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A fraude processual e o crime previsto no artigo 2º, § 1º, da Lei nº 12.850

20/01/2015 às 18:36

Resumo:


  • O crime de fraude processual, previsto no artigo 347 do Código Penal, consiste em alterar a cena de um processo em andamento para induzir a erro o juiz ou perito, com pena de detenção de três meses a dois anos e multa.

  • Qualquer pessoa pode cometer o crime de fraude processual, e ele é considerado um crime comum, podendo ser praticado por parte ou terceiros ao processo, com o objetivo de proteger a administração da justiça.

  • O crime é considerado formal e consuma-se com a inovação artificiosa, independentemente de o juiz ou perito serem efetivamente induzidos a erro, e admite tentativa.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O artigo analisa os crimes de fraude processual e aquele previsto na Lei de Organizações Criminosas.

Prevê o artigo 347 do Código Penal o crime de fraude processual  ao prescrever o seguinte tipo penal: “ Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, da coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito. A pena prevista é de detenção de  três meses a dois anos, e multa.

Historicamente, o Código Rocco, no artigo 374, previa o ilícito.

Tutela-se a administração da justiça, visando-se sancionar o improbus litigator, sendo crime comum, que pode ser praticado por qualquer um, seja parte ou estranho ao processo.

O dispositivo previsto tem como objetividade jurídica regular a atividade da justiça, evitando a fraude que possa produzir o falseamento da prova e que possa levar ao erro no julgamento.

Como referenciado, qualquer pessoa pode cometê-lo, seja ou não interessada na solução da lide, podendo ser responsabilizado o funcionário público, se a conduta não configurar um crime próprio, ou ainda o procurador da parte, embora se exija, como sempre, que, de alguma forma, concorra para o resultado.

O tipo objetivo do crime previsto no artigo 347 do Código Penal é a inovação artificiosa, na pendência do processo civil, administrativo ou penal. O agente modifica, muda, deforma os objetos materiais(o estado de lugar, da coisa ou de pessoa), alterando a situação preexistente. Assim, tratando-se de pessoa, pode haver uma inovação no aspecto físico, ou externo, ou anatômico interno, mas não psíquico, civil ou social(RT 502/297). Como disse Paulo José da Costa (Comentários ao Código Penal, São Paulo Saraiva, volume III, 1989, pág. 568), se a alteração for grosseira, constatável a primeira vista, não se perfaz o delito. Mas a inovação há de vir acompanhada de um artifício. Lugar é qualquer ambiente que deve ser objeto de exame pelo magistrado ou perito. Coisa é a entidade móvel ou imóvel, podendo ser nela compreendida o cadáver, tendo-se como tal: lavar manchas de sangue, alterar escritura de livro mercantil, eliminar sinais de abalroamento de veículo. Entre as pessoas que poderão ser artificiosamente inovadas podem ser enumeradas não só o réu e a vítima como ainda todas as pessoas que devam ser objeto da investigação probatória.

Interessa-nos a fraude processual no processo penal.

Prevê o artigo 347, em seu parágrafo único, a fraude no processo penal , assim se dizendo: “Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.”

No caso que envolve a fraude no processo penal, não será necessário que se tenha iniciado o processo penal, pois é possível a prática do crime a partir do inicio das investigações para a apuração do ilícito, mesmo que não se tenha instaurado, formalmente, o inquérito policial ou a investigação pelo Ministério Público, titular da ação penal pública.

No caso de ação penal privada ou de ação penal pública condicionada diz-se que o pressuposto existe a partir do oferecimento da queixa ou para o requerimento para a instauração do inquérito na primeira hipótese e da existência daquelas condições de procedibilidade, nos demais.

Exige-se, como tipo subjetivo, o dolo específico, a vontade de praticar a alteração, exigindo-se que o agente tenha como induzir em erro o juiz ou perito.

Porém, já se entendeu que ocorre inexigibilidade de conduta diversa quando o autor de crime de homicídio nega a autoria e dá sumiço à arma, atuando, dessa forma, no direito natural de autodefesa(RF 258/356).

Lembre-se decisão do Supremo Tribunal Federal onde se disse:  “Por outro lado, entendeu-se indevida a imputação ao paciente do cometimento, em concurso, dos delitos de ocultação de cadáver e de fraude processual, sob o risco de bis in idem, uma vez que esta, consistente, no caso, na limpeza do local do crime, poderia ser inserida no iter criminis daquela. Salientou-se, por fim, o caráter subsidiário da fraude processual, o fato de a ocultação de cadáver representar forma especialíssima dessa fraude e a possibilidade desta ser realizada de diversos modos, desde que artificiosos. Vencidos os Ministros Gilmar Mendes, relator, e Joaquim Barbosa que indeferiam o writ ao fundamento de que a sua análise envolveria o reexame de elementos fáticos relacionados ao crime de homicídio qualificado e, superada esta questão, o fato descrito configurar, em tese, crime de fraude processual.” (HC 88733/SP, rel. orig. Min. Gilmar Mendes, rel. p/ o acórdão Min. Cezar Peluso, 17.10.2006).

