Preliminarmente cumpre informar que Regimento Interno é completamente diferente de Regime Disciplinar.
A fim de nortear a questão, é salutar mencionar o “Guia para Elaboração de Regimento Interno”, extraído do anexo da Portaria nº 25 de 24 de Fevereiro de 2012, da Secretaria do Planejamento do Distrito Federal, publicada no DODF nº 40, de 27 de fevereiro de 2012, páginas 11-15, abstrai-se o conceito de Regimento Interno, ipsis litteris:
Regimento Interno é o documento que apresenta um conjunto de normas estabelecidas para regulamentar a organização e o funcionamento do órgão, detalhando os diversos níveis hierárquicos, as respectivas competências das unidades existentes e os seus relacionamentos internos e externos. Define, também, as competências dos titulares de Cargos de Natureza Especial e em Comissão. O Regimento Interno é o complemento dos atos normativos que definiram a estrutura administrativa, deve ser aprovado pelo titular do órgão e ser posto em vigor por ato administrativo.
(O original não ostenta negritos)
O documento de Regimento Interno é, na verdade, um “anexo” de um ato administrativo que o aprova, ou seja, é o anexo de uma portaria.
Superada a questão conceitual, frisa-se que qualquer norma prevista no Regimento Interno que tenha caráter punitivo ou que tipifique conduta ilícita, bem como as que extrapolarem a forma e finalidade de um Regimento Interno, perecerá de requisitos essenciais à sua validade jurídica.
No mérito do caso, a Portaria nº 350/2013 da Secretaria Especial de Portos – SEP, diz que a “Unidade de Segurança” deverá ter um Regimento Interno a fim de normatizar a “unidade administrativa”, detalhando os diversos níveis do poder hierárquico oriundo do direito público (que nada tem a ver com o poder disciplinar), como bem explícito no art. 10 da referida portaria, ipsis litteris:
Art. 10. No prazo de 90 dias após a publicação desta Portaria, a administração do porto organizado deverá elaborar e aprovar o Regimento Interno da unidade administrativa prevista no art. 2º desta Portaria, divulgando-o em seu sítio na internet.
Ou seja, qualquer disposição que vai além da competência normativa descrita na Portaria nº 350/2013-SEP, em consonância também com as diretrizes não tacitamente revogadas da Portaria nº 121/2009-SEP, possui no mínimo, vício de motivação e legalidade.
DA REGULAMENTAÇÃO PELO PODER CONCEDENTE
A atual legislação portuária, "Marco Regulatório Portuário", Lei 10.815/2013, quando afirma, no inciso XV, § 1º do art. 17 (organizar a guarda portuária, em conformidade com a regulamentação expedida pelo poder concedente), que a Guarda Portuária obedece regulamentação expedida pelo Poder Concedente (União), delega à Autoridade Portuária apenas a competência de organizar (por meio de concurso público) a Guarda Portuária, no entanto, diferentemente da Lei 8.630/1993 (Lei de Modernização dos Portos), anterior normativo que também delegava à Autoridade Portuária o poder regulamentar sobre a Guarda Portuária, o novo Marco Regulatório Portuário retirou da competência da Autoridade Portuária a regulamentação, consequentemente, subjugando às Guardas Portuárias às regulamentações originárias da União, que é o Poder Concedente.
Considerando que a regulamentação é oriunda do Poder Concedente (União), a fim de exemplificar, pode-se aplicar de forma subsidiária, os “tipos” previstos na Lei 8.112/90, como os deveres do servidor público (arts. 116 e 117), bem como os previstos no art. 132 por exemplo, são elas: crime contra a administração pública, inassiduidade habitual, improbidade administrativa, incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição, insubordinação grave em serviço, ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem, aplicação irregular de dinheiro público, revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo, lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional, corrupção, a acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas dentre outros, desde que enquadradas na elasticidade do art. 482 da CLT, ou seja, é possível aplicar, via procedimento correicional uma advertência pelo tipo descrito no art. 116, I da Lei 8.112/90 (I - exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo;), por subsidiariedade e obediencia estrita ao que dispõe o art. 17. § 1º, inciso XV, no que tange a "regulamentação pelo Poder Concedente".
Por outro lado, não é possível a livre tipificação de condutas "ilícitas" via documento unilateral elaborado pela Autoridade Portuária (quando estatutário é possível, haja vista a unilateralidade do Regime Jurídico Único), uma vez que estaríamos diante de uma possibilidade da utilização do que seria o "Direito Disciplinar do Inimigo", onde, algumas normas seriam criadas exclusivamente para perseguir trabalhadores da Guarda Portuária, como se verá no tópico subsequente.
