Sumário:1. A problemática da Jurisdição Constitucional Estadual no Brasil 1.1. Produção Federativa do Direito Constitucional: Direito Constitucional Federal e Direito Constitucional Estadual 2. Jurisdição Constitucional no âmbito do Federalismo 3. Jurisdição Constitucional e Estado Democrático de Direito 4. Controle de Constitucionalidade Estadual no Brasil: 4.1. Definição e Evolução 4.2. Instrumentos Processuais Judiciais 5. Poder Constituinte do Estado-Membro e Constituição Estadual: 5.1. Poderes de Elaboração e de Proteção da Constituição Estadual 6. Poder Judiciário Estadual e Competências Próprias à Jurisdição Constitucional
01. A problemática da jurisdição constitucional estadual no Brasil
No Brasil, somente após a Constituição de 1988 é que a jurisdição constitucional estadual ganhou maior significação prática, teórica e normativa, especialmente diante do artigo 125, § 2°, da Constituição da República, que atribuiu aos Estados-membros a competência para instituírem “representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual...”.
Antes de 1988 a doutrina pátria já entendia[1], que mesmo sem autorização expressa no texto central, os Estados, através do exercício do Poder Constituinte Decorrente, poderiam elaborar suas constituições e instituir sistema de defesa próprio (“controle de constitucionalidade estadual”, “processo constitucional estadual”, “jurisdição constitucional estadual”, “instrumentos processuais constitucionais estaduais”, “direito processual constitucional estadual”[2]). Agora, com prescrição expressa no texto central, com uma grande tradição doutrinária e jurisprudencial catalizadora e caudatária dos avanços constitucionais registrados na Lei Fundamental de 1988, se entreabrem novos problemas, novas questões, que exigem respostas da doutrina e da jurisprudência constitucionais pátria.
Apenas a título de exemplo, sem pretensão de enfrentá-las neste delimitado trabalho, apresentamos algumas questões pertinentes à problemática da jurisdição constitucional estadual no Brasil:
a) quais as dimensões e o papel reservados à jurisdição estadual no controle de constitucionalidade, segundo a ordem jurídica brasileira?
b) o Supremo Tribunal Federal, os Tribunais de Justiça, os legisladores estaduais, a doutrina constitucional nacional têm explorado, adequadamente, os limites e as possibilidades que o controle estadual de constitucionalidade suscita diante do Federalismo e do Estado Democrático de Direito?
c) o controle de constitucionalidade estadual pode constituir-se em elemento de otimização da tutela dos direitos fundamentais e do princípio da separação de poderes, nos quadrantes do Direito Processo Constitucional brasileiro[3]?
d) qual seria a contribuição do Direito Constitucional Comparado à problemática do controle de constitucionalidade no Brasil, tendo em conta a diversidade das constituições e atos normativos estaduais que regulam a jurisdição constitucional estadual em cada unidade da federação brasileira?
e) o controle de constitucionalidade estadual é mais um elemento a sublinhar a complexidade do controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos no Brasil, destacando nossa experiência diante das experiências estrangeiras?
f) é possível a adoção ampla, no plano estadual, das ações de controle estatuídas na Constituição da República?
g) é possível ao sistema constitucional estadual adotar outros instrumentos de controle de constitucionalidade (tanto políticos quanto jurisdicionais), diversos dos estatuídos na Constituição Federal?
h) é possível a edição de lei estadual para regular o rito das ações constitucionais estaduais ou seria legítimo a regulação desses ritos por atos regimentais dos tribunais de justiça?
i) quais os limites da argüição incidental de inconstitucionalidade (tendo por parâmetro norma da Constitucional federal, e por objeto norma da Constituição estadual) e do uso do recurso extraordinário no âmbito das ações de controle de constitucionalidade estadual?
j) prestigia o sistema constitucional nacional o fato de as constituições estaduais preverem legitimados que só poderão desencadear ações que tenham como objeto lei municipal contestada em face da Constituição Estadual?
l) as chamadas normas de reprodução facultativa e normas de reprodução obrigatória (liberdade de conformação do poder constituinte decorrente local), suscitam problemas e soluções peculiares à jurisdição constitucional estadual?
m) frente à necessidade de se proteger a supremacia das Leis Orgânicas Municipais diante de leis municipais ordinárias (jurisdição constitucional municipal), quais os limites auto-normativos e auto-organizatórios dos Estados-Membros ao estatuírem suas jurisdições constitucionais?
n) é legítimo às Constituições estaduais preverem normas similares a adotada no artigo 52, X, da CF, e, além disso, estenderem a sua vinculação ao controle de constitucionalidade concentrado?
o) o mandado de injunção pode ser intentado com fundamento em normas da Lei Orgânica Municipal e da Constituição estadual?
