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As pedaladas fiscais, a cegueira deliberada e o nexo causal

24/08/2015 às 11:11
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O artigo traz à discussão recente exposição do Ministério Público que atua perante o TCU no que concerne à questão das chamadas pedaladas fiscais.

De acordo com os cálculos encontrados, as chamadas “pedaladas fiscais” chegaram a quarenta bilhões. Isso era um dos instrumentos, ou melhor, ferramentas, que o governo federal usava para maquiar as contas públicas.

O relatório do Procurador do Ministério Público que ali funciona, apresentado no Tribunal de Contas da União,  recomendou aos ministros do órgão que reprovem as contas de 2014 da presidente Dilma Rousseff, classificando-as de “verdadeira política de irresponsabilidade fiscal, marcada pela deformação de regras para favorecer os interesses da Chefe do Poder Executivo em ano eleitoral e não os interesses da coletividade no equilíbrio das contas".

A ligação direta entre as contas irregulares do governo federal em 2014 e as eleições presidenciais é o fator político que pode reforçar o pedido de impeachment contra a presidente Dilma. O nexo de causalidade está na programação financeira e no contingenciamento, previstos nos artigos 8º e 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal, pois tratam de competência privativa da Presidente da República, isto é, não podem ser atribuídos a decisões de ministros ou assessores.

A matéria, data venia, exige reflexões, razão pela qual é necessário colher conceitos importantes e exemplos já advindos da teoria e da prática penal para solução dos inúmeros problemas trazidos no dia a dia.

O crime é fato típico e antijurídico. Para que se possa dizer que o fato concreto tem tipicidade, é necessário que ele se contenha perfeitamente na descrição legal, e que haja perfeita adequação do fato concreto ao tipo penal. Deve-se dizer, para tanto, que são elementos do fato típico: a conduta, o resultado, a relação de causalidade, a tipicidade. Não há crime, pois, sem conduta, que constitui elemento estrutural do aspecto objetivo do crime.

Por sua vez, o evento seria parte do todo representado pelo resultado. Seria o evento a parcela do resultado que suscita interesse como explicitam Paulo José da Costa Jr. (Comentários ao Código Penal, volume I, pág. 53) e, ainda, Everardo da Cunha Luna (O resultado no direito penal, 1959, pág. 16), para quem, diante do direito positivo, que emprega indistintamente ambas as expressões, a distinção seria inócua.

Tem-se o evento como efeito natural da conduta relevante para o direito penal.

Tanto o evento poderá ser produzido imediatamente após a conduta como ex intervallo.

Há crimes com evento e sem evento; materiais e formais.

Há crimes privados de evento (naturalístico) e crimes dotados de evento (naturalístico).

Há crimes de mera conduta, que são aqueles nos quais, para integrar o elemento objetivo do crime, basta o comportamento do agente, independente dos efeitos que venha a produzir no mundo exterior. Assim, prescindem de qualquer resultado naturalístico.

Crimes com evento (material) são aqueles em que o legislador distingue, na sua configuração objetiva, além da conduta, um resultado dela dependente. Sendo assim, é insuficiente a atividade ou inatividade (omissão) do agente. Assim, faz parte  do facti species legal um evento (naturalístico), que integra o tipo como elemento necessário e indispensável.

Nos crimes formais, a intenção do agente é a realização de um evento, cuja consumação a norma retroage para um momento anterior, dispensando a sua concretização. Considera-se que a mera conduta poderá estar potencialmente capacitada a gerar, no mundo fenomênico, uma transformação.

Há quem identifique os crimes formais com os de perigo e os materiais com os de dano, como se vê na doutrina italiana com Battaglini e Rocco e, no Brasil, com Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, volume I, Título II, pág. 40).

Chegamos à relação material da causalidade e da noção de causa e do nexo causal.

Diversas teorias se propuseram a resolvê-lo.

Vamos elencá-las:

I - Da c.s.q.n (condição simples ou equivalência): Tal doutrina foi elaborada por Von Buri, que denominou-a doutrina da conditio sine qua non, da equivalência ou da condição simples, na linha de John Stuart Mill (Sistema da Lógica). O problema que se tem atribuído a tal teoria é no sentido de que se considera arbitrária qualquer distinção entre causa e condição. Ora, causa é o todo e a condição, parte.

