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Audiência de custódia para inglês ver

21/04/2015 às 15:36

Resumo:


  • O Brasil adotou a audiência de custódia para cumprir a Convenção Americana de Direitos Humanos, que estabelece que todo preso deve ser conduzido a uma autoridade judicial sem demora.

  • No Brasil, o preso em flagrante é interrogado pelo delegado de polícia dentro de 24 horas, enquanto em outros países o Ministério Público preside a investigação, com o juiz decidindo sobre a custódia.

  • A audiência de custódia introduzida pelo TJSP difere do modelo internacional, pois se destina a verificar apenas "circunstâncias objetivas", não abordando os fatos relacionados à prisão do suspeito.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A ideia de audiência de custódia que está sendo iniciada em São Paulo não poderia ter sido introduzida por ato normativo do Judiciário e conduz-nos a um ordenamento mais burocrático e disfuncional.

Neste ano iniciou-se em São Paulo a chamada “audiência de custódia”. Pela explicação do E. TJSP, referida audiência tem por objetivo disciplinar a Convenção Americana de Direitos Humanos.

Mencionado tratado internacional em seu artigo 7º, item 05, preceitua que: “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.

O texto do tratado, portanto, diz que o preso necessita ser encaminhado a quem por lei exerça funções judiciais, sem demora (não fala em audiência, em prazo de 24 horas e, muito menos, em encaminhamento necessário ao juiz, mas sim ao juiz “ou” a quem exerça funções judiciais).

No Brasil, o preso em flagrante é encaminhado ao delegado de polícia para interrogatório no prazo de 24 horas a contar de sua detenção. O delegado de polícia é autoridade autorizada por lei a exercer algumas funções judiciais (além do interrogatório, podemos exemplificar com a previsão legal para a concessão de liberdade provisória). Feito o interrogatório, o auto de prisão em flagrante (contendo o interrogatório e outros elementos de convicção) segue para análise do juiz ainda dentro de referido prazo de 24 horas.

O Brasil talvez seja caso único no mundo em que se tem a figura do delegado de polícia e a investigação é por ele presidida com exercício, em certa medida, de funções judiciais. A regra nos demais países é a investigação criminal presidida pelo Ministério Público, com o controle realizado pelo juiz. Nesse outro modelo a polícia, órgão do Executivo, atua em apoio ao Ministério Público, havendo um juiz para a realização dos atos judiciais na fase de investigação, inclusive o interrogatório do réu preso em flagrante, decidindo se mantém a sua custódia ou se concede a liberdade.

Facilmente se percebe que o interrogatório do preso, em curto espaço de tempo a contar da data de sua prisão, com decisão célere sobre a manutenção do agente em cárcere ou não, é o que preconiza a Convenção Americana de Direitos Humanos. É o interrogatório do preso em flagrante a verdadeira audiência de custódia. Desse modo, o Brasil e tantos outros países há muito tempo já cumprem a Convenção Americana de Direitos Humanos e outros tratados internacionais que dispõem no mesmo sentido. A diferença é que no Brasil nós temos a figura do delegado de polícia a desempenhar funções judiciais na fase de investigação, inclusive o interrogatório, enquanto nos demais países é o juiz que realiza os atos judicias na etapa pré-processual.

O provimento do TJSP que disciplina a chamada “audiência de custódia” diz que o preso deve ser apresentado ao juiz para tratar de "circunstâncias objetivas" (não relacionadas ao mérito). Audiência desse tipo, em que o preso em flagrante é encaminhado ao juiz não para interrogatório, mas para apresentar a ele “circunstâncias objetivas”, não é adotada em ordenamentos jurídicos estrangeiros (que são, inclusive, fontes do nosso sistema processual penal). O que se realiza em muitos países é o interrogatório do preso em flagrante, narrando ele toda a sua versão dos fatos ao juiz, decidindo o magistrado se mantém o suspeito preso ou se concede liberdade (essa seria a verdadeira audiência de custódia). Na audiência de custódia do TJSP, o preso não se reporta aos fatos relacionados a sua prisão, mas somente sobre “circunstâncias objetivas” (se foi agredido no interrogatório, se possui alguma necessidade especial etc.).