p) até que ponto a jurisprudência dos Tribunais de Justiça brasileiros tem reproduzido ou tem contribuído para inovar a jurisprudência do STF, em matéria de jurisdição constitucional estadual (jurisprudência constitucional comparada estadual) e até onde se legitima o caráter conformador da jurisprudência do STF à jurisprudência dos TJ´s estaduais (princípio da simetria jurisprudencial e jurisprudência constitucional estabelecida)?
q) na jurisdição constitucional estadual é possível a cognição de inconstitucionalidades que não poderão ser apreciadas pelo STF em competência originária ou recursal?
r) quem são os guardas precípuos da Constituição Estadual e da Lei Orgânica Municipal?
s) o artigo 97 da CF constitui princípio constitucional estabelecido? quando a norma parâmetro for regra ou princípio da Constituição estadual devem os TJ´s cumpri-lo, tanto nos juízos concentrados ou difusos de constitucionalidade? E quando a norma parâmetro for norma da Lei Orgânica Municipal, no incidente de argüição de inconstitucionalidade no TJ?
t) é possível uma ação popular constitucional no plano estadual?
u) qual a relação entre a disciplina dos efeitos das decisões proferidas em jurisdição constitucional estadual e a liberdade de conformação do legislador constituinte decorrente ou ordinário estadual?
v) quais os instrumentos processuais de impugnação para combater liminar concedida em adin estadual? A instância revisora é ou deve ser o STF?
x) qualquer norma de uma constituição estadual pode servir como parâmetro no controle de constitucionalidade de leis municipais?
z) o princípio da interpretação conforme à Constituição, no âmbito do controle concentrado estadual, pode ter a mesma aplicação que lhe é dada no âmbito do controle concentrado federal?
Essa problemática, delineada não exaustivamente, merece atenção da doutrina e da jurisprudência nacionais.
01.1. Produção Federativa do Direito Constitucional:
Direito Constitucional Federal e Direito Constitucional Estadual
Na Federação o Direito Constitucional é produzido em diferentes dimensões: o federal e o estadual. Numa Federação como a brasileira, em que se reconheceu a capacidade de auto-organização aos Municípios, além das demais capacidade autonômicas de uma entidade federativa, pode-se dizer que ele é produzido em três dimensões: a federal, a estadual e a municipal.
O Direito Constitucional Federal, enquanto o conjunto de regras e princípios fundamentais que regem o Estado brasileiro em sua totalidade (territorial, pessoal e temporal), é produzido, inicialmente, pelo chamado Poder Constituinte Originário, e, ao depois, pelo Poder Constituinte Derivado (Poder de Reforma da Constituição).
O Direito Constitucional Estadual, enquanto conjunto de regras e princípios que regem determinado povo e unidade territorial estadual, é elaborado, em parte, pelo Poder Constituinte Decorrente, com assento na Constituição Federal. Grande número de suas normas já vem pré-definidas pela obra do Poder Constituinte Originário, a Constituição Federal, através de normas centrais[4].
Assim, esses Direitos Constitucionais, enquanto Direitos Constitucionais Positivos, exigem não só um poder de elaboração, também exigem poderes de proteção da efetividade de suas regras e princípios[5], tanto no plano federal quanto no estadual, exigem o exercício da jurisdição constitucional federal e da jurisdição constitucional estadual.
A tutela da Constituição estadual reclama a jurisdição constitucional estadual, ou melhor, a tutela da separação de poderes e dos direitos fundamentais[6] no âmbito territorial dos estados-membros, enquanto a defesa da Constituição federal exige a jurisdição constitucional federal.
02. Jurisdição Constitucional no âmbito do Federalismo
A idéia de uma jurisdição constitucional, de um órgão ou vários e respectivos procedimentos para defesa do pacto constitucional é inerente a idéia de Constituições escritas no âmbito do constitucionalismo[7].
A jurisdição constitucional é associada, preponderantemente, ao controle de constitucionalidade concentrado e difuso. Todavia seu conceito é mais amplo[8], abrangendo outras formas e procedimentos de controles não só de normas, mais de comportamentos concretos de pessoas físicas (agentes políticos) e pessoas jurídico-públicas. Lembremos o procedimento de impeachment do Presidente da República por violação de normas constitucionais e a intervenção federal nos Estados-Membros[9], e destes nos Municípios.
Nessa parte do trabalho, interessa-nos, preponderantemente, sua associação ao controle de constitucionalidade judicial concentrado e difuso.
Assim, assumimos uma significação mais restrita para a idéia de jurisdição constitucional, aquela que a associa aos instrumentos, poderes e processos de controle de constitucionalidade, especialmente os judiciais.
