1 INTRODUÇÃO
O presente artigo é uma breve explanação do posicionamento adotado pelo Estado brasileiro sobre uma prática milenar que atualmente é abordada, com certa constância e polêmica, por antropólogos, missionários, profissionais do Direito, jornalistas, dentre outros interessados pelo tema que recebe o nome popular de “infanticídio indígena”
A palavra infanticídio tem origem no latim, infanticidium, e significa morte de criança. Em algumas tribos indígenas do Brasil, o infanticídio é uma prática imposta pela cultura aos seus membros, que levam crianças à morte por variadas razões, tais como, a deficiência física ou mental, o nascimento de gêmeos, de filhos de mães solteiras, de bebês com o sexo não desejado, o fato de a criança nascer em período que a mãe está amamentando outro filho, ou por qualquer outro motivo que a respectiva tribo entender que acarretará maldição para a mesma.
A cartilha “Quebrando o silêncio: um debate sobre o infanticídio nas comunidades indígenas do Brasil”, organizada por Márcia Suzuki, Presidente do Conselho Deliberativo da ONG Atini, que trabalha em combate à prática, informa que vítimas não são, necessariamente, neonatos, havendo registro do costume realizado, inclusive, contra crianças de 3, 4, 11 e até 15 anos. A morte pode ser provocada por diversas maneiras, como a sufocação com folhas envenenadas, o abandono em florestas e rios, ou o enterramento das crianças, quando ainda vivas.
O que torna o tema, ora analisado, em algo tão delicado são os direitos e as limitações dos direitos indígenas. De um lado a existência de crime atentatório contra a vida, de outro a defesa do direito à diversidade cultural.
O presente artigo fará uma abordagem do posicionamento que o Estado tem adotado frente ao infanticídio indígena, qual seja, a omissão. Será demonstrada, ainda, a incoerência e ilegalidade de tal postura, bem como a posição que o Governo brasileiro deveria assumir, no sentido de caminhar para pôr termo à oposição interpretativa sobre o homicídio indígena. Irá propor como solução, para o conflito de valores instituído, o investimento financeiro, político e educacional, em programas de promoção do diálogo intercultural, tendente a expandir os campos de visões culturais, dando possibilidade a uma efetiva reavaliação das tradições de forma interna.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 O POSICIONAMENTO DO ESTADO BRASILEIRO FRENTE AO “INFANTICÍDIO INDÍGENA”
Hodiernamente o governo brasileiro, representado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), tem se omitido em relação aos casos de óbitos de crianças indígenas provocados por práticas culturais. Segundo Marcelo Santos: “Não existem números precisos. De acordo com a assessoria de imprensa da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), cabe à Fundação Nacional do Índio (Funai) identificar esses casos, uma vez que se trata de um traço cultural. Já a Funai alega que os dados devem ser obtidos na Funasa, que gerencia as atividades dos distritos sanitários nas aldeias. O pouco que se sabe sobre o assunto provém de fontes como missões religiosas, estudos antropológicos ou algum coordenador de posto de Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) que repasse as informações para a imprensa, antes que elas sejam enviadas ao Ministério da Saúde e lá se transformem em ‘mortes por causas mal definidas’ ou ‘externas’.” (SANTOS, 2007, n. 381)
Embora algumas pessoas, talvez por falta de conhecimento do assunto, afirmem que o “infanticídio” dos povos indígenas seja uma prática rara, é possível se constatar que tal afirmativa não coincide com a realidade das tribos brasileiras. Entre os yanomamis, por exemplo, a prática é uma das maiores causas de mortalidade infantil: “Sim, nós temos crianças indígenas morrendo por desnutrição em Roraima. E se a essa causa, for considerado o péssimo hábito das índias ianomâmi de matarem seus filhos, caso o anterior ainda esteja sendo amamentado, os números indicam que estamos diante de uma tragédia. Segundo o médico Marcos Pelegrini, do Distrito Sanitário Yanomami (DSY), somente no ano de 2004 morreram 104 crianças de zero a nove anos de idade. Dessas, seis perderam a vida por desnutrição e 98 foram mortas pelas mães.”.(Comissão Pró-Yanomami, 2005.)