DA TIPIFICAÇÃO DE "ILÍCITOS" NOS REGIMENTOS INTERNOS
A tipicidade é oriunda exclusivamente de lei. Por oportuno, transcreve-se a lição do Ministro do Tribunal Superior do Trabalho – TST, Maurício Godinho Delgado, ("Curso de Direito do Trabalho, ed. LTr, 13a ed., 2014, p. 1.257) acerca do assunto, espanca, ipsis litteris:
Requisitos Objetivos É requisito objetivo para o exercício do poder disciplinar no contrato a tipicidade da conduta obreira, inclusive com respeito à natureza da matéria envolvida. Também integra o presente grupo de requisito a gravidade da conduta do trabalhador. No que diz respeito à tipicidade da conduta faltosa, aplica-se, como visto, ao ramo justrabalhista do país o critério penalista da prévia tipificação legal da conduta censurada. Embora, é claro, saibase ser relativamente plástica e imprecisa a tipificação celetista, não se pode enquadrar como infração ato ou omissão que escape efetivamente à previsão contida na lei laboral.
(O original não ostenta negritos)
Se, conforme o ilustre doutrinador, Ministro do TST, aplica-se o critério penalista da tipificação, transcreve-se aqui o princípio da reserva legal contido no Texto Fundamental, em seu art. 5º, inciso XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal – eis, portanto, que todos os “tipos” devem estar previstos em lei, sob pena de infringir o princípio da reserva legal, uma vez que, conforme já dito, cada um tem o direito individual de se adequar apenas à Lei.
As questões disciplinares devem ser apuradas de forma conglobante, o Estado não pode considerar como típica uma conduta que é ao mesmo tempo fomentada ou tolerada pelo próprio Estado. Em outras palavras, o que é permitido, fomentado ou determinado por uma norma não pode estar proibido por outra. O juízo de tipicidade deve ser concretizado de acordo com o sistema normativo considerado em sua globalidade. Se uma norma permite, fomenta ou determina uma conduta não pode estar proibido por outra.
Os tipos penalizadores para os agentes públicos civis em regime celetista, em especial à Guarda Portuária, estão na CLT como todo empregado, e, em razão de ser do serviço público, ainda existem aquelas por equiparação, como por exemplo a conduta tipificada na disposição do art. 19 e parágrafo único da Lei 9.784/1999, norma que rege o Processo Administrativo, classifica como “falta grave” a omissão do dever de comunicar impedimento para atuar em processo, ipsis litteris:
Art. 19. A autoridade ou servidor que incorrer em impedimento deve comunicar o fato à autoridade competente, abstendo-se de atuar.
Parágrafo único. A omissão do dever de comunicar o impedimento constitui falta grave, para efeitos disciplinares.
(O original não ostenta negritos)
Conforme já visto no tópico anterior, há a possibilidade da imputabilidade de condutas ilícitas disciplinares tipificadas nas normas da esfera federal, tendo em vista o entendimento de que a regulamentação pelo poder concedente não se restringe apenas a uma ou duas portarias da Secretaria Especial de Portos - SEP, mas sim, a todo um arcabouço jurídico, finamente perlustrado, visando as garantias processuais e principiológicas não só de direito público mas também do direito trabalhista para os Guardas Portuários regidos pelo regime celetista.
Não há que se falar em impunidade! Nas lições de Cesare Beccaria, principal representante do iluminismo penal, escritor da obra" Dos Delitos e Das Penas ", cada indivíduo sacrifica uma pequena parcela de sua liberdade para viabilizar a sua sobrevivência na sociedade, devendo o soberano depositário das liberdades, em resposta, oferecer segurança e garantir o bem geral. No entanto, surge a necessidade de punir aqueles que desrespeitam as normas do bom convívio, invadindo as liberdades alheias. Assim, são estabelecidas penas para os infratores das leis. Contudo, as penas não podem exceder a porção mínima de liberdade depositada por cada indivíduo:
“(...) A reunião de todas essas pequenas porções de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exercício de poder que deste fundamento se afastar constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo” (Beccaria, 2006, p. 19).
Com isso, a finalidade da pena deve se restringir à preservação do bom cumprimento das leis para que se evitem males maiores – consoante a escola utilitarista –, punindo aquele que não se pautou nas normas legais, desviando-se do contrato social. Qualquer punição que a isso se exceda, de imediato, configurará um abuso.