É no âmbito do federalismo[10], da doutrina, das idéias e do movimento para constituição de formas federadas de estado que nasce, cresce e se fortalece as exigências de um controle de constitucionalidade, preponderantemente para se tutelar a autoridade da Constituição federal frente as ordens jurídicas parciais dos estados-membros. Pode-se dizer que o controle de constitucionalidade é consentâneo ao federalismo[11], à nascença da Federação[12], principalmente a da norte-americana.
O federalismo adotou em cada nação que o acolheu modelos de federação distintos, com peculiaridades específicas em determinados países e pontos comuns a muitos outros[13]. Entre os pontos comuns encontramos o controle de constitucionalidade judicial, com variações para preponderância do modelo concentrado ou do modelo difuso, ou mesmo formas mistas ou convergentes dos dois modelos.
Em alguns países, como o nosso, vigoram concomitante o modelo judicial difuso e o concentrado[14]. O concentrado tanto no plano federal quanto no estadual, podendo a tutela das Constituições federal, estaduais e municipais também ocorrer pela via difusa.
Em nações[15] onde o federalismo foi mais exigente com a idéia de descentralização do poder, onde resolveu dotar de poderes mais largos e democráticos as comunidades parciais, surge a jurisdição constitucional estadual em concorrência complexa e integradora com à jurisdição constitucional federal.
O federalismo contemporâneo, nesta parte, deverá ser pródigo com a jurisdição constitucional, potencializando, inovando, e extendendo o rol dos instrumentos de controle de constitucionalidade federais aos Estados-membros, dando maior atenção e importância à jurisdição constitucional estadual.
A Jurisdição Constitucional Estadual, ao que parece, constitui um reclamo do constitucionalismo contemporâneo, como demonstra uma das conclusões do VII Congresso Iberoamericano de Direito Constitucional, ocorrido em fevereiro de 2002 na cidade do México, ao tratar dos instrumentos de justiça constitucional: “Propiciar em los sistemas federales uma mayor participación de los estados o provincias en la justicia constitucional.”[16]
A compreensão do federalismo contemporâneo passa pela compreensão da jurisdição constitucional estadual, do controle de constitucionalidade estadual, seus novos rumos e perspectivas colocam sob o olhar do jurista os institutos, os processos e as matérias que podem ser deduzidas e tuteladas neste tipo de jurisdição.
03. Jurisdição Constitucional e Estado Democrático de Direito
A Jurisdição Constitucional, como dissemos, vem associada, preponderantemente, à noção de Controle de Constitucionalidade das Leis e demais atos normativos gerais e abstratos emanados do poder público.
O Controle de Constitucionalidade, associado ao controle de legalidade[17], e mais, ao controle do poder político em geral, aparece no seio dos Estados Democráticos de Direito da atualidade como o principal instrumento de combate ao arbítrio, à ação desmedida e abusiva do Estado violador de direitos fundamentais e transgressor da separação de poderes. O controle judicial de constitucionalidade “... complementa o conceito de Estado de Direito.”[18]
A doutrina, nesta senda, tem distinguido o que procurou chamar de Jurisdição Constitucional das Liberdades e de Jurisdição Constitucional da Constitucionalidade ou da Constituição[19].
A jurisdição constitucional das liberdades ocupa-se com as ações constitucionais típica de tutela dos direitos fundamentais da pessoa numa perspectiva individual e coletiva, como o mandado de segurança, mandado de segurança coletivo, habeas corpus, habeas data, mandado de injunção, ação popular, ação civil pública, etc; preocupa-se com a tutela de direitos subjetivos atribuíveis a uma pessoa ou a muitos indivíduos integrantes da comunidade ou entes coletivos[20].
Por sua vez, a jurisdição constitucional da Constituição, ou como garantia da Constituição[21], ocupa-se com a tutela da ordem constitucional objetiva, com o Direito Objetivo Constitucional, com a tutela da supremacia e efetividade das normas constitucionais, especialmente diante da ação desviante do Legislador ou de outro órgão jurídico-público com competência normante geral e abstrata, constituam essas autoridades entes federais, estaduais ou municipais[22].
Nessas duas perspectivas, a jurisdição constitucional apresenta-se fundamental à configuração, à legitimação e ao asseguramento do que hoje chamamos de Estado Democrático de Direito[23]. Essa noção de Estado, no seu atual quadro histórico, pressupõe a existência da jurisdição constitucional das liberdades e da jurisdição constitucional da constitucionalidade[24].
O Estado Democrático de Direito pressupõe uma série de tarefas políticas, sociais, econômicas, culturais, traduzidas por normas tarefas e normas fins, por missões constitucionais plasmadas no texto fundamental, que se expressam através do que tradicionalmente chamamos de normas programáticas[25]; também o amplo leque de direitos fundamentais individuais, econômicos, políticos e culturais que encontramos no sistema de direitos e garantias fundamentais, expressam os principais valores a serem perseguidos e realizados em um Estado Democrático de Direito[26].
