Matéria de vivo interesse foi ventilada em acórdão do Superior Tribunal de Justiça, em sede de conflito positivo de competência, e cujo pronunciamento adquire amplos e relevantes contornos, diante do papel da Corte superior de unificadora da exegese da legislação federal.
Trata-se de hipótese em que se processava ação de despejo contra sociedade empresária submetida ao regime de recuperação judicial, tendo o juízo do despejo determinado o prosseguimento do feito, intimando-se a empresa para desocupar o imóvel no prazo de quinze dias.
Diante disso, a recuperanda arguiu conflito, sustentando pertencer a competência ao juízo da recuperação, que estaria sendo usurpado. Ao apreciar o tema, o STJ entendeu, logo de início, não estar caracterizado o conflito, estabelecendo a premissa de que as demandas atinentes à locação acham-se fora do âmbito de competência do juízo da recuperação.
Averbou o acórdão, proferido no Conflito de Competência 123.116, disponibilizado no DJe de 03 de novembro de 2014, relatado pelo Ministro Raul Araújo, que “tratando-se de credor titular da posição de proprietário, prevalecem os direitos de propriedade sobre a coisa, sendo inaplicável à hipótese de despejo a exceção prevista no parágrafo 3º, in fine, do art. 49 da Lei 11.101/2005 (.....), pois, no despejo, regido por legislação especial, tem-se a retomada do imóvel locado e não se trata de venda ou mera retirada do estabelecimento do devedor de bem essencial à sua atividade empresarial”.
Procedeu-se, em especial no voto vencedor do Ministro Otávio de Noronha, a ponderação entre a plenitude do direito de propriedade, constitucionalmente assegurado e, de outro, o princípio da preservação da empresa e de sua função social, consagrado no artigo 47 da Lei 11101/2005, considerando-se ter maior envergadura e estar em patamar mais elevado a tutela ao primeiro – direito de propriedade.
Determinou-se, assim, o prosseguimento da ação de despejo fora do juízo da recuperação, estimando-se ser o juízo natural o do despejo. Quanto ao conflito de competência propriamente dito, e segundo se infere do v. acórdão, não houve por parte do juízo da recuperação a prática de ato que demonstrasse a afirmação de sua própria competência, pressuposto para a implementação do conflito. De qualquer forma, a matéria foi julgada, pois o STJ aprecia o conflito de competência “para além de seu objetivo tradicional – definir o juízo competente – qual seja, para afastar o risco de decisões contrárias emitidas por diferentes órgãos jurisdicionais” (AgRg no CC 103.012, DJe 28-04-2014).
Importa realçar que a matéria não se afigura pacificada, pois houve voto vencido, subscrito pela Ministra Nancy Andrighi, a qual destacou que apenas prosseguirá no juízo extraconcursal a ação em que se pleiteia quantia ilíquida, o que não alcançaria demanda cujo objetivo seja a restituição de bem imóvel (coisa certa). Ao final, a Ministra , isolada, entendeu admissível o conflito, conhecendo-o, e declarou a competência do juízo universal da recuperação.
Veja-se que o v. acórdão porta, ainda, no já mencionado voto do Ministro João Otávio de Noronha, menção a outro aresto, também do STJ, proferido no Conflito de competência 103.012/GO, no qual o relator, Ministro Luis Felipe Salomão, ordenou o prosseguimento de ação de despejo de empresa sob recuperação judicial. Examinando-se tal precedente, constata-se que o voto do Min Luis Felipe Salomão fez a ressalva expressa de que, no caso por ele analisado, o processamento da recuperação judicial foi deferido em data posterior ao despejo, “diferentemente do que ocorreu no CC. N. 119.949/SP”.
Assim, vê-se que o Ministro Luis F. Salomão apenas entendeu competente o juízo do despejo no CC 103.012 diante da peculiaridade de haver no mínimo preclusão, pela anterioridade da ordem de evacuação proferida na demanda locatícia. E, ipso facto, vê-se que na essência manteve o entendimento emitido no CC 119.949, no qual havia a cobrança de crédito de aluguéis.