DA NECESSIDADE DE EXISTÊNCIA DE UMA CORREGEDORIA PRÓPRIA
Em que pese a Portaria 121/2009-SEP tratar a parte disciplinar superficialmente como"comissão disciplinar"(art. 3º, V), em uma análise gerencial, a administração, a fim de executar bem as atividades que lhe são incumbidas, necessita de meios para organizar, controlar e corrigir suas ações. Nasce, portanto, o imperativo de mediais hábeis com o fim de garantir a regularidade e o bom funcionamento do serviço público, com vistas à disciplina e adesão às leis e regras decorrentes do próprio funcionamento da estrutura da administração, o que, no conjunto da obra, é chamado de Direito Administrativo Disciplinar.
Normalmente, as corregedorias são associadas imagens negativas, órgãos invariavelmente voltados para a persecução disciplinar nos vários âmbitos das atividades estatais. Identificar desvios funcionais e viabilizar as consequentes punições administrativas são atividades necessárias, todos reconhecem, mas não se deixa de encarar tais ações correicionais com uma boa dose de “desconforto”.
Assentada a sua importância, como premissa invencível, a atividade correicional, que tem por finalidade precípua velar pelo funcionamento regular da prestação do serviço público por parte dos agentes públicos, como elemento legitimador de todas as suas ações.
As corregedorias lidam com o poder disciplinar da Administração Pública, com o objetivo de regular a relação desta com seu corpo funcional, estabelecendo regras de conduta a título de deveres e proibições, bem como, a previsão da penalidade a ser aplicada.
Para bem resumir a importância de um sistema de controle interno das ações dos agentes integrantes da administração, as corregedorias atuam com o propósito de dar dignidade ao servidor perante a sociedade, pois a sociedade não o vê não como um cidadão comum, mas como o próprio Estado atuando a exemplo da teoria do órgão, amplamente adotada por nossa doutrina e jurisprudência, na qual se presume que a pessoa jurídica manifesta sua vontade por meio dos órgãos, que são partes integrantes da própria estrutura da pessoa jurídica, de tal modo que, quando os agentes que atuam nestes órgãos manifestam sua vontade, considera-se que esta foi manifestada pelo próprio Estado.
Neste diapasão, a necessidade da corregedoria própria é simples, e Cesare Beccaria aclarou muito bem a respeito do princípio da igualdade entre o julgador e o julgado no seguinte trecho, ipsis litteris:
“Lei sabia cujos efeitos são sempre felizes é a que prescreve que cada um seja julgado por seus iguais; porque quando se trata de fortuna e da liberdade de um cidadão, todos os sentimentos inspirados pelas desigualdades devem silenciar!” (Beccaria, 2006, p. 25)
Desta forma, observa-se não somente o princípio da igualdade, como também o silêncio quando há desigualdades entre o julgador e o julgado, firma-se a questão da igualdade a fim de atentar-se para a criação de uma Corregedoria própria haja vista um assistente administrativo que trabalha no ar condicionado e não tem nenhuma experiência com o dia dia do Guarda Portuário estaria em posição de desigualdade para compor uma comissão, pois desconhece na prática como de fato são as situações e as possibilidades ou não de lidar com elas no cotidiano.
O papel do Corregedor é exercer o controle disciplinar e promover a correta administração da atividade correicional, delegando atribuições e instruções e zelando pelo bom funcionamento dos serviços inerentes ao poder disciplinar.
A Corregedoria é uma caixa de ressonância dos abusos, também garantindo a seguridade processual e evitando julgamentos de exceção e garantindo a prestação adequada do serviço público ao verdadeiro detentor do poder, o cidadão.
Outrossim, um órgão que não possui uma Corregedoria estaria" carcomido "por interesses divorciados do se entende por interesse público primário, e, por não possuir o canal de comunicação direta com o cidadão (a Corregedoria), este órgão está fadado ao alijamento social.
DA ILEGALIDADE DAS NORMAS PROCESSUAIS NO REGIMENTO
Assentado no entendimento que o Regimento Interno que trata a Portaria 350/2014-SEP não pode nem tipificar condutas ilícitas disciplinares, tampouco pode retirar garantias legais ou normatizar processo, conforme se verá.