Para dar efetividade a essas pautas normativas constitucionais, que expressam competências, tarefas e direitos fundamentais, faz-se necessário, além da força política de representação popular, um sistema judicial e político que procure garantir a eficácia das normas constitucionais fixadas no pacto constituinte de uma comunidade organizada em Estado. Sem a jurisdição constitucional, nos tempos atuais, apoucada estaria a idéia de Estado de Direito, a idéia de Estado Democrático. Quem garantirá no plano da pràxis comunitária o que no plano normativo as Constituições asseguraram aos indivíduos?[27] Quem fiscalizará o respeito à linha constitucional que divide horizontal e verticalmente as atribuições dos poderes públicos?
O Estado Democrático de Direito é instituição voltada à realização de promessas, tarefas e missões constitucionais, e a fiança para realizá-las funda-se na garantia de uma Jurisdição Constitucional que não procure somente efetivar o teor dos textos fundamentais federais e estaduais, mas que os reconstrua de acordo com as possibilidades de câmbio que requer a atividade de interpretação e concretização das Constituições Federal e Estadual, especialmente em suas dimensões ligadas aos Direitos Fundamentais e à instrumentalidade da Separação de Poderes.
04. Controle de Constitucionalidade Estadual no Brasil
A Jurisdição Constitucional, no Brasil, revela-se, destacadamente, pelo controle judicial de constitucionalidade das leis e atos normativos emanados do Poder Público.
O controle concentrado (arts. 102, I, a, §§ 1° e 2°, 125, § 2, da Constituição da República) e o controle difuso (arts. 102, I, q, III, b, c, da CR e 480 a 482 do Código de Processo Civil) integram o sistema judicial de controle de constitucionalidade, entre nós. Também existem os chamados controles políticos de constitucionalidade, aqueles exercitados pela Chefia do Executivo e pelo Legislativo.
O Executivo, de forma preventiva, quando apõe vetos por razões de inconstitucionalidade às proposições legislativas aprovadas pelo Parlamento, em verdade realiza controle político prévio de constitucionalidade (arts. 66, § 1°, primeira parte, da CF)[28]. Prévio por que anterior ao momento da proposição parlamentar tornar-se regra jurídico-positiva, antes de adentrar ao sistema de direito positivo. No modo a posteriori poderíamos dizer, não sem algum cuidado, que o ato do Executivo de negar aplicação à lei considerada inconstitucional no âmbito da administração que preside, via decreto, pode ser considerado controle político repressivo de constitucionalidade[29] (arts. 2°, 23, I, 76, XXVII, da CR), controle posterior de constitucionalidade.
O Legislativo, preventivamente, de duas formas, no âmbito do processo legislativo, pode encerrar a tramitação de projetos de leis que tragam em seu bojo proposições inconstitucionais. A primeira, pelo parecer contrário das Comissões de Constituição e Justiça, por razões de inconstitucionalidade da proposição, ocasionando sua rejeição interna corporis. Este parecer, dependendo do regimento da casa parlamentar, poderá[30] ou não ser vinculante no processo legislativo, o que ampliará ou reduzirá seu poder de eficácia. Pela segunda, o Presidente do Parlamento pode indeferir, liminarmente, a tramitação de proposição que entenda manifestamente inconstitucional, com recurso do parlamentar interessado, se sobre tal procedimento dispuser o Regimento da Casa parlamentar[31].
O Legislativo também pode se manifestar posteriormente a publicação de ato já incluso na ordem jurídica, ao sustar atos normativos do poder executivo que exorbitem do poder regulamentar[32] ou excedam a competência da delegação legislativa, segundo o modelo inaugurado em 1988 (artigo 49, V, CF). Aqui a doutrina caracteriza esse procedimento como controle político repressivo de constitucionalidade[33].
O Controle de Constitucionalidade estadual no Brasil ocupa-se dessas funções políticas e judiciais de controle. Há um sistema de controle de constitucionalidade complexo, também no plano dos Estados-Membros, que conjuga formas políticas com formas judiciais, seguindo, em regra, os parâmetros institucionalizados na ordem jurídica federal. Esse sistema conjuga processos políticos e processos jurisdicionais de controle de constitucionalidade, ou seja, autoriza que autoridades judiciais, legislativas e executivas exercitem determinadas formas de controle de compatibilidade das normas ou proposições normativas com à Constituição Estadual.
E é desse controle, especialmente com suas formas judiciais, preponderantemente a concentrada, que estamos a tratar neste trabalho.
Nunca é demais salientar que cada Estado-membro da federação brasileira pode trazer algumas peculiaridades quanto aos controles expostos[34], que destoam ou vão muito além dos modelos utilizados pela União Federal.
5.1. Definição e Evolução
O Controle de Constitucionalidade estadual pode ser definido como o sistema integrado por ações, procedimentos e órgãos judiciais e políticos destinados a garantir a supremacia e a eficácia da Constituição Estadual[35] em seus âmbitos pessoal, temporal e territorial de validade, diante de leis estaduais ou atos normativos estaduais que contrastem o texto fundamental estadual. No Brasil, o sistema de controle de constitucionalidade estadual possibilita a fiscalização concentrada ou difusa tanto da lei estadual quanto da lei municipal contestadas em face da Constituição Estadual.
Logo após a Constituição Republicana e Federativa de 1891 o Controle de Constitucionalidade começa a se manifestar nas ordens jurídicas estaduais[36], positivado na forma de controle político[37] prévio ou posterior, deferindo aos Legislativos ou aos Executivos estaduais poderes para controlar a constitucionalidade de atos legislativos estaduais ou municipais contrários às constituições estaduais. Também o “... controle jurisdicional por via de exceção (concentrado ou não)” se positivava, ainda que em menor grau, coexistindo com o controle político.[38]
Exemplo histórico de controle político de constitucionalidade posterior ou repressivo, tanto exercido pelo Legislativo quanto pelo Executivo estaduais, é o da Constituição Paulista de 14.07.1891, que no artigo 20, caput, estabelecia que ao Congresso Estadual[39], competia fazer leis, suspendê-las, interpretá-las (dizer da constitucionalidade das leis) e revogá-las, e no item 12 (c/c art. 54, § 1°) do mesmo artigo previa atribuição ao Parlamento estadual para “anular as resoluções e atos das municipalidades” quando contrários à Constituição Estadual paulista e à Constituição Federal[40].
O artigo 54 da mesma Constituição dispunha que o Presidente do Estado[41], no intervalo das sessões legislativas, poderia suspender a execução das deliberações e atos municipais, nos mesmo casos que coubesse tal competência ao Congresso estadual. E o parágrafo único deste artigo consagrava que, pelo Congresso estadual, esta anulação seria decretada se por ela votassem dois terços dos membros congressuais presentes.[42]
Esse sistema foi adotado “...em quase todas as primeiras Constituições Estaduais republicanas de 1891”. Ele não encontrava símile no modelo federal de 1891, ao contrário, os constituintes estaduais talvez tenham sido influenciados pela Constituição Imperial de 1824 que consagrava apenas o controle político e não o jurisdicional de constitucionalidade, atribuindo ao congresso nacional função idêntica a atribuída ao congresso estadual paulista em 1891[43].
Segundo Anna Cândida da Cunha Ferraz só houve duas exceções a esse modelo de controle político de constitucionalidade estadual: uma, a do Rio Grande do Sul, que deferiu ao Presidente do Estado, e não ao Congresso Estadual, a faculdade de impugnar as resoluções dos conselhos municipais, e, a outra, foi na Constituição da Bahia, que teria admitido apenas o controle jurisdicional de constitucionalidade. Esse sistema político posterior de controle de constitucionalidade, divergia, em cada Constituição Estadual, “...quanto à natureza dos órgãos controladores, efeitos do controle, prazos para efetuá-los etc.”[44]
Por sua vez, o controle político prévio, através da rejeição “interna corporis” de projetos de leis inconstitucionais pelas Comissões de Constituição e Justiça das Assembléias estaduais, e o veto do Executivo estadual a esses projetos, foram aceitos, em todas as épocas da história constitucional brasileira, pelas ordens jurídicas dos Estado-Membros, aquela nos regimentos das assembléias locais, este no texto das constituições estaduais[45], mas, ambos, sempre integrando o Direito Constitucional dos Estado-Membros, independentemene de terem sede normativo-regimental ou normativo-constitucional.
