INTRODUÇÃO
Em 03 de novembro de 2011, o ministro da Previdência Social e o presidente do INSS protocolaram, junto à Justiça Federal do Distrito Federal, ação regressiva de cobrança em face de um motorista que, em 27 de abril de 2008, matou cinco pessoas e lesionou outras três. É a primeira ação do tipo no Brasil.
Para este leading case, o INSS, autarquia autora da ação, alega que, em virtude da imprudência do réu, terá de desembolsar aproximadamente R$ 91.000,00, eis que uma das vítimas fatais era sua segurada e, por deixar esposa e filhos, tem que pagar pensão por morte, nos termos da Lei nº. 8.213/91.
Ainda, visando tornar tal ação numa prática recorrente, afirma o instituto promovente que não pretende reaver a quantia que desembolsará por completo, a depender da situação econômica de cada réu, mas que se valerá da penhora de bens, além de outras medidas correlatas.
Tal ação, que aguarda para ser julgada, pode abrir precedentes no ordenamento jurídico pátrio. De fato, nunca o Instituto Previdenciário buscou operar de formas menos onerosa valendo-se de ações regressivas em acidentes de trânsito. Prima facie, a intenção do INSS parece ser louvável.
Contudo, com o presente trabalho, demonstrar-se-á que certas práticas ocorrerão ao arrepio da lei, algo intolerável para o direito.
1 – Do Instituto Nacional do Seguro Social
O Instituto Nacional do Seguro Social surgiu em 27 de junho de 1990, resultante da fusão entre os antigos Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social e o Instituto Nacional de Previdência Social, nos termos do Decreto nº. 99.350/90.
Vinculado ao Ministério da Previdência Social, tal Instituto representa a espinha dorsal deste ministério, sendo o responsável pelo atendimento direto ao público, concedendo ou denegando os requerimentos a benefícios previdenciários, nos termos da Lei nº. 8.213/91.
Não por acaso o INSS, em seu site na internet, apresenta como seu objetivo o art. 1º da retrocitada lei: “reconhecer e conceder direitos aos seus segurados. A renda transferida pela Previdência Social é utilizada para substituir a renda do trabalhador contribuinte, quando ele perde a capacidade de trabalho, seja pela doença, invalidez, idade avançada, morte e desemprego involuntário, ou mesmo a maternidade e a reclusão”.
Ora, a Previdência Social obtém receita de descontos realizados pelos trabalhadores e empregadores, atuando justamente em casos de doença, idade avançada, desemprego voluntário, maternidade, reclusão e – frequentemente em acidentes de trânsito –, invalidez e morte.
2 – Do Seguro DPVAT
O seguro obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre – DPVAT é tratado na Lei nº. 6.194/74, servindo para indenizações por morte, invalidez permanente total ou parcial, e por despesas de assistência médica e suplementares, nos valores apresentados nas alíneas daquela lei.
Sem que o proprietário de veículo automotor pague o seguro obrigatório, considera-se que este não está completamente licenciado, de modo que, em havendo algum acidente, as despesas – aí incluindo indenizações – incorrerão por parte do proprietário do veículo, além de estar sujeito a outras penalidades, como multas.
Discute-se sobre a natureza jurídica do referido seguro. O STJ chegou a manifestar-se no sentido de que se trataria de contribuição parafiscal, tendo, portanto, caráter tributário (REsp nº. 68.146/SP e REsp nº. 218.418/SP).
Contudo, o STF já se manifestou, em medida cautelar na ADIn nº. 1.003, que o seguro DPVAT tem natureza jurídica de responsabilidade civil, conforme legislação alienígena e sua origem.
Percebe-se que tanto o INSS quanto o DPVAT atuam por sobre morte, invalidez e lesões causadas, sendo que este para vítimas de acidentes com veículos automotores, independente de quem seja a culpa, e aquele para seus segurados ou herdeiros.
3 – Da Ação Regressiva
A Lei nº. 8.213/91, em seu art. 120, prevê que, para os acidentes de trabalho em que o empregador não observava as normas concernentes a segurança e higiene de trabalho indicados para segurança dos empregados serão réus de ação proposta pela Previdência Social contra os responsáveis.