Sua fórmula proposta seria:

a) a conduta é causa do evento somente se, sem ela, o evento não se teria verificado;

b) um comportamento não é causal quando, sem ele, o evento se teria igualmente verificado.

II – Da condição qualificada:

1)  causalidade adequada:

a)  condição perigosa (segundo Grispigni, a análise da relevância causal da condição deve ser feita com referência ao contexto, no qual se efetua a ação, tendo-se em conta as circunstâncias preexistentes, concomitantes e previsivelmente subsequentes, num juízo de prognose póstuma e segundo o conhecimento tanto do homem médio como do agente. Sendo assim,  a ação será condição qualificada, se, tendo em vista o conjunto das circunstâncias, é relativamente idônea a produzir o resultado, de acordo com a experiência, constituindo-se em uma possibilidade de certa relevância para causar o resultado, sendo condição perigosa, pois constitui um perigo para a formação do resultado;

b)  causa humana exclusiva (Antolisei): a causalidade deve ser encarada sob o ângulo da consciência humana, através do qual o homem apreende e prevê as circunstâncias, que interferem no encadeamento causal. Assim havendo circunstâncias excepcionais, cuja força causal não é possível ser apreendida ou calculada, a causalidade não deve ser atribuída ao homem;

c)  causalidade jurídica;

d)  tipicidade condicionada;

e) causalidade humana representável;

f)  causalidade racional: sua construção deve-se a Soler, que disse que o nexo de causalidade deve ser deduzido mediante um juízo de razoabilidade da ocorrência do resultado. Assim, a condição é a causa do resultado quando devia razoavelmente produzi-lo, de modo que sua força causal é inteligível pelo homem, a ser feito o juízo com vistas às circunstâncias concretas em que a ação se realizou e segundo o cálculo feito e exigível do agente, cabendo analisar, também, a ocorrência de fatos excepcionais, devendo-se atender ao exame real das consequências prováveis, captáveis pelo agente.

Outras teorias podem ser apontadas levando em conta, seja um critério cronológico (condição próxima), ou de eficiência (quantitativo ou qualitativo). 

Tal seria a teoria da causalidade adequada.

A tese parte das ideias de Von Bar e Von Kries.

 A causa é o antecedente não apenas imprescindível, mas também o mais adequado para a produção do resultado. Somente podem ser utilizados os antecedentes úteis, o mais adequado para a produção do resultado, ou seja, com mais probabilidade de produzirem o resultado, segundo uma valoração posterior.

É um critério corretivo da teoria da equivalência das condições independentes do subjetivismo.

Lembra-se que pelas ideias de Von Buri qualquer das condições que compõem a totalidade dos antecedentes é causa do resultado, pois a sua inocorrência impediria a realização do evento.

Sem dúvida, ela pode trazer muitas injustiças.

Vejamos um exemplo: A fere levemente B, que deve ser atendido em um Pronto-Socorro, onde ocorre um incêndio, onde B vem a falecer. Ora, pela teoria da causalidade adequada, a lesão produzida em B é causa de sua morte, pois, com a eliminação hipotética do ferimento, B não teria sido atendido no Pronto-Socorro onde ocorreu o incêndio.

Fácil entender que essa regressão ad infinitum traz injustiças na solução de problemas no âmbito penal.

Assim o legislador não pode adotar a teoria da equivalência de condições em todas as suas consequências.

De outro modo, há censuras à teoria da causalidade adequada, no sentido de que se assenta em uma abstração, numa prognose póstuma da norma de eficácia causal apreensível ao homem médio e não à verificação das forças que atuaram no fato concreto e de sua percepção pelo agente.

É certo que Soler (Derecho Penal argentino, tomo I, pág. 302), em teoria que foi denominada Repercussões introduzidas pelo Indulto natalino de 2013: incidentes sobre a pena de multa e causalidade racional, procurou uma solução para o problema vendo o nexo de causalidade como deduzido mediante um juízo de razoabilidade da ocorrência do resultado. Faz-se um exame real das consequências prováveis captadas pelo agente, vez que o juízo de razoabilidade deve ser feito com vistas às circunstâncias em que a ação se realizou, e, segundo o cálculo feito e exigível do agente, cabendo analisar, inclusive, a existência de fatos excepcionais, mas estabelecendo uma conexão entre os aspectos causal e psicológico, o que, para alguns, é censurável. Suas ilações continuam atuais.