Os controles políticos de constitucionalidade estadual, prévios e posteriores, em nossa história constitucional, vingaram prevalentemente até 1934[46], quando então os Estados passaram a admitir em suas constituições o controle judicial difuso de constitucionalidade, incumbindo as Assembléias estaduais de mero poder suspensivo das leis estaduais e municipais já declaradas inconstitucionais pelo Judiciário do ente federado.[47]
Para Anna Ferraz até está fase do constitucionalismo brasileiro os Estado-Membros organizaram os sistemas de defesa das respectivas constituições estaduais com verdadeira autonomia, criatividade e respeito a autênticos princípios federativos[48]. Todavia, devido as sucessivas reconstitucionalizações que fizeram imergir novas constituições federais com significativas evoluções no controle judicial de constitucionalidade, as ordens jurídicas estaduais foram cada vez mais se apegando, reproduzindo, copiando os modelos centrais da União Federal, deixando, aos poucos, de atentarem para a natureza e função dos próprios poderes para criar mecanismos peculiares de defesa da Constituição estadual.[49]
Assim, a partir da Constituição Federal de 16.07.1934 o controle de constitucionalidade estadual passa a ser “... predominantemente jurisdicional e indireto”, passando os órgãos políticos, Assembléia ou Executivo estaduais, apenas a complementarem a ação do Judiciário suspendendo os atos já declarados inconstitucionais por este poder.[50]
Interessante exemplo desta tendência foi a Constituição do Rio Grande do Sul, de 27.06.1935, que em seu artigo 89, em três incisos distintos, tratou da coordenação dos três poderes estaduais na realização do controle de constitucionalidade, dizendo no inciso III deste dispositivo, que aos Juízes e Tribunais competiria declarar inconstitucionais ou ilegais qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento que infringissem disposições da Constituição do Estado, da Constituição Federal ou das respectivas leis, e, no inciso I, ao Legislativo estadual suspender a execução no todo ou em parte, de qualquer ato, deliberação ou regulamento, que haja sido declarado ilegal ou inconstitucional pelo Poder Judiciário, e, no inciso II, ao Governador, suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou resolução da Assembléia Legislativa, quando hajam sido declaradas inconstitucionais pelo Poder Judiciário.[51]
De 1934 a 1946, as ordens constitucionais dos Estados-Membros continuaram a criar seus próprios sistemas de controle de constitucionalidade, porém “... discriminando claramente a natureza do controle, conforme incidisse ele sobre leis e atos estaduais (caso em que o controle jurisdicional, via de exceção predominava) e sobre leis e atos municipais (quando predominava o controle político direto).”[52]
Nesse período o controle jurisdicional por via direta, através da ação direta interventiva (o pressuposto para intervenção federal nos estados), criada na Constituição federal de 1934, não influenciou as Constituições estaduais, que não o reproduziram e nem nele se inspiraram para talharem seus sistemas próprios de defesa da Lei fundamental estadual.[53]
De 1946 a 1965, as Constituições federadas mantiveram o mesmo sistema posterior a 1934, onde vigorava, ao lado dos controles políticos, o controle judicial difuso perante a Constituição estadual tanto dos atos legislativos estaduais quanto dos municipais. Em 1959 houve duas decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal que entenderam que o poder atribuído pelas Constituições estaduais às suas Assembléias para anular resoluções, atos e leis municipais seria inconstitucional diante do regime vigorante a partir da Constituição de 1946, já que, segundo os fundamentos dos arestos, a autonomia municipal, a presunção de constitucionalidade das leis - que só poderia ser afastada pelo Judiciário -, e a separação de poderes, desautorizariam tais atribuições aos legislativos estaduais em face de atos normativos municipais.[54]
A Emenda Constitucional n° 16 de 26.11.1965, que instituiu no plano federal a representação de inconstitucionalidade – hoje chamada ação direta de inconstitucionalidade - aforável no STF para proteção da Constituição, e que tinha como objeto de impugnação leis federais e estaduais, também possibilitou a criação, por lei[55], de ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato de município em conflito com a Constituição estadual. Atente-se que não houve expressa menção na Constituição federal para que a lei estadual pudesse ser contestada em face da Constituição federada.[56]
A Constituições de 1967 e de 1969 nada referiram quanto a possibilidade da jurisdição constitucional estadual na forma de controle direto genérico de leis e atos estaduais e municipais contrastados diante da Constituição estadual, o que parecia indicar o reconhecimento que essas questões seriam de plena autonomia auto-organizatória de cada estado-membro.[57] Todavia, a CF de 69, “... criou, ao nível do Estado-Membro, a modalidade de ação interventiva e, como prius para a intervenção, a representação e inconstitucionalidade de lei ou ato municipal, com a finalidade de assegurar a observância, pelos municípios, dos princípios da Constituição Estadual.”[58]
No item seguinte abordaremos aspectos atuais do controle judicial de constitucionalidade estadual no Brasil, especialmente após a Constituição da República de 1988. Insta dizer que a nova Constituição federal provocou a doutrina nacional a ocupar-se, com mais atenção, do controle de constitucionalidade estadual, sem, todavia, satisfazer a integralidade das questões apontadas no item 01 deste trabalho, que, aqui, também, como dissemos, não serão enfrentadas. Ao que alcançaram nossas pesquisas, Ana Ferraz[59], Regina Ferrari[60], Zeno Veloso[61], Rodrigo Lopes Lourenço[62], Clémerson Cléve[63], Lênio Sctreck[64], Moreira Alves[65], Gilmar Mendes[66], Vasco Della Giustina[67], Sérgio Ferrari[68], Dircêo Torrecillas Ramos[69], Patricia Teixeira de Rezende Flores[70], Fernando Luiz Ximenes Rocha[71], Guilherme PEÑA[72], Noel TAVARES[73] e Eduardo Sens dos Santos[74] se ocuparam do tema na Ciência constitucional brasileira.
