4 COMPORTAMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS E DA AGÊNCIA REGULADORA DA AVIAÇÃO CIVIL SOBRE A VINCULAÇÃO NA UTILIZAÇÃO DE PASSAGENS AÉREAS
Antes de analisar o comportamento das agências reguladoras e dos tratados internacionais sobre a venda de passagens aéreas por essas companhias, urge ressaltar que ambas possuem como objetivo principal a regulamentação legal e técnica sobre a atuação dessas empresas no mercado consumidor. Desse modo, a defesa do consumidor se torna, assim, subsidiaria aos demais objetivos dessas normas, o que acaba os tornando frágeis e deixando diversos pontos obscuros sobre este tema.
4.1 Do posicionamento dos tratados internacionais sobre a venda casada de passagens aéreas
Os tratados internacionais, em sua origem, têm como principal função realizar a regulamentação jurídica de todo tipo de relação transnacional. Deste modo, visam uma regulamentação dos métodos e da legislação relativa ao transporte de cargas e passageiros internacionais. Basicamente, existem dois tratados internacionais que tratam sobre a aviação: a Convenção de Varsóvia e o Tratado de Montreal.
Ocorre que, analisando tanto a Convenção de Varsóvia como o Tratado de Montreal, verifica-se que nenhum abarca, seja para proibir ou legalizar, a venda casada de passagens por parte das empresas aéreas, deixando a mercê das próprias companhias decidirem ou não sobre o tema. Desse modo, como nas relações de direito privado vale a máxima "o que não é proibido é permitido", as companhias aéreas adaptam o tema de modo que não descumpram diretamente – ou, aparentemente – a lei, e se beneficiem financeiramente.
Assim, essa prática claramente lesiva aos usuários, que deveria ser proibida pelos próprios tratados, uma vez que estes detêm o poder de regulamentação das práticas aéreas internacionais e nacionais, acaba sendo menosprezada por estes órgãos, tornando as empresas aéreas suas próprias legisladoras e interpretes da lei sobre a venda casada aplicada diretamente às passagens aéreas.
4.2 Do posicionamento da Agência Nacional da Aviação Civil sobre a venda casada de passagens aéreas
Diferentemente dos tratados internacionais, a Agência Regulamentadora da Aviação Civil Nacional, a ANAC, possui uma função de normativização técnica dos serviços prestados pelas companhias aéreas. Ainda, diferentemente daqueles, ela não se abstém ao tema, como veremos a seguir:
Seção III
Do Reembolso
Art. 7º O passageiro que não utilizar o bilhete de passagem terá direito, dentro do respectivo prazo de validade, à restituição da quantia efetivamente paga e monetariamente atualizada, conforme os procedimentos a seguir:
I - bilhete doméstico - o saldo a ser reembolsado deverá ser o equivalente ao valor residual do percurso não utilizado, calculado com base na tarifa, expressa na moeda corrente nacional, prática da pela empresa emissora, na data do pedido de reembolso;
II - bilhete internacional - o saldo a ser reembolsado deverá ser o equivalente ao valor residual do percurso não utilizado, calculado com base na tarifa, expressa em moeda.
§ 1o Se o reembolso for decorrente de uma conveniência do passageiro, sem que tenha havido qualquer modificação nas condições contratadas por parte do transportador, poderá ser descontada uma taxa de serviço correspondente a 10% (dez por cento) do saldo reembolsável ou o equivalente, em moeda corrente nacional, a US$ 25.00 (vinte e cinco dólares americanos), convertidos à taxa de câmbio vigente na data do pedido do reembolso, o que for menor.
§ 2° O reembolso de bilhete adquirido mediante tarifa promocional obedecerá às eventuais restrições constantes das condições de sua aplicação.[9]
Assim, como se pode observar, a ANAC aborda o tema, prevendo os valores que devem ser ressarcidos ao usuário caso não utilize determinada passagem aérea. Porém, há um ponto precário na regulamentação da ANAC sobre o tema, uma vez que a agência regula as compras de passagens de preço normal, deixando a mercê das próprias empresas aéreas decidirem como realizarão as passagens compradas em promoção.
Então, é desta falha regulamentadora que as empresas aéreas utilizam para se beneficiar: por poderem regular quase que livremente a definição das passagens compradas em promoção, as empresas próprias definem quais são as passagens compradas com valores promocionais, considerando quase a totalidade de compras realizadas de duas passagens simultaneamente como promoção, alegando que as passagens compradas em conjunto no sistema itinerário apresentam preços melhores ao consumidor do que se fosse compradas separadamente. Ocorre que isso não é fato, como já foi demonstrado anteriormente.
A ANAC, desse modo, ao não especificar o significado de promoção, acaba por abrir uma margem de atuação ilegal para empresas aéreas, prejudicando os consumidores. O autor Parent (2005, p. de internet), em seu artigo sobre o Direito Mercantil, afirma o seguinte:
[...] siendo el contrato de transporte aéreo un contrato de adhesión, los pasajeros aceptan las condiciones previamente definidas por las compañías sin posibilidad de negociación; en estas circunstancias, se precisa de una legislación que com claridade establezca los derechos mínimos e inderogables de los pasajeros em situaciones certamente desagradables. [10]
Apesar de o autor tratar exclusivamente, em seus escritos, sobre os contratos de transporte, cabe realizar uma analogia com as portarias regulamentadoras da ANAC. Estas, ao serem redigidas, devem ser feitas de modo claro, a fim de não possibilitar brechas a empresas aéreas que acabem prejudicando os consumidores na aquisição desses serviços. Desnecessário comprovar a exigência a tal fundamento, uma vez que a boa-fé e a probidade constituem um dos princípios dos contratos, que devem ser respeitados. Tais princípios fazem referência “ao conhecimento ou à ignorância da pessoa relativamente a certos fatos, sendo levada em consideração pelo direito, para os fins específicos da situação regulada” (GONÇALVES, 2004, p. 55).
5 POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL E DOUTRINáRIO ACERCA DA REALIZAçãO DA VENDA CASADA PELAS COMPANHIAS AÉREAS
O tema em questão, simples pelas suas configurações práticas, apresenta-se complexo quando abordado teoricamente à luz da aplicação do princípio da venda casada e sua definição, uma vez que é pouco abordado no cenário jurídico nacional se cabe aplicar ou não o princípio da proibição da venda casada às vendas realizadas no sistema itinerário pelas companhias aéreas.
Porém, por se tratar a utilização de passagens aéreas um fato corriqueiro no cotidiano das pessoas, uma vez que este tipo de transporte se encontra em franca expansão, causada pelo aumento de renda da população nacional e pelo barateamento das passagens aéreas, já se observam alguns litígios judiciais sobre o tema.
Observa-se, a seguir, alguns trechos de julgados que seguem o posicionamento majoritário que os Tribunais vêm adotando sobre o tema.
[...] Considera-se abusiva a cláusula contratual que prevê o cancelamento da passagem aérea de volta em face da não utilização integral do bilhete de ida, consoante emerge dos artigos 39, I e 51, XI do Código de Defesa do Consumidor. - É de se reconhecer a obrigação da ré em indenizar os danos patrimoniais e extrapatrimoniais causados à consumidora, em face do cancelamento unilateral do contrato e da extensão dos transtornos e frustração por ela sofridos, no momento do embarque [...].[11]
[...] EMPRESA AÉREA, QUE AO EFETUAR A VENDA DE NOVOS BILHETES PARA A PASSAGEIRA QUE PERDEU A VIAGEM DE IDA (NO SHOW), NÃO ESCLARECE À CONSUMIDORA QUE A VIAGEM DE RETORNO TAMBÉM FOI CANCELADA, INDUZINDO-A EM ERRO, É RESPONSÁVEL PELOS PREJUÍZOS DECORRENTES DA AQUISIÇÃO DE NOVAS PASSAGENS DE RETORNO [...].[12]
Observados os julgados apresentados, verifica-se que todos apresentam um posicionamento favorável ao consumidor, determinando a devolução do valor das passagens canceladas a título de indenização por danos materiais. Assim, pode-se afirmar que já existe uma jurisprudência se formando sobre o tema, em benefício dos consumidores. Diante do que se segue, a tendência é que as empresas aéreas, seguindo as decisões judiciais, retirem dos seus contratos de transporte essa cláusula abusiva, que ensejam ações judiciais que serão prejudiciais às empresas, uma vez que só trarão mais custos a estas. Se necessário o aprofundamento da jurisprudência da matéria, pode-se observar as decisões das Ações Cíveis dos Juizados especiais n. 20040110650409/DF, de 01/06/2005[13]; e a n. 1086665320058070001/DF, de 25/05/2007[14]; Além do Recurso Inominado 71003254059, do Juizado Cível de Porto Alegre/RS[15].
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, observa-se que se configura claramente a afronta das empresas aéreas ao princípio da venda casada, utilizando, para isto, métodos e lacunas nas legislações para se beneficiarem, deturpando assim o direito dos consumidores. Essas companhias, ao vincularem o uso de uma passagem aérea ao uso de outra totalmente independente, desafiam o direito dos consumidores de adquirirem ou utilizarem serviços que foram pagos adequadamente da forma que bem entenderem, assim como corrompem o que está previsto no Código de Defesa do Consumidor.
Apesar dos pontos obscuros existentes na legislação, contratos e orientações de órgãos reguladores sobre o tema, a jurisprudência vem sendo favorável aos consumidores, decidindo principalmente que as empresas aéreas devolvam o valor pago pelas passagens aéreas canceladas aos seus consumidores. Porém, o judiciário, que ainda está atuando de modo repressivo contra essa postura das empresas aéreas, deve passar a ter uma posição preventiva do tema.
Desse modo, conclui-se que apenas a condenação para a devolução da passagem não resolve o problema, uma vez que exige que o consumidor lesado requisite a devolução por meios judiciais. Com as decisões recentes que verificam a prática abusiva das empresas aéreas, o poder judiciário deve atuar de modo a proibir a realização dessa prática pelas empresas aéreas, aplicando multas às empresas que descumpri-las.
Outra alternativa eficiente para conter essa prática seria a regulamentação pela Agência Nacional da Aviação Civil do que se trata de passagens promocionais. Desse modo, as empresas poderiam aplicar essa regra apenas para as passagens legalmente promocionais, que fornecessem, de fato, uma vantagem ao consumidor, que valesse a pena correr o risco da perda da passagem.
Não obstante, uma medida eficiente que diminuiria a lesividade ao consumidor nesse ponto seria a informação. As empresas aéreas, ao manterem essa cláusula abusiva apenas nos seus contratos de transporte, acabam não informando ao consumidor sobre uma informação imprescindível a compra conjunta de passagens, induzindo o consumidor a erro. A imposição judicial da obrigação das empresas aéreas em informar, antes da conclusão da compra, que a não utilização de uma passagem acarreta a perda de outra informaria ao consumidor dos riscos que correm ao realizar a compra de passagens conjuntas.
Então, apesar da afronta desse princípio ser causado pelas empresas aéreas, há uma falha na legislação nacional e no modo de atuação das agências reguladoras, que abrem espaços para uma atuação antiética e ilegal das empresas aéreas. Cabe, assim, legislar de modo seguro sobre os pontos anteriormente relatados que permitem essa atuação irregular, realizando, assim, uma defesa aos consumidores plena e eficaz.