Para Paulo José da Costa (Do nexo causal, 1964, pág. 118) adota-se a teoria da condicionalidade adequada, isso porque a condição, para ser considerada como causa do evento, deve ser concretamente realizada como idônea a sua consecução, através de uma valoração póstuma.

No entendimento de Miguel Reale Júnior (Parte Geral do Código Penal, Nova Interpretação, São Paulo, RT, 1988, pág. 28), adota o Código Penal a teoria da equivalência de condições, minimizado o âmbito da relevância causal pelo disposto no parágrafo primeiro do artigo 13, que introduziu alteração essencial não apenas em atendimento ao que a doutrina e a jurisprudência vinham consagrando, mas como consequência da construção típica da causalidade, da causalidade relevante ao Direito Penal, segundo perfil normativamente desenhado.

A condição, antecedente necessário, reconhece-se apenas como a causa, se possui, em abstrato, idoneidade à realização do evento, qualificação que seria escolhida mediante um juízo ex ante.

Afirma-se que a verificação desta idoneidade causal da ação deve ser feita posteriormente, porém através de um juízo ex ante com base no conhecimento das leis da causalidade natural e de acordo com as circunstâncias concretas da situação em que ocorreu a ação, e segundo o conhecimento que delas possuía o agente.

Sendo assim, o juízo de adequação causal realiza-se mediante um retorno à situação em que se deu a ação, a partir da qual se examinam em abstrato a probabilidade e a idoneidade da ação, segundo as leis da causalidade. Fácil é entender que Von Kries, um fisiológico, foi um dos fundamentadores dessa teoria.

A complexidade do problema das causas e condições se dá quando ocorre uma nova condição, que por sua preponderância sobre as condições anteriores, às quais está ligada de modo relativo, a nova condição absorve o processo da causalidade no qual interfere. Assim, se a ação subsequente, mesmo que relativamente relacionada com as condições anteriores, por si só, apresenta-se como causadora do evento, este apenas a ela é atribuído com a ressalva de que os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou. Essa a conclusão que tem Miguel Reale Júnior, no estudo do nexo causal.

Para o artigo 14 do Anteprojeto do Código Penal, a realização do fato criminoso exige ação ou omissão dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou efetiva, a determinado bem jurídico. O resultado exigido somente é imputável a quem lhe der causa e se decorrer da criação ou incremento de risco tipicamente relevante, dentro do alcance do tipo. Teria sido adotada a teoria da imputação objetiva, que significa atribuir a alguém a responsabilidade penal, no âmbito do fato típico, sem levar em conta o dolo do agente, já que o dolo é requisito subjetivo que deve ser analisado dentro da ação típica e ilícita, dentro do que chamamos teoria finalista, onde o dolo passa a ser elemento subjetivo do tipo. Assim, o agente somente responde penalmente se ele criou um risco proibido relevante, pois não há imputação objetiva quando o risco criado é permitido ou tolerado. Da mesma forma, não há imputação objetiva quando o risco criado é insignificante. 

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O artigo 15 do Anteprojeto do Código Penal define causa a conduta sem a qual o resultado não teria ocorrido. Poder-se-ia dizer que o Anteprojeto prevê a teoria da conditio sine qua non, com todos os seus problemas a serem resolvidos.

Por sua vez, o artigo 16 prescreve que a superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado: os fatos anteriores imputam-se a quem os praticou. É a superveniência da causa relativamente independente.

O relato das teorias apresentadas demonstra que, seja como for, há nexo causal a envolver a Presidência da República em crime de responsabilidade.

Os Decretos de abertura de crédito, assinados pela Presidente, estão em flagrante afronta à lei orçamentária, afirma o Procurador. O artigo 15 da LRF diz tratar-se de despesa não autorizada, irregular e lesiva ao patrimônio público, criando as condições para a tipificação do crime no artigo 359 do Código Penal. No Artigo 10, alínea 4, da Lei de Responsabilidade Fiscal está dito: São crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária: 4 – Infringir , patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária. No Artigo 11, alínea 3, explicita-se: São crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos: 3 – Contrair empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal.

É importante ressaltar, argumentam consultores do TCU, que as 'pedaladas' foram, na verdade, instrumento para fraudar a programação financeira e o cronograma mensal de desembolso. Ao omitir pedidos de créditos suplementares, cujas despesas se confirmaram em 2014, repetindo o padrão de 2013, ficaria clara a intenção de não incluir tais créditos de despesas obrigatórias na programação financeira para parecer, artificiosamente, haver fôlego financeiro e fiscal para realizar mais despesas discricionárias, que são aquelas que os governos gostam de realizar em ano eleitoral, como os investimentos, pois isso dá voto.

O Executivo, com essa conduta, flertou com a improbidade (artigos 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa), por violação ao disposto no artigo 36 da Lei Complementar 101/00, devendo ainda ser apurada a responsabilidade penal, no que concerne a incidência do artigo 359–A do Código Penal. É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo. Pode-se, ainda, falar na incidência do artigo 359–D do Código Penal.

Há, também, o crime de responsabilidade, nos termos do artigo 11 da Lei 1.079, de 14 de abril de 1950, que envolve a fiel guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos e o fato de contrair empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal.

O fato deve ser objeto de investigação pelo Ministério Público Federal para análise da materialidade e autoria delituosa em todas as suas circunstâncias. Com a investigação feita deverá se concluir se houve ou não conduta criminosa, e suas consequências no Direito Penal.

As condutas referenciadas exigem, na prática da conduta, o dolo.

Não há dúvida alguma com relação à aplicação do dolo direto. Somente se realiza o tipo penal através do resultado.

No entanto, surgem dúvidas com relação ao chamado dolo eventual.

No dolo direto ou determinado, o agente prevê o resultado (consciência) e quer o resultado (vontade). No dolo eventual, o agente prevê o resultado (consciência), não quer, mas assume o risco (vontade). O dolo eventual, espécie de dolo indireto ou indeterminado (dolo alternativo ou dolo eventual), distingue-se da culpa consciente, quando o agente não prevê o resultado (que era previsível) e não quer, não assume risco, e pensa poder evitar.

Reportagem do jornal “Valor Econômico” revelou a existência de nota técnica assinada pelo ex-secretário do Tesouro, Arno Augustin, em 30 de dezembro de 2014, em que o então secretário diz ser dele a responsabilidade por fazer a liberação e a transferência de recursos pelo tesouro.

Na nota técnica referenciada, redigida pela Coordenadoria Geral de Programação Financeira (Cofin) e pela Subsecretaria de Política Fiscal (Supof), Arno reitera que “cumpre à Supof e à Cofin procederem na operacionalização da liberação/transferência desses recursos, posteriormente à autorização de liberação pelo secretário do Tesouro Nacional”.

A discussão surge dentro do que se intitulou de “pedaladas fiscais”, forma de maquilagem identificada na execução da programação financeira do Executivo.

Parece, para alguns intérpretes, que tudo teria se passado de forma centralizada pela pessoa do ex-secretário do Tesouro, que deteria o domínio do fato.

Estaria a Presidente da República sem saber do fato e alheia ao que aconteceu a seu redor com relação a todas as suas circunstâncias?

Fala-se em “cegueira deliberada”, que “seria uma espécie de dolo eventual, onde o agente sabe possível a prática de ilícitos no âmbito em que atua e cria mecanismos que o impedem de aperfeiçoar a sua representação dos fato”. A doutrina lançou o exemplo do doleiro que suspeita que alguns de seus clientes possam lhe entregar dinheiro sujo para operações de câmbio e, por isso, toma medidas para não ter ciência de qualquer informação mais precisa sobre os usuários de seus serviços ou sobre a procedência do objeto de câmbio.

Assim é possível equiparar a cegueira deliberada ao dolo eventual, desde que presentes alguns requisitos. Dessa forma é essencial que o agente crie consciente e voluntariamente barreiras ao conhecimento com a intenção de deixar de tomar contato com a atividade ilícita, se ela vier a ocorrer. Se ele incorrer em desídia ou negligência, na formação dessas barreiras, não haverá dolo eventual, podendo haver culpa consciente.

Alerte-se que a programação financeira e o contingenciamento são matérias de competência do Presidente da República e a conduta dolosa que desrespeita os seus preceitos o sujeita a crime de responsabilidade. O crime é próprio, de modo que só pode ser cometido por determinada pessoa, tendo em vista que o tipo penal exige certa característica do sujeito ativo.  

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. As pedaladas fiscais, a cegueira deliberada e o nexo causal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4436, 24 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41800. Acesso em: 21 nov. 2024.

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