5.2. Instrumentos Processuais Judiciais
Os Estados-Membros, no Brasil, para realização das tarefas inerentes ao controle de constitucionalidade estadual, dispõe de muitos instrumentos processuais, chamáveis de políticos - os desencadeáveis no âmbito do Executivo e Legislativo - e judiciais – os manejáveis e solvíveis no âmbito do Judiciário. Neste tópico nos ocuparemos apenas dos instrumentos judiciais.
Os instrumentos processuais judiciais dividem-se em questionamentos direitos e autônomos, via ação própria e de competência originária dos Tribunais de Justiça, as ações diretas de inconstitucionalidade de lei ou atos normativos estaduais ou municipais contestados em face da Constituição estadual (art. 125, § 2 , da CR) e as ações diretas interventivas estaduais para preservação dos princípios sensíveis indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial (arts. 35, IV, 36, §§ 2 a 4 , da CR).
Preponderantemente, essas são as ações que, comumente, se acham previstas nos âmbitos estaduais brasileiros. Todavia, existem estados, como o de Santa Catarina, que previram a possibilidade de aforamento no TJ, para tutela da Constituição estadual, de ações diretas de inconstitucionalidade por omissão[75] (art. 85, § 3°[76], da CESC).
A doutrina nacional[77] entende possível, no plano do Estado-Membro, a adoção de todos os instrumentos processuais adotados na Constituição da República para proteção do texto fundamental federal (ação declaratória de constitucionalidade[78], argüição de descumprimento de preceito fundamental[79]). Concordamos com tal entendimento, e, ousamos um pouco mais. Entendemos que é possível a adoção, inclusive, de instrumentos não adotados no plano federal, ou seja, os instrumentos processuais federais, para os estados-membros, não são numerus clausulus, e sim exemplificativos, podendo o Estado-membro adotar outros instrumentos ou configurar, de forma diferente e peculiar, os instrumentos sugeridos no plano federal. Por exemplo, no primeiro caso, poderiam os Estados-membros adotarem ação direta de ilegalidade para tutelar a conformidade das leis estaduais e municipais em face do princípio da legalidade, a exemplo do que existe no Direito Constitucional Português[80]. No segundo caso, poderia dotar a ação direta de inconstitucionalidade com legitimição universal, a conferida a qualquer cidadão, ou seja, criar verdadeira ação popular constitucional para tutela da Constituição estadual em face de leis e atos normativos estaduais e municipais.
A única restrição expressa que existe quanto a configuração local destes instrumentos judiciais de controle, é não poder o constituinte decorrente conferir legitimação para agir a um único órgão ou pessoa, denotando, com isso, a necessidade de respeito ao princípio democrático no âmbito do processo constitucional, que impõe legitimacio ad causam para pessoas no espírito encetado pelo constituinte originário no artigo 103 da CR e demais disposições concretizadoras do princípio fundamental democrático em nível de constituição.
Além desses questionamentos diretos no Tribunal de Justiça para tutela da Constituição estadual, existe, por óbvio, a possibilidade do controle difuso, onde qualquer órgão judiciário monocrático ou colegiado estadual poderá realizá-lo.
Quando se tratar de órgão colegiado, o controle difuso, por força da regra constitucional retirada do texto do artigo 97 da Constituição da República, se impõe a todos os Tribunais da República, já que a decisão de inconstitucionalidade pode ter como parâmetro tanto norma extraída do texto constitucional federal como do texto constitucional estadual (e até do texto constitucional municipal). Também se impõe ao processamento dessas questões no âmbito dos Tribunais de Justiça, as regras processuais comuns dos artigos 480 a 482 do Código de Processo Civil. Embora esses regras nacionais tenham sido promulgadas em 1973, e alteradas recentemente por força das leis nacionais 9.576, de 17.12.98 e 9.868, de 10.11.99, elas se aplicam ao controle de constitucionalidade estadual em proteção de normas da Constituição estadual.
No plano do controle de constitucionalidade judicial difuso, realizado no estado-membro, podemos distinguir quatro situações:
i) controle de constitucionalidade difuso realizado por órgão judiciário estadual em proteção da Constituição Federal;
ii) controle de constitucionalidade difuso realizado por órgão judiciário estadual em proteção da Constituição Estadual;
iii) controle de constitucionalidade difuso realizado por órgão judiciário estadual em proteção da Constituição Municipal;
iv) controle de constitucionalidade difuso realizado pelo pleno ou órgão especial do Tribunal de Justiça no processamento de ações deduzidas no âmbito do controle de constitucionalidade concentrado estadual.