Acreditando-se na ideia de que a audiência de custódia no modelo estabelecido pelo TJSP disciplina a Convenção Americana de Direitos Humanos, vamos chegar a conclusão de que apenas nas poucas varas de São Paulo onde ocorre essa audiência de custódia, em que o preso em flagrante é levado ao juiz para tratar de “circunstâncias objetivas”, é que estão sendo observados os direitos dos presos em flagrante, havendo violação a tais direitos no restante do Estado de São Paulo, nos demais estados brasileiros e, provavelmente, em todo o mundo, em que tal modelo de audiência não é adotado.

Vê-se, facilmente, que a audiência introduzida pelo TJSP não é aquela a que se refere a Convenção Americana de Direitos Humanos. Ela, em seu artigo 7°, item 05, não estabelece nenhuma restrição ao que o preso em flagrante pode falar a autoridade competente quando for a ela apresentado. De acordo com o provimento do TJSP, em seu artigo 6º, o magistrado durante a audiência deverá abordar somente as “circunstâncias objetivas” da prisão. Se o juiz realizasse efetivamente o interrogatório do preso (o que seria a verdadeira audiência de custódia, adotada em outros países), qual o sentido do interrogatório policial? Essa “restrição” constante do provimento do TJSP é apenas um meio de adaptar a existência do que o Tribunal chamou de audiência de custódia em um sistema no qual ela não faz sentido, mormente porque o interrogatório do preso em flagrante já é feito pela autoridade policial em 24 horas.

Assim, o que temos é o seguinte. Nos demais países, como regra, o Ministério Público preside a investigação e a polícia (sem figura equivalente a do delegado de polícia) atua como órgão de apoio, havendo um magistrado a realizar os atos judiciais da etapa investigativa, inclusive o interrogatório do preso em flagrante (é o juiz, inclusive, o fiscal do Ministério Público na etapa pré-processual). Já no Brasil, temos a investigação presidida pelo delegado de polícia que realiza, em certa medida, algumas funções judiciais, ficando outras ao exercício de um juiz. Agora, dentro do já particular modelo brasileiro de investigação, criou-se um ato que não nos põe em linha ao que se tem, como regra, no restante do mundo, e que, ao reverso, coloca sob desconfiança o nosso próprio sistema.

Se aceito este modelo apresentado pelo TJSP, passaremos a ter um interrogatório feito pela autoridade policial ao preso em flagrante dentro de 24 horas e, na sequência, mas ainda dentro de referido lapso temporal, audiência com o juiz para ele verificar as “circunstâncias objetivas” da prisão.

Resta evidente que a ideia não foi a de criar uma audiência em que a autoridade competente ouve o preso em flagrante sobre os fatos dos quais ele é suspeito de ter praticado, pois esse ato, que é interrogatório do preso, já existe no Brasil e no estrangeiro (com a diferença de que no Brasil ele é realizado por delegado de polícia e nos outros países por um juiz). Tencionou-se, em verdade, criar mero ato de fiscalização da atividade do delegado de polícia.

Essa é a questão. Ou se altera o sistema e cria-se, por exemplo, a figura do juiz de instrução, com um magistrado realizando os atos judiciais da investigação, inclusive interrogatório do réu preso em flagrante (o que seria a verdadeira audiência de custódia), ou se aceita o sistema que se tem no Brasil. É claro que promover referida alteração seria um passo maior e demandaria uma reestruturação em vários níveis, mas seria uma opção “inteira” (e não mero “remendo”).

O que não podemos é termos um sistema e desconfiarmos dele. Optando-se pela manutenção do modelo brasileiro de investigação, deve-se confiar nas funções exercidas pelos delegados de polícia, com o Estado proporcionando as melhores condições de trabalho. Todavia, tem-se visto o oposto, ou seja, a manutenção do nosso modelo com “remendos” que desprestigiam (para dizer o mínimo) e lançam suspeição generalizada à função dos delegados de polícia. Não é reconhecendo a carreira de delegado de polícia como jurídica que se vai melhorar o trabalho da polícia, pois nos outros países sequer há carreira jurídica nos quadros da polícia. O que vai fazer a diferença é a confiança e o respeito pelas funções legalmente atribuídas aos delegados de polícia, munindo-os com os meios de trabalho adequados.