Segue alguns depoimentos, retirados da cartilha Quebrando o Silêncio de pessoas que presenciaram tal prática: “Cansei de ver criança morrendo nas aldeias. A maioria dessas mortes poderia ter sido evitada, mas a gente não pode interferir (...) Eu já sofri muito com isso, e não tenho mais esperança que alguém possa ajudar. Eu não acredito mais. Eu não quero mais nem falar sobre isso, tenho medo, sofro ameaças (...) me desculpe.” (Técnica de enfermagem de um DSEI em Roraima, que preferiu não se identificar) “... as índias se alimentam, dão comida para as crianças saudáveis e deixam que a natureza se encarregue daquelas que não têm chances de vingar.” (Dra. Dinaci Hanzi, Hospital da Universidade Federal da Grande Dourados, em entrevista a Revista Cláudia, julho/2007) “Eu tinha acabado de fazer o parto de gêmeos, no Xingu. Foi um parto difícil, mas as crianças nasceram saudáveis. Foi só eu virar as costas e sair que as crianças foram enterradas vivas.” (Dr. Piva Albuquerque, Clínico Geral, que trabalhou no Parque Xingu).
A postura omissiva do Estado vai de encontro a vários pontos do ordenamento jurídico atual. Façamos, pois, uma análise.
O Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. De acordo com a nossa Carta Maior a publicação e promulgação de um Tratado internacional, devidamente aprovado, ocasionam sua incorporação ao ordenamento interno brasileiro, no mesmo nível das leis ordinárias. Entretanto, desde 2004, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, por força da Emenda Constitucional nº 45, passaram a receber um tratamento especial, no qual foi realizada uma diferenciação hierárquica, tornando-os equivalentes às emendas constitucionais. O que nos leva à constatação da preocupação, ao menos formal, em se garantir uma maior valoração destes direitos, aos quais se integra o direito à vida.
Outro acordo internacional ao qual o Brasil é signatário é a Convenção 169 da OIT, que, como mencionado anteriormente, prevê a preservação dos costumes dos povos indígenas, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos.
Dessa forma, para que o Brasil continue adotando uma postura omissiva, sem ter que se responsabilizar internacionalmente, deveria realizar a denúncia de tais tratados.
Humberto Ávila, em Teoria dos Princípios, leciona que o descumprimento de uma regra é mais grave que o descumprimento de um princípio. Isso se dá pelo fato das regras consistirem “numa espécie de decisão parlamentar preliminar acerca de um conflito de interesses”. Explica ainda: “Como as regras possuem um caráter descritivo imediato, o conteúdo do seu comando é muito mais inteligível do que o comando dos princípios, cujo caráter imediato é apenas a realização de determinado estado de coisas. Sendo assim, mais reprovável é descumprir aquilo que “se sabia” dever cumprir. Quanto maior for o grau de conhecimento prévio do dever, tanto maior a reprovabilidade da transgressão. De outro turno, é mais reprovável violar a concretização definitória do valor na regra do que o valor pendente de definição e complementação de outros, como ocorre no caso dos princípios.” (ÁVILA, 2004)
Seguindo essa linha teórica e considerando, portanto, que o art. 121 do Código Penal é uma regra, e como tal possui caráter imediatamente descritivo, bem como conteúdo axiológico fulcrado no valor vida; e tomando em conta, outrossim, que os acordos internacionais supra mencionados trazem em seu texto regras que determinam condutas aos Estados, com a finalidade de se garantir os direitos tutelados, tal como o direito à vida; verifica-se que é mais oneroso ao Estado descumprir tais normas que são regras, que aquela norma que constitui um princípio, o da não-intervenção cultural.
Além dos acordos internacionais, verifica-se, da mesma forma, a incoerência da postura adotada pelo governo, se analisados outros dispositivos jurídicos internos, tais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que não faz distinção entre crianças indígenas e não indígenas, ou a própria Constituição, que determina ser defesa a pena de morte.
Ora, se não é aceitável por nosso ordenamento que se tire a vida de alguém, ainda que este tenha causado danos graves à sociedade, tais como os crimes tidos por hediondos, como aceitar, então, que se tire a vida de crianças? Além de inocentes – por não cometerem mal algum e não ferirem nenhuma norma pré estabelecida – são incapazes de se defenderem – tanto do ponto de vista prático como formal, já que, mesmo que podendo ser representadas judicialmente, não há processo algum em que se discuta seu direito de viver, antes de suas mortes acontecerem.
A própria Convenção 169 da OIT, em seu art. 9º, não aceita o sistema de sanção interno dos povos indígenas, quando aquele afronta direito à vida. Assim, mais uma vez, seria incoerente admitir que se ponha termo à vida de crianças que nem sequer se compreendem como destinatárias de punição.
Foi verificado, portanto, que defender a vida dessas crianças não constitui apenas uma obrigação moral do país, mas também legal. Entretanto, não é razoável que se trate das questões indígenas da mesma forma que tratamos os problemas da sociedade não-indígena. Deve-se encontrar um equilíbrio entre o respeito à cultura e a imposição de deveres comuns à todas sociedades. Assim, não é plausível que se puna membros indígenas por obedecerem suas regras culturais. Mas, então, como defender a vida destes infantes?