O terceiro tipo de controle, o protetivo da Lei Orgânica Municipal, tem sua percepção obnubilada, e quando percebido, de aceitação dificultada, por não cultivarmos uma adequada concepcão a respeito da natureza, função e estrutura normativas das Leis fundamentais municipais. Existem posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais que lhe conferem posição de direito ordinário, o que lhe tornaria impossível a alternativa de ser encarada como parâmetro de constitucionalidade em face das leis infra-orgânicas municipais[81]. Além disso, para essa posição, seu nome, “Lei Orgânica”, não lhe autorizaria a essência de “Constituição”, já que o Constituinte originário preferiu assim chamá-la, à exceção do que fizera com as leis fundamentais dos Estados-Membros, chamando-as de “Constituições estaduais”.
Não concordamos com tais posicionamentos indevidamente restritivos. Entendemos, entre outras razões, que a Lei Orgânica Municipal é Constituição:
i) porque que seu nomen juris não é o que define sua natureza, mas sim a sua estrutura e função na ordem jurídica nacional e municipal;
ii) por ser produto do exercício do poder constituinte decorrente municipal, veículo da capacidade federativa auto-organizatória conferida aos municípios;
iii) por ser norma de normas, norma normarum, por regular o processo de produção normativo no âmbito municipal, pré-definindo a forma e a matéria das leis infra-orgânicas, numa relativa relação de infra e supra-ordenação normativa, ao modo da explicitação kelsiana[82];
iv) também constitui fundamento de validade das leis e demais atos normativos ou não normativos municipais, tendo supremacia no âmbito local municipal, não podendo ser violada em suas regras ou princípios;
v) organiza, limita e autoriza a ação dos poderes e dos agentes públicos municipais, estabelecendo, igualmente, mesmo em face de sua limitada capacidade de conformação constituinte decorrente, novos núcleos de direitos fundamentais individuais e/ou coletivos.
vi) o modo de sua produção inicial e o processo de sua reforma se assemelham, em tudo, com o modo de produção e reforma da Constituição Estadual, tendo, inclusive, um quorum muito elevado para sua aprovação originária – 2/3 - (art. 29, caput, da CR).[83]
Quanto ao controle difuso de proteção da Constituição estadual, do mesmo modo que seu igual na proteção da Constituição da República, devemos dizer que ele se operará em qualquer processo judicial, seja de jurisdição voluntária ou de jurisdição contenciosa, criminal, cível, trabalhista, fiscal, etc. Será suscitável em qualquer fase processual, por qualquer das partes ou pessoas e órgãos intervenientes. No procedimento ordinário, sumaríssimo, especial, cautelar e de execução, nas ações de rito especial, como mandado de segurança, habeas-data, habeas-corpus, ação popular, ação civil pública ele pode e deve ser operado, quando for o caso.
Ao controle difuso[84] podem e devem ser aplicadas todas as técnicas de decisão já desenvolvidas no plano da jurisdição constitucional federal, como, a exemplo, são a “interpretação conforme à Constituição”[85], “declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto”[86] e/ou “declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade”[87].
O mandado de injunção[88] (artigo 5°, LXXI, da CR), como instrumento de combate à inconstitucionalidade por omissão, é enquadrado como controle difuso de constitucionalidade[89]. Ele tem relevância para proteger, nos planos estadual e municipal, a efetividade de normas das constituições estaduais e municipais que estejam carentes de efetividade por inexistência de medidas legislativas e administrativa aptas a lhes conferir operatividade, desde que, é claro, essas normas digam respeito a direitos e liberdades constitucionais previstas nesses textos (ou mesmo em textos ordinários estaduais e municipais[90]).
Ao mandado de injunção se aplica o rito do mandado de segurança por força do artigo 24, parágrafo único, da Lei federal 8.038/90. Assim, ao ser interposto para salvaguarda de direitos e liberdades previstas nas cartas estaduais e municipais, o impetrante, e o órgão judiciário encarregado de processá-lo, deverão respeitar seu rito e as normas que tratam de sua competência, que se dividem em normas constitucionais federais, constitucionais estaduais[91], legais federais e legais estaduais.
As ações judiciais de controle referidas podem ser objeto de ampla ou restrita regulação no plano do Estado-Membro, mormente pela Constituição Estadual, produto do exercício vinculado do Poder Constituinte Decorrente. E disto que trataremos, em dada medida, no tópico seguinte.