Ora, se há alguma “desconfiança” ao modo como o interrogatório é realizado pelo delegado de polícia, que se aprimore o interrogatório que nós temos (que já é a audiência de custódia), instituindo, por exemplo, a presença obrigatória de defensor e gravação por áudio e vídeo, inclusive para consulta do magistrado quando da análise do auto de prisão em flagrante, sem prejuízo de realização de exame de corpo de delito após o interrogatório.

O que não faz sentido, num Estado como o nosso, carente de todo o tipo de recurso, é encaminhar o preso da delegacia de polícia ao fórum (com destacamento de viaturas e policiais) para que o magistrado, em última análise, faça “meia dúzia” de perguntas laterais ao fato com o fim de realizar controle externo da atividade policial tendo por pressuposto a falsa ideia de que é rotina a tortura e a violação de direitos em nossas repartições policiais. Essa ideia de desconfiança ao trabalho dos delegados de polícia não se justifica (não se apresentou qualquer dado objetivo para embasá-la).

A verdadeira análise que se deve fazer é a seguinte: qual sistema de investigação é mais produtivo, apresenta melhores resultados? Este, adotado pelo Brasil, em que há um procedimento bastante formal como o inquérito policial, em que a investigação é presidida por delegado de polícia etc., ou o que se tem em regra nos demais países? Que se opte por um ou por outro, mas que se faça com convicção.

A ideia de audiência de custódia do TJSP como ato de fiscalização policial é, em si, vazia, não só porque, para tal finalidade, há meios igualmente eficientes e menos custosos do que o encaminhamento do preso ao fórum, mas também porque não constatada nenhuma violência ao preso na presença do juiz, como saber, por exemplo, se o agente, imediatamente ao fim da audiência, ao ser conduzido à prisão, não foi vítima de violência policial? Por esse raciocínio, ao criar uma audiência de custódia para fiscalizar a atividade policial e não para a finalidade que ela deveria ter, teríamos de fazer uma audiência de custódia ao dia para saber se o preso não está sendo violado em seus direitos.

Em síntese, o modelo do TJSP de audiência de custódia não faz sentido por isso, porque a verdadeira audiência de custódia é o interrogatório do preso em flagrante e não esse ato esvaziado que se está a criar. Não tenho notícia de nenhum outro país que adote essa audiência de custódia do TJSP em que o preso em flagrante é encaminhado ao juiz para tratar somente de “circunstâncias objetivas”.

Trata-se de mais um procedimento brasileiro para tentar adaptar um modelo de investigação que, igualmente, só existe aqui e aparentemente, para o Executivo paulista e, sobretudo, para o Judiciário de São Paulo, não é bem aceito. Aliás, a inovação é tão inédita que no Brasil, se for seguido o exemplo de São Paulo, a autoridade policial poderá ouvir o preso sobre todos os fatos, mas o magistrado, que vai decidir sobre a manutenção da custódia cautelar, só poderá ouvi-lo sobre “circunstâncias objetivas” e não sobre os fatos em si.

Em defesa da audiência de custódia do TJSP, tem-se apresentado resultados a ela atribuídos, dando-se a ideia de que, em razão deste novo ato procedimental, há mais presos sendo postos em liberdade. Os números apresentados rigorosamente não representam isso. Para que se pudesse chegar a essa conclusão, ter-se-ia de explicitar o que em audiência de custódia se verificou que já não estava no auto de prisão em flagrante e que ensejou a soltura do agente. Outrossim, além disso, seria preciso comparar os números de soltura das varas com audiência de custódia com as varas que não a possuem, dentre outras análises cabíveis.

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Podemos concluir, portanto, que fora criado um novo ato que não nos leva a outro modelo e coloca sob suspeita o atual, em que o próprio Estado coloca em causa o interrogatório feito pelo delegado de polícia e, consequentemente, a própria atuação da autoridade policial em si. Ora, se não se confia no interrogatório realizado pela autoridade policial, então outros atos por ela realizados, especialmente os de natureza judicial, também estarão sob suspeita. Desse modo, se deve ser realizada a audiência de custódia para verificar se o preso teve algum direito violado em seu interrogatório, seguindo o mesmo raciocínio, a liberdade provisória concedida pelo delegado de polícia antes de ser efetivada deveria ser submetida à análise do juiz, pois pode ter havido algum tipo de “suborno” para a concessão da benesse.

Analisando a questão de um modo mais amplo, percebe-se, facilmente, que a audiência de custódia do TJSP é mero ato de controle da atividade policial. Tem-se, pois, uma audiência de custódia para “inglês ver”, servindo apenas para que alguns se sintam a vontade para dizer que em São Paulo, a exemplo do que ocorre em outros países, o juiz também “ouve” o réu preso, quando isso não é verdade. Nos outros países o magistrado realiza o interrogatório do preso em flagrante, ouvindo-o sobre todos os fatos contra ele imputados, decidindo se o agente continua em cárcere ou não. Aqui, por sua vez, o juiz ouvirá o preso apenas sobre “circunstâncias objetivas” de sua detenção.

Se houvesse intenção de introduzir no País a “verdadeira” audiência de custódia, em que o juiz ouve o preso em flagrante sobre “tudo”, realizando seu interrogatório, teríamos dois interrogatórios em menos de 24 horas (um feito pelo delegado de polícia e outro pelo magistrado). A duplicidade de atos ficaria evidente e, nesse cenário, provavelmente, eliminar-se-ia o interrogatório conduzido pelo delegado de polícia. De tal modo, para evitar alterar nosso sistema pré-processual, optou-se por estabelecer que o juiz fará apenas perguntas sobre questões objetivas, não relacionadas ao mérito.

Escolheu-se, assim, um “jeito” de se tentar aproximar o Brasil ao que é adotado em outros países, mas que em verdade não o faz e, pior, cria-se uma desconfiança sobre a atuação do delegado de polícia. Dito de outro modo, esse modelo de audiência de custódia é algo estranho aos olhos do direito comparado (em que não é adotado) e também internamente (já que se tem, no Brasil, o interrogatório feito pelo delegado de polícia, que não só é integrante de carreira jurídica como realiza, em certa medida, atos judiciais).

Enfim, acredito que ninguém, efetivamente, seja contra uma audiência de custódia judicial (interrogatório do preso em flagrante feito pelo magistrado), mas se esta for a opção, então que seja implementada a “verdadeira” audiência de custódia e que ela seja introduzida no ordenamento de forma correta, com todas as modificações na etapa pré-processual que nos coloque, concretamente, em sintonia com o que se tem no restante do mundo, ao invés de adotar-se modificação tópica e isolada que particulariza ainda mais nosso ordenamento processual penal.

Apesar de tudo, ainda que se queira, de fato, manter o nosso modelo de investigação criando um “remendo” com este modelo paulista de audiência de custódia, a forma correta, evidentemente, não é por portaria do Poder Judiciário. Trata-se de matéria processual penal que necessariamente precisa ser objeto de lei federal (art. 22, CF). O palco correto para a análise de tudo isso que se analisa aqui é o Congresso Nacional, em consulta à sociedade sempre que possível. As opções aqui analisadas cabem ao Legislativo (federal) e não ao Judiciário ou ao Executivo (em âmbito federal ou estadual). Aliás, ainda que a matéria em apreço não fosse constitucionalmente reservada à lei federal, um ato normativo emanado do Judiciário não pode, por si só, criar obrigações de modo a vincular outros órgãos e instituições, como a Polícia Civil e o Ministério Público.

Em suma, a ideia de audiência de custódia que está sendo iniciada em São Paulo, em sua forma, não poderia ter sido introduzida por ato normativo do Judiciário e, na sua substância, conforme visto, conduz-nos a um ordenamento mais burocrático e disfuncional. Se há um modelo que não é aceito deve-se alterá-lo e não o remendar de modo a torná-lo ainda mais questionável.

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Sobre o autor
Diego Dutra Goulart

Promotor de Justiça do MPE-SP e bacharel em Direito pela PUC-SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOULART, Diego Dutra. Audiência de custódia para inglês ver. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4311, 21 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38322. Acesso em: 22 dez. 2024.

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