2.2 O POSICIONAMENTO QUE SE PROPÕE AO ESTADO FRENTE À QUESTÃO ABORDADA
2.2.I - O DIÁLOGO INTERCULTURAL COMO SOLUÇÃO
Resta evidenciado que o simples fato de se ter positivado na Declaração de Viena (1993) que “todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados”, não foi suficiente para concretizar a universalização destes direitos, que se realizou tão somente no plano formal. A pretendida aplicabilidade mundial dos direitos humanos é viável, se abertos espaços para o diálogo intercultural, objetivando o afunilamento da referência valorativa de todas as sociedades.
A promoção do diálogo deve se dar tanto no plano “inter-nacional”, quanto no âmbito “inter-étnico”, posto que, dentro de uma mesma Nação ocorrem várias etnias, como é o caso do Brasil. Além destes planos do diálogo, Abdullahi Ahmed An-Na’im, autor renomado internacionalmente por estudos realizados acerca do tema, propõe os “discursos culturais internos” para que haja uma legitimidade cultural do padrão universal de direitos humanos.“É extremamente importante ser sensível aos perigos trazidos pelo imperialismo cultural, seja ele um produto do colonialismo, uma ferramenta de exploração econômica internacional e subjugo político, ou simplesmente um produto de extremo etnocentrismo. Já que não aceitaríamos outros nos impondo seus padrões morais, não deveríamos lhes impor nossos próprios padrões morais. De qualquer maneira, imposição externa é, normalmente, contraprodutiva e é improvável que tenha sucesso em mudar uma prática cultural. No entanto, a imposição externa não é a única disponível para os defensores dos Direitos Humanos. Um maior consenso a respeito de padrões internacionais de proteção ao indivíduo pode ser alcançado através de um discurso cultural interno e de um diálogo intercultural.” (AN-NA’IM, 2000)
Se transportadas as etapas do diálogo intercultural para o caso estudado neste artigo deveriam ocorrer respectivamente na ordem em que foram mencionadas.
Assim constata-se que em nível internacional o diálogo pela busca da efetivação dos Direitos Humanos já teve início – basta conhecer a existência da própria Convenção de Viena, bem como de tantos outros colóquios, simpósios e congressos, enfim, dos encontros entre países para a discussão do assunto.
No plano Nacional há, ainda, pouca promoção de diálogo inter-étnico. Esta tem sido realizada, em maior parte, sem a assistência de programas governamentais, através de ONG’s, grupos missionários, ou individualmente por profissionais interessados, ou mesmo por representantes indígenas que discordam da prática e buscam o fim de certas estagnações culturais.
O desenvolvimento de programas do Estado visando um maior alcance do diálogo inter-étnico proporcionaria o então “cross-cultural dialogue” proposto por An-Na’im, tendo em vista que, as sociedades indígenas apenas passariam a dialogar internamente a respeito do infanticídio após o conhecimento de outras possibilidades/alternativas para lidar com os casos de rejeição das crianças. O diálogo inter-étnico é capaz de promover o questionamento interno de uma dada sociedade, para a edificação de novos traços na identidade cultural desta, de acordo com a nova realidade.
Assim, e ainda seguindo o estudo do autor supracitado, no processo de auto-conhecimento a sociedade, que questiona suas bases, passaria a buscar dentro das suas próprias “leis” enlightened interpretations (interpretações iluminadas) para a revisão de valores e tradições consagradas, alcançando suas reformulações com argumentos legítimos.