Percebe-se que há previsão legal para ação regressiva apenas em relação a acidentes de trabalho, silenciando a lei em relação a possibilidade de ação regressiva em acidentes de trânsito.
Ora, buscar o INSS, via ação regressiva, dos valores pagos às vítimas de acidentes de trânsito é inconstitucional, já que fere o princípio da legalidade, que informa que a Administração Pública (aí incluídas suas autarquias e, consequentemente, a Instituição Promovente) apenas pode agir em havendo expressa previsão legal, nos termos do art. 37, caput, da Constituição Federal.
4 – Da Responsabilidade Civil em Acidentes de Trânsito
Em sendo o entendimento do STF que o seguro obrigatório DPVAT tem por natureza jurídica de responsabilidade civil, mister se faz traçar algumas considerações sobre este assunto, correlacionando-o a acidentes de trânsito.
Evolução Histórica da Responsabilidade Civil
O Estado surgiu precipuamente com o fim de resguardar a ordem social, ante injustiças cometidas pela população, apesar de, como no caso analisado, garantir, de igual modo, auxílio previdenciário em caso de morte, invalidez e lesões corporais, criando, para tanto, o INSS e obrigando os proprietários de veículos a pagar o seguro DPVAT.
Por vezes, a população age por seus ímpetos, na denominada autotutela, buscando restaurar danos por seus próprios esforços, mas que acabava cometendo injustiças sem tamanho, por atuarem com paixão, em detrimento da razão.
Sobre a autotutela, que hodiernamente é tipificada como crime, salvo algumas poucas exceções legalmente previstas, apresentamos a seguinte lição de Fredie Didier Jr. (Curso de Direito Processual Civil, v.1. Salvador: Jus Podium. 13ª ed., 2011, p. 99):
Trata-se de solução do conflito de interesses que se dá pela imposição da vontade de um deles, com o sacrifício do interesse do outro. Solução egoísta e parcial do litígio. O “juiz da causa” é uma das partes.
Ora, é consenso doutrinário que o Estado, numa civilização incipiente, surge justamente para resguardar a população dela mesma, tutelando as condutas sociais pelo Direito. Nesse sentido, destacamos a obra Teoria Geral do Processo, de Grinover, Cintra e Dinamarco (São Paulo: Malheiros. 22ª ed., 2006, p. 27), que assim afirmam:
Nas fases primitivas de civilização dos povos, inexistia um Estado suficientemente forte para superar os ímpetos individualistas dos homens e impor o direito acima da vontade dos particulares: por isso, não só inexistia um órgão estatal que, com soberania e autoridade, garantisse o cumprimento do direito, como ainda não havia sequer as leis (normas gerais e abstratas impostas pelo Estado aos particulares).
De igual modo, caminhando ao lado do Estado, existe o direito – bem como a Responsabilidade Civil – que existe para que os que sofrem danos sejam reparados pelo Poder Judiciário.
Maria Helena Diniz (Curso de Direito Civil Brasileiro, v.7. São Paulo: Saraiva. 24ª ed., 2010, p.11) leciona sobre a evolução da Responsabilidade Civil, que, após a fase da autotutela, tratada anteriormente, chegou-se ao período da composição, em que as partes iam a terceiro imparcial, a fim de restituir os danos causados.
Contudo, apesar da intermediação de terceiro neutro, ainda não havia a diferenciação entre a responsabilidade civil da penal e moral, o que só ocorreu na Idade Média, com a estruturação da idéia de dolo e de culpa stricto sensu. Ademais, destaca a ilustre doutrinadora que houve considerável contribuição da doutrina para a consubstanciação da teoria da responsabilidade civil, como a do jurista francês Domat.
Disso, percebe-se que o Estado, que deveria resguardar a ordem social das injustiças, busca fugir da obrigação que avocou ao instituir a Previdência Social, ao arrepio da Constituição, intentando ações de regresso a fim de ter seu déficit orçamentário diminuído contra pessoas que já são responsabilizadas penalmente.
Espécies de Responsabilidade Civil
A responsabilidade civil pode apresentar-se sob diferentes espécies, conforme a perspectiva em que se analisa. Maria Helena Diniz (op. cit. 128-130) leciona que pode haver classificações quanto ao fato gerador; ao fundamento; e ao agente que pratica a ação.
No tocante à classificação quanto ao fato gerador, a responsabilidade civil pode ser contratual – oriunda de inexecução de negócio jurídico bilateral ou unilateral – ou extracontratual – resultante do inadimplemento normativo, como a prática de um ilícito.
Quanto ao fundamento, a responsabilidade civil classifica-se em subjetiva ou objetiva. A responsabilidade subjetiva se dá quando se encontrar sua justificativa na culpa ou dolo por ação ou omissão, lesiva a determinada pessoa, fazendo-se necessária a prova da culpa do agente, para haver a reparação.
Já a responsabilidade civil objetiva é aquela fundada no risco, que explica essa responsabilidade no fato de haver o agente causado prejuízo à vítima ou a seus bens, independente da conduta culposa ou dolosa do causador do dano, bastando haver a prova do nexo causal em relação à ação e o dano para ocorrer o dever de restauração, independente do animus do agente.
Em relação ao agente que pratica a ação, a responsabilidade pode ser direta – se proveniente da própria pessoa imputada – ou indireta, se promana de ato de terceiro, com o qual o agente tem vínculo legal.
Ora, em acidentes de trânsito, a responsabilidade é extracontratual, subjetiva e direta. É extracontratual porque advém de norma cogente (art.186 do Código Civil), não proveniente de negócio jurídico, ou seja, não dependeu da vontade das partes.
A responsabilidade é subjetiva porque, além de haver conduta condenável por parte de pessoa determinada, deve-se também provar a culpa e o nexo causal entre a ação do agente e o dano sofrido no acidente de trânsito. No concernente ao agente, temos que, para acidentes de trânsito, a responsabilidade é direta.
Do Nexo de Causalidade
Ora, em sendo a responsabilidade em acidentes de trânsito subjetiva, temos que há a necessidade de se fazer uma análise da ação, a fim de verificar a ocorrência de dolo ou culpa, para que se chegue ao dever de restaurar o dano existente.
Isso implica que há necessidade de se comprovar o elemento subjetivo da culpa, provando-se o nexo de causalidade entre os fatos expostos e os danos implementados pela situação factual e decorrentes dela.
Vale salientar que a única possibilidade de se eximir dessa responsabilidade é provando a culpa exclusiva ou, pelo menos, concorrente do lesado.
Maria Helena Diniz, em seu Dicionário Jurídico Universitário (São Paulo: Saraiva. 2010), define que o nexo de causalidade é a “relação existente entre a ação e o dano para que se configure a responsabilidade civil”.
Ora, a ilicitude é a relação de antagonismo, de contrariedade entre a conduta do agente e o ordenamento jurídico. Se a conduta típica do agente colidir com o ordenamento jurídico penal, diremos ser ela penalmente ilícita.
Em suma, deve-se salientar, em acidentes de trânsito, o nexo de causalidade existente entre ação e dano, devendo, sim, caso haja nexo causal, aquele que agiu culposamente, causando dano a outrem, reparar o dano causado.
Da Ação Culposa
Para que haja o dever de indenizar, deve haver, por parte do agente causador do dano, uma ação culposa. Novamente recorremos às lições de Maria Helena Diniz (Op. Cit., 2010, p. 40):
A ação, elemento constitutivo da responsabilidade, vem a ser o ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause dano a outrem gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado.
A culpa, durante vários séculos, foi considerada como elemento essencial para a caracterização da responsabilidade civil, chegando Ripert (apud DINIZ, 2010), no século XIX, a discorrer que “os juristas não ousariam levantar qualquer dúvida sobre esse fundamento da responsabilidade civil”.
Todavia, nos séculos seguintes, este instituto foi combatido com veemência, cominando, no Brasil, com o definitivo rebaixamento do mesmo à condição de elemento acidental com a criação do Código Civil de 2002.