Em outro caso, de notoriedade nacional, tem-se o fato conhecido de homicídio pela morte de sua filha, onde  Alexandre Nardoni foi acusado de fraude processual. O mesmo ocorreu no “Caso Richtofen”. A razão, em ambas as histórias, foi a possível alteração da cena do crime, com o intuito de induzir a erro a perícia e o julgador, conduta punível segundo a redação do art. 347 do CP, mediante a inovação do lugar – pune-se, também, a inovação de coisa ou pessoa. Como inovar, entenda a alteração substancial do lugar, coisa ou pessoa (ex.: modificar o local onde ocorreu um homicídio para que pareça latrocínio), capaz de confundir a perícia ou o juiz. Nesses casos tem-se a discussão com relação a incidência do direito a não autoincriminação. É certo que o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho lembrou que o direito constitucional que garante à pessoa não se autoincriminar não abrange a possibilidade de os acusados alterarem a cena do crime, levando os peritos e policiais, a cometerem um erro de avaliação. Lembre que, no famoso Caso Nardoni(os pais foram acusados de terem matado a sua filha Isabela), foi discutida pelo Superior Tribunal de Justiça a amplitude do direito de não autoincriminação(Quinta Turma, HC 137.206, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, J. 1.121.09). A Quinta Turma rejeitou, por unanimidade, habeas corpus impetrado pela defesa em favor de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá. Na ordem de habeas corpus impetrada a defesa pedia o trancamento da ação penal no que diz respeito ao delito de fraude processual, que também foi imputado ao casal. De acordo com a acusação, teria o casal limpado o local do crime logo após a morte da vítima.  

Consuma-se o crime com a alteração, a inovação artificiosa, não sendo necessário para a integração da fraude processual que o juiz ou perito sejam levados a erro ou que o processo não tenha chegado a fase de julgamento. Basta a fraude, idônea, que provoque o erro, o engano.

O crime é subsidiário, pois se o fato constitui crime mais grave será absorvida por este. O delito e formal, independendo para consumar-se que o agente obtenha o fim visado. Por fim, admite a tentativa.

Outro é o delito cometido com base no artigo 2º, § 1ª, da Lei 12.850, onde se diz que nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa. A pena prevista é de reclusão, de três a oito anos e multa, sem prejuízo das penas correspondentes  às demais infrações. Trata-se de crime contra a paz pública, assim como o crime de organização criminosa.

Devido ao caráter transnacional das organizações criminosas, a Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013, aplica-se às infrações penais previstas em tratados ou convenções internacionais quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente, às organizações terroristas internacionais reconhecidas, segundo o direito internacional, lembrando que, até aqui, não há diploma penal, que, à luz do principio da legalidade, discipline sobre o crime de terrorismo.

A Lei 12.850 prevê assim tipo penal, no artigo 2º, um crime com relação a quem promova, constitua, financie ou integre pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa, incorrendo, nas mesmas penas, quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva a organização criminosa.

Consiste o crime organizado, a teor do artigo 2º da Lei 12.850/12, nas ações de promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa organização criminosa.

Analisemos o tipo penal disposto no artigo 2º, § 1º, da Lei 12.850, que se aproxima do delito de fraude processual.

Impedir  é opor-se a, estorvar, não permitir, barrar, dificultar, obstar, sustar, tolher.

Embaraçar é dificultar, trazer desordem, confusão, perturbar.

A palavra investigação deve ser interpretada de forma extensiva, para abranger, não apenas, a investigação que é estritamente considerada(investigação pela policia ou pelo Parquet), como ainda o próprio processo judicial, afastando-se a incidência do artigo 344 do Código Penal, que é a regra geral.

Assim o agente pode esconder, queimar documentos que possam comprovar a prática de crime de organização criminosa prevista na Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013.   

A pena in abstrato prevista é de reclusão, de 3(três) a 8(oito) anos e multa, sem prejuízo de outras correspondentes.

Trata-se de tipo penal misto alternativo, regido pelo princípio da alternatividade(a realização de um só verbo já configura o crime, pois  caso as duas condutas sejam praticadas no mesmo contexto fático, estaremos diante de um mesmo crime). Pode ser sujeito qualquer pessoa, sendo o crime comum, doloso, formal.

Para o crime organizado, tão importante como planejar, financiar, é garantir a impunidade dos seus atos, que pode acontecer: matando-se testemunhas, ameaçando-as, destruindo provas documentais e periciais.  

Trata-se de crime de perigo abstrato, presumido pela norma que se contenta com a prática do fato e pressupõe ser ele perigoso e sobre o qual cabe tentativa.  