Vale dizer, no referido CC 119.949 tomou-se em consideração a existência de pedido de cobrança de quantia líquida (aluguéis), cumulada com o despejo. Cotejando-se tal veredito com o exarado nos CC 123.116 e 122.440 colhe-se que, num caso, os valores referentes a locativos e consectários sequer foram pleiteados (CC 123.116) e, noutro caso, embora objeto do pedido, “os créditos reconhecidos na sentença de procedência do pedido não estão sendo executados no juízo natural, mas foram habilitados no juízo da recuperação judicial para que lá sejam satisfeitos” (CC 122.440).
Daí se infere que os créditos locatícios – se e quando objeto do pedido – estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, de acordo com a previsão do artigo 49 da Lei 11.101/2005. Todavia, tal particularidade não interfere com o direito, assegurado pela Lei 8245/91, de reaver o imóvel locado. Posto que a temática ostente alguns aspectos polêmicos, em nosso sentir parece-nos corretíssima a decisão exarada no Conflito inicialmente mencionado (123.116/SP), dada a posição preeminente e sobranceira inerente ao direito de propriedade, sufragado na Carta Magna.
Ademais, muito embora o artigo 6º da Lei 11.101/2005 preveja a suspensão de todas as ações e execuções em face do devedor, excepciona em seu parágrafo 1º a ação na qual se demandar “quantia ilíquida”, o que ensejou a taxativa e irretocável asserção do v. acórdão, no sentido de que “a melhor interpretação a ser conferida aos arts. 6º e 9º da Lei 11.101/2005 é de que, em regra, apenas os credores de quantia líquida se submetem ao juízo da recuperação, com exclusão, dentre outros, do titular do direito de propriedade”.
Tal entendimento vem sendo reiteradamente corroborado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, v.g., no Agravo Regimental 2000487-82.2013.8.26.0000, relator Desembargador Samuel Júnior, o qual, cogitando também do cumprimento de ação de despejo proferida contra sociedade em recuperação judicial, aditou o valioso e suficiente argumento de que “ao contrário do que ocorre no procedimento falimentar (artigo 76) silenciou o legislador a respeito da fixação do juízo universal para os casos de recuperação judicial”, o que, sob outro ângulo, também legitima o entendimento da inexistência de vis atractiva no tocante a ações de despejo dirigidas a sociedades em recuperação.
Outrossim, recente aresto, prolatado no agravo de instrumento 2068081-79.2014.8.26.0000, emanado da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, relator Des Ramon Mateo Júnior, deliberou que “a retomada de prédio locado enquadra-se no conceito de demanda ilíquida a que se refere o parágrafo 1º, do artigo 6º, da lei especial”, invocando em seu favor o já mencionado Conflito de Competência 103.012. Colaciona, ainda, o precedente estampado no Recurso Especial 64804, relator Min Vicente Cernicchiaro, segundo o qual “a ação de despejo não é atraída pelo Juízo Universal da Falência. Aqui, reúnem-se passivo e ativo do falido, a fim de os credores receberem o mesmo tratamento. A ação de despejo tem finalidade e conteúdo diversos”.
Aspecto importante a ser observado, ao final, é o de que o entendimento de que a ação de despejo desvincula-se do juízo da recuperação embasa-se no direito de propriedade, segundo o entendimento majoritário.
Ora, é de conhecimento trivial que a qualidade de locador não está necessariamente vinculada à condição de proprietário do imóvel, pois, como leciona Orlando Gomes, “a coisa não precisa ser de propriedade do locador. As duas posições, de proprietário e senhorio, coincidem quase sempre, mas não são necessárias, visto como a locação não implica transferência de domínio” (“Contratos, 26ª ed., pág.336). Bem por isso, “sendo a relação ex locato de caráter pessoal, não importa seja o locador proprietário ou não da coisa locada, à medida que o contrato de locação é título hábil a autorizar a reclamação de alugueres e o despejo” (TJSP – apelação 9125249-90.2009.8.26.0000, relator Des Hugo Crepaldi, DJe 18-02-2013).
Diante disso, explicite-se a ressalva de que, em caso – raro, diga-se – de locador que não seja proprietário do imóvel, a demanda locatícia direcionada a sociedade em recuperação não se beneficiará da orientação que prestigia o direito de propriedade. Todavia, dada a amplitude da fundamentação dos arestos colacionados – a qual supera e transcende a solitária alegação do direito de propriedade – entende-se que subsiste, ainda assim, o foro do despejo como o juízo natural para as causas objetivadas.