Desta forma a culpa apenas passou a ser considerada na responsabilidade civil subjetiva. Contudo, para casos de acidente de trânsito, a mesma se enquadra de forma irrefutável, já que, nos dizeres de Maria Helena Diniz (Op. Cit., 2010, p. 42), conceitua com clareza e maestria o conceito de culpa, tanto no seu sentido amplo, como no sentido estrito:
A culpa em sentido amplo, como violação de um dever jurídico, imputável a alguém, em decorrência de fato intencional ou de omissão de diligência ou cautela, compreende: o dolo, que á a violação intencional do dever jurídico, e a culpa em sentido estrito, caracterizada pela imperícia, imprudência ou negligência, sem qualquer deliberação de violar o dever. A imperícia é a falta de habilidade ou inaptidão para praticar certo ato; a negligência é a inobservância de normas que nos ordenam agir com atenção, capacidade, solicitude e discernimento; e a imperícia é precipitação ou o ato de proceder sem cautela.
Não obstante, para o caso de acidentes de trânsito, deve-se analisar a conduta do Estado de forma que, em havendo responsabilização penal, não haja também no âmbito cível, por completo silêncio legal, além do fato de ter o Estado avocado o dever de arcar com as custas em morte, invalidez e lesões corporais em acidentes em geral, criando, para tanto, o INSS e o seguro obrigatório DPVAT.
Assim, é necessário que não se analise a culpa de forma errônea, pois como a singular doutrinadora preceitua, para a caracterização da culpa é necessário que o agente – no caso, o motorista que causou o acidente – tenha violado um dever jurídico, devendo ser responsabilizado nos ditames legais, ou seja, penalmente, já que inexiste qualquer previsão de responsabilidade civil para tais casos (a não ser para vítimas não vinculadas ao INSS. De todo modo, o seguro obrigatório DPVAT não faz qualquer restrição em relação ao segurado, nem mesmo se este é o causador do acidente).
Assim, percebe-se que a pretensão de responsabilizar civilmente o causador de acidentes de trânsito é ilegal, já que não existe qualquer previsão de que possa o Estado assim proceder. De fato, existe apenas o poder-dever de se responsabilizar penalmente o causador do acidente, conforme o caso.
Do Dano
O dano é, de certa forma o cerne a da responsabilidade civil, pois mesmo que o agente tenha praticado uma conduta ilícita, se não se configurar um dano, o mesmo não deverá ser responsabilizado. Além disso, deverá existir como já foi explanado anteriormente um nexo de causalidade entre este dano e a conduta realizada.
Na definição de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (Novo Curso de Direito Civil, v.3. São Paulo: Saraiva. 2005), dano seria “a lesão a bem jurídico tutelado – patrimonial ou não – causado por ação ou omissão do sujeito infrator”.
Deste modo, o dano material é configurado quando traduz lesão aos bens e direitos economicamente apreciáveis; já o dano moral se caracteriza quando o bem juridicamente protegido não pode ser aferido de forma direta em pecúnia.
Para acidentes de trânsito, comumente se cogita haverem danos morais e, a depender do caso, danos morais, quer na modalidade de dano emergente e de lucros cessantes.
Todavia, ainda que hajam danos a serem reparados, esses devem ser reparados para as vítimas do acidente, jamais para o INSS. Nesse sentido é o art. 927 do Código Civil:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Como preleciona o artigo em tela, quem deve buscar ser indenizado é a vítima do acidente. Ademais, o próprio INSS não pode alegar incorrer em erros, vez que, mensalmente, arrecada, de cada contribuinte, um valor a fim de, em havendo tais imprevistos, como morte, invalidez e lesões corporais, esteja o contribuinte amparado.
Ora, se fosse legítimo o pleito do INSS, este estaria arrecadando duplamente: uma vez com os descontos mensais realizados no pagamento do contribuinte acidentado, e outra vez, quando requer que tenha essas despesas reparadas pelo causador do acidente.
Assim, nas relações em que há acidentes de trânsito, não há qualquer vínculo direto entre a conduta do causador do acidente e o INSS, sendo este um elemento essencial para a caracterização da responsabilidade civil.