Em análise técnica, percebe-se claramente nos Regimentos Internos já aprovados, a retirada das garantias e o “arrocho” de prazos processuais aplicáveis. Há o entendimento, mais do que lógico, que a Lei do Processo Administrativo, Lei 9.784/1999, é perfeitamente aplicável às empresas públicas que administram os portos organizados, mesmo que sejam empresas públicas estaduais, a seguir, se demonstra um julgado em Tribunal Trabalhista acerca da aplicabilidade da referida norma processual administrativa, senão vejamos, ipsis litteris:
EMPRESA PÚBLICA - PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - SUBMISSÃO À LEI Nº 9.784/1999 - PREJUÍZO AO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA - NULIDADE. A Lei nº 9.784/1999, que trata do processo administrativo no âmbito federal, possui natureza regulamentar de caráter geral, servindo de parâmetro obrigatório para todos os órgãos e entidades da administração direta e indireta. (TRT-7 - RO: 5001720035070010 CE 0000500-1720035070010, Relator: PAULO RÉGIS MACHADO BOTELHO, Data de Julgamento: 19/09/2011, Primeira Turma, Data de Publicação: 26/09/2011 DEJT)
Esta questão de normatização processual, mesmo que disciplinar, é um dos pontos que residem as maiores aberrações jurídicas dos Regimentos Internos, a tentativa de"legislar"sobre norma processual, o que em tese, fere diametralmente a disposição da Carta Magna, em seu art. 22, inciso I, de fácil leitura e entendimento, em que afirma a competência privativa da União para legislar sobre norma processual, senão vejamos, ipsis litteris:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho
(O original não ostenta negritos)
A regra de aplicação da norma processual no direito disciplinar para os Guardas Portuários celetistas, em razão da"regulamentação pelo Poder Concedente"é, em uma visão garantista e à luz do princípio da proteção e da norma mais benéfica (princípios trabalhistas), primeiro a Lei 9.784/99 (Lei do Processo Administrativo), subsidiariamente a Lei 8.112/90, no entanto, ocorre a supremacia da CLT para a aplicação especialmente da"demissão por justa causa", pois o art. 482 da CLT, mesmo sendo bem"elástico", é rol taxativo.
DA IMPOSSIBILIDADE DE APROVAÇÃO UNILATERAL
À luz da abordagem principiológica em que se aporta o direito trabalhista, ainda há que se falar do “princípio da nulidade da alteração contratual prejudicial ao empregado”.
Quando uma norma regimental é aprovada, ela passa a integrar o contrato de trabalho, desta feita, repete-se a impossibilidade de tipificação de ilícitos disciplinares bem como a normatização processual prejudicial, pois haveria, em tese, uma reforma unilateral in pejus ao empregado.
Portanto, é nula, sem qualquer qualidade de gerar efeitos jurídicos, qualquer disposição contratual sem a prévia concordância das partes envolvidas no certame, sendo que a alteração in pejus não gera efeitos de órbita jurídica, pois produz danos diretos e indiretos ao empregado (relação de emprego onde o empregado é hipossuficiente). Assim sendo, qualquer mudança contratual que piore a relação de emprego com escopo de prejudicar o empregado não produz efeitos jurídicos, e ainda é vedada pelo ordenamento jurídico trabalhista conforme se vê no art. 468 da CLT, ipsis litteris:
CLT - Art. 468 - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.
CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, afirma-se que o entendimento ora exposto decorre da aplicação, à espécie, dos princípios abrigados nos arts. 5º, 7º e 37 da Carta Magna, notadamente os relativos à reserva legal, legalidade administrativa, devido processo legal, bem como os princípios do Direito do Trabalho, especialmente ao da proteção, da norma mais benéfica e da impossibilidade de alteração contratual unilateral in pejus, cujo escopo, no caso em tela, é evitar quer o favorecimento, quer a perseguição de empregados públicos da Guarda Portuária.
Outrossim, o gestor cuida da res pública e por isso deve agir com racionalidade e ponderação, desta forma é preciso demonstrar não apenas que a Administração, ao agir, visou ao interesse público, mas também que agiu legal e imparcialmente. A aprovação do ato normativo precisa deixar clara não apenas a sua legalidade extrínseca como a sua validade material intrínseca, sempre à luz do ordenamento legal em vigor. Nas palavras de um ilustre doutrinador, “o dever formal tem de ser compreendido no contexto jurídicoconstitucional em que se desenvolvem as funções da administração” (ANDRADE, José Carlos Vieira de. O dever de fundamentação expressa de actos administrativos. Coimbra: Almedina, 1992, p. 14.).