É  crime que envolve perigo coletivo, comum, uma vez que ficam expostos ao risco os interesses jurídicos de um número indeterminado de pessoas.

É ainda crime contra a administração da justiça, independente daqueles que na societatis delinquentium vierem a ser praticados, desde que sejam punidos com penas máximas superiores a quatro anos ou revelem o caráter transnacional,   havendo concurso material entre tal crime e os que vierem a ser praticados pela organização criminosa. Saliente-se que os bens protegidos no crime organizado não se limitam à paz ou a tranquilidade pública, senão a própria preservação material das instituições.

Não haverá bis in idem com relação  a qualificação dos crimes de roubo com emprego de arma e de organização criminosa com a majorante prevista no artigo 2º, § 2º, da Lei 12.850.

Uma vez que não ocorre o bis in idem, sendo o agente punido pelo crime de organização criminosa, há que se qualificar o crime praticado por seus integrantes em concurso de agentes, como se vê do roubo(artigo 157, II, CP).

Exige-se o dolo específico, envolvendo o acordo de vontade, um verdadeiro vínculo associativo.

São marcantes as diferenças entre o crime de associação criminosa(artigo 288 do CP) e o de organização criminosa(Lei 12.850/13). Só existe a segunda quando a associação pretende praticar crimes com pena máxima superior a quatro anos ou que tenha caráter transnacional. Se o grupo pretende praticar crimes de menor intensidade pode ser enquadrado no tipo previsto no artigo 288 do CP. No artigo 288 do CP exigem-se três ou mais pessoas, já o crime de organização criminosa exige, requer, quatro ou mais pessoas. A finalidade da associação criminosa(artigo 288 do CP) é a de cometer crimes, já a finalidade da organização criminosa é a de, direta ou indiretamente, obter vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas sejam superiores a quatro anos ou que tenham caráter transnacional. O artigo 288 do CP fala em crimes; na organização criminosa fala-se em infrações penais, que abrangem tanto crimes como contravenções. O artigo 288 do CP não exige estrutura ordenada nem divisão de tarefas, já que isso faz parte da organização criminosa.

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Veja-se o perigo das organizações criminosas ao fornecer  drogas, sexo, jogos, tráfico de pessoas, tráfico de influência,  tráfico de órgãos, tráfico de  animais, tráfico de  pedras preciosas, material pornográfico, armas, bebidas, desfazimento de lixo tóxico, fraudes contra a Administração Pública,  uma gama vasta de perigosas atividades contrárias ao interesse da sociedade.

Assim como na quadrilha ou bando estamos diante de um crime permanente, onde os agentes são levados a delinquir indefinidamente, dentro de uma estruturação ordenada, com necessária divisão de tarefas, ainda que informalmente,  mesmo que na prática de crime continuado ou ainda de habitualidade, como se vê no tráfico de mulheres, dentro de uma contínua vinculação entre os que participam da organização. Exige-se um grupo estável, permanente, no propósito de lucro, onde se visa garantir a impunidade, dilapidando o poder do Estado. O requisito da formalidade da organização foi dispensado pela lei, de forma expressa, tendo-se que, mesmo que alguns membros do grupo sejam trocados, o relevante é a permanência do próprio grupo, que conta com estabilidade e propósitos, fins, bem definidos.

É  um crime coletivo, plurissubjetivo ou de concurso necessário de condutas paralelas, computando-se as pessoas ainda que inimputáveis, cuja presença irá acarretar, a teor do artigo 2º, § 4º, a majorante  de 1/6 (um sexto) a 2/3(dois terços) se há participação de criança ou adolescente.

É certo que no crime de quadrilha ou bando entende-se que pouco importa que haja um líder, um chefe, que todos desempenhem uma tarefa específica, pois o que importaria é o propósito deliberado de participação ou de contribuição, de forma estável e permanente, para o êxito do grupo, como lecionaram Júlio Fabbrini Mirabete  e Renato Mirabete(Manual de Direito Penal, 22ª edição, São Paulo, Atlas, pág. 170).

 Por sua vez, o crime de organização criminosa envolve, ainda que informalmente, distribuição de tarefas específicas com o propósito deliberado de contribuição, de forma a se ter uma verdadeira divisão de encargos entre os seus participantes.

A pena in abstrato previsto é de reclusão, de 3(três) a 8(oito) anos e multa, sem prejuízo de outras correspondentes.

Como efeito da condenação, à luz do que já se dispunha dos artigos 91 e 92 do Código Penal, tem-se a teor do artigo 1º, § 6º, da Lei 12.850, a perda do cargo, função, emprego ou mandato eletivo e a interdição para o exercício de função ou cargo público, com a condenação transitada em julgado, pelo prazo de 8(oito) anos subsequentes ao cumprimento da pena.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A fraude processual e o crime previsto no artigo 2º, § 1º, da Lei nº 12.850. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4220, 20 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35563. Acesso em: 22 dez. 2024.

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