com as previsões legais aplicáveis, seria necessário interpretar a legislação infraconstitucional pertinente e reexaminar o conjunto fático-probatório da causa, o que é inviável em recurso extraordinário.Incidência da Súmula nº 279/STF.(grifos inseridos) [114]

É interessante notar que em consulta por amostragem aleatória de editais recentes de concurso público, verifica-se que a definição de deficiência remete à Lei 7.853/89, ao Decreto nº 3.298/99 e à Lei 8.112/90, conforme abaixo o Edital nº 01/2014 do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª. Região, cargo de Analista Judiciário (Tecnologia da Informação):

[...]

1. Às pessoas com deficiência que pretendam fazer uso das prerrogativas que lhes são facultadas no inciso VIII do artigo 37 da Constituição Federal e na Lei nº 7.853/89 é assegurado o direito de inscrição para os cargos em Concurso Público, cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência que possuem.

2. Em cumprimento ao disposto no § 2º do artigo 5º da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, bem como na forma do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, ser-lhes-á reservado o percentual de 5% (cinco por cento) das vagas existentes, que vierem a surgir ou forem criadas no prazo de validade do Concurso, para os Cargos/Áreas/Especialidades.

3. Consideram-se pessoas com deficiência aquelas que se enquadram nas categorias discriminadas no artigo 4º do Decreto Federal nº 3.298/99 e suas alterações, e na Súmula 377 do Superior Tribunal de Justiça - STJ. [115]

[...]

De forma semelhante, o Edital nº 01 – AGU-SEP/PR, de 29 de abril de 2014, da Advocacia-Geral da União e Secretaria de Portos da Presidência da República, concurso público para provimento de vagas em cargos de nível superior e nível intermediário, deixa claro a definição de concorrência para concorrência aos cargos direcionados do segmento de “pessoas portadores de deficiência”, nos termos do art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal. Remete-se ao art. 4º do Decreto nº 3.298/99 para fins de definição e enquadramento, in verbis:

[...]

4.1 As pessoas com deficiência, assim entendido aquelas que se enquadram nas categorias discriminadas no art. 4º do Decreto Federal nº 3.298/99 e suas alterações, bem como os candidatos com visão monocular, conforme Súmula 377 do Superior Tribunal de Justiça e Enunciado AGU 45, de 14 de setembro de 2009, têm assegurado o direito de inscrição no presente Concurso Público, desde que a deficiência seja compatível com as atribuições do cargo para o qual concorram. (grifos inseridos) [116]

[...]

Verifica-se, então, que a amplitude do conceito de “pessoa portadora de deficiência” contida no Decreto Legislativo nº 186/2008, que incorporou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007, parece ainda não refletir nos editais de concurso de cargos e empregos públicos. Em tal convenção admitiu-se que “deficiência é um conceito em evolução”, na forma de sua alínea “e” do Preâmbulo.

No âmbito da discussão realizada nesta pesquisa, pode-se afirmar que a amplitude constitucional a ser atribuída à expressão “pessoas portadoras de deficiência” deve observar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, o que implica admitir a priori o problema não reside, de modo nenhum, na deficiência em si que recai sobre o ser existente. Em segundo lugar, não se pode afastar aprioristicamente do conceito de deficiência qualquer condição e situação que exija tratamento diferenciado, sob pena de prejudicar a concorrência no concurso público em igualdade. Nesse sentido, muito embora deficiência e doença sejam situações distintas, ambas apresentam efeito prático muito semelhante em diversos casos concretos. Seria, então, de se equiparar doença à condição de deficiência, a fim de atender o disposto no art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal.

Em terceiro lugar, devem-se considerar concretamente os mecanismos e alternativas para dotar as “pessoas portadoras de deficiência” com condições e em situações que as coloquem em níveis equivalentes às pessoas que não apresentam nenhuma deficiência, de modo a possibilitar concorrência em igualdade em concurso público, na forma do art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal.

Por último, sendo o conceito de deficiência em “evolução”, não se pode descrever de antemão todas as barreiras e obstáculos que impedem as “pessoas portadoras de deficiência” de disputarem em nível de igualdade as oportunidades de concurso público, conforme define o art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal. Por outro lado, não se pode olvidar daquelas barreiras já identificadas no próprio meio em si nos seus matizes e as comportamentais oriundas da alteridade.

Sabe-se da existência de leis esparsas relacionadas a determinadas doenças com propósitos específicos, tais como, previdenciário, tributário etc., que poderiam servir de fundamento para inserção de pessoas acometidas com tais moléstias num certame, nos termos do art. 37, inciso VIII, da Constituição Federal. Para isso, no entanto, há necessidade de ingressar com ação administrativa ou mesmo judicial, já que os concursos públicos são regidos por editais, os quais estão vinculados às definições e classificações definidas na Lei 7.853/89, Decreto 3.298/99 e Lei 8.112/90, conforme visto anteriormente.

Não se arrisca aqui a atribuir um conceito específico, já que a “apreensão intelectual” da questão ora posta exige atuação interdisciplinar que contemple, por exemplo, médicos, psicólogos, fisioterapeutas, sociólogos, juristas, peritos, filósofos, associações de categorias etc. Pode-se, no entanto, afirmar que a definição presente na legislação de concurso público encontra-se em descompasso com a realidade, exigindo-se um retorno ao debate conceitual para plasmar nova definição.

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Sobre o autor
Robson Gonçalves Dourado

Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Brasília; Pós-Graduado em Direito e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Distrito Federal; Pós-Graduado em Direito e Prática Processual nos Tribunais pelo Uniceub; Bacharel em Direito pelo Uniceub-DF; MBA em Marketing pela FGV-DF; Licenciado em História pelo Uniceub-DF; Advogado; Colaborador na Defensoria Pública do DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOURADO, Robson Gonçalves. Pessoas portadoras de deficiência e concurso público.: Amplitude constitucional do art. 37, VIII, da Constituição de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4157, 18 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34019. Acesso em: 22 dez. 2024.

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