Alguns trechos do depoimento da etno-linguísta, Márcia Suzuki, abaixo transcritos, ilustram bem a possibilidade de mudança frente ao diálogo então proposto:“_ A corrente mais forte hoje é a compreensão de que os povos precisam de intercâmbio. Então, a informação nunca é uma agressão. Eu não me sinto agredida, quando vem alguém e me conta como que as pessoas vivem na Escandinávia, por exemplo. Isso não pode destruir quem eu sou, saber como as pessoas vivem em outro lugar. Uma das coisas que aconteceu, que contribuiu para mudar, não só a nossa visão, como a visão do povo Suruwahá também, foi a vida da Hakani. A Hakani é uma menina que era destinada ao sacrifício. Os pais dela acabaram se suicidando porque não tinham coragem de sacrificá-la; e ela acabou sobrevivendo, com muito sofrimento por três anos. Então ela passou três anos sem ter ninguém que cuidasse dela, sem ter ninguém que tivesse autorização da comunidade pra alimentar, pra dar banho. Ela ficou muito tempo abandonada completamente. Depois de três anos, finalmente, o irmão dela resolveu dá-la pra mim. Ele disse: ‘Leva pra cuidar. Ela é sua’. Então nós levamos a Hakani pra cidade, ela pôde ter tratamento médico; e ela passou a andar, falar; ela teve um desenvolvimento impressionante. _ Quando os Suruwahá, depois de um ano, viram a Hakani transformada; viram que ela andava, falava, que ela sorria, que ela podia ser muito bonita, então mudou a visão deles sobre esse tipo de criança. O que eles diziam era: Ah! Então ela tinha alma, então ela era gente?! E aí eles lamentaram por outras crianças que eles tinham matado no passado._ Para se fazer uma opção, pra se fazer uma escolha você tem que ter alternativas. Quando o índio não tem ainda alternativas, ele faz o que ele sabe. Então, creio que a nossa obrigação, o nosso trabalho, é mostrar pra essas pessoas que existem sim alternativas. No momento que eles tiverem essa informação, aí sim eles poderão fazer uma opção. Antes de ter uma informação, não tem como nós cobrarmos isso deles.”(SUZUKI, 2006.)
No caso supra, o diálogo interno começou a se estabelecer após a percepção de alternativas. Além deste exemplo, pode-se verificar o auto-questionamento e a busca por soluções internas historicamente em várias outras culturas, crenças ou religiões, como no islamismo, budismo, ou até mesmo no cristianismo, com a reforma de Lutero.¹
Boaventura de Souza Santos aborda, outrossim, a necessidade da promoção do diálogo intercultural.² Semelhante ao estudo desenvolvido por An-Na’im, que reconhece a existência de valores dentro de uma dada cultura contrários à realidade atual, e que por isso devem ser questionados e refletidos de forma iluminada; Boaventura propõe que todas as culturas são presumidamente incompletas em si e entre si. Necessitando, portanto, do diálogo, tanto no âmbito interno, quanto externo. Aquele, acontecendo através da recolocação dos discursos culturais dentro das suas realidades. Nasce, assim, sua proposta de uma hermenêutica diatópica.³
A hermenêutica diatópica consiste na interpretação cultural através dos topoi de uma dada cultura, “através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra.” O autor explica que, topos é o lugar comum de uma determinada cultura, bem estabelecido, melhor dizendo, em que não se há discussão, dada sua evidência, possibilitando a produção e a troca de argumentos. Sustenta ainda: “Compreender determinada cultura a partir dos topoi de outra cultura pode revelar-se muito difícil, se não mesmo impossível. Partindo do pressuposto de que tal não é impossível, proponho a seguir uma hermenêutica diatópica, um procedimento hermenêutico que julgo adequado para nos guiar nas dificuldades a enfrentar, ainda que não necessariamente para as superar. Na área dos direitos humanos e da dignidade humana, a mobilização de apoio social para as possibilidades e exigências emancipatórias que eles contêm só será concretizável na medida em que tais possibilidades e exigências tiverem sido apropriadas e absorvidas pelo contexto cultural local. Apropriação e absorção, neste sentido, não podem ser obtidas através da canibalização cultural. Requerem um diálogo intercultural e uma hermenêutica diatópica.”
No caso mencionado dos suruwahá (da menina Hakani), verifica-se que a consciência da incompletude interna apenas aconteceu com a troca cultural, que provocou a reavaliação dos valores e práticas (ainda em curso) pela própria tribo, sem que houvesse a sobreposição ou “canibalização” de uma cultura sobre a outra. Unindo a sugestão de Boaventura com a proposta de An-Na’im, tem se que, caso haja, nos suruwahá, uma readaptação do valor vida à nova realidade conhecida, o topos dos Direitos Humanos será aplicado de forma legítima na sociedade indígena.
Além dos citados autores, Roberto Cardoso de Oliveira abordou em seus estudos a questão do “infanticídio” indígena, propondo, também, como solução a realização do diálogo intercultural. Afirma que o choque entre culturas pode ser resolvido com o entendimento, que se realiza através da criação de comunidades de comunicação e de argumentação. O autor exemplifica o êxito de sua proposta em um caso que observou com Charles Wagley, em 1957 entre os Tapirapé: “O caso envolvia a prática do infanticídio e a presença de missionárias católicas na própria aldeia. Pude observar, então, uma situação de pleno choque entre valores ocidentais (ou cristãos) e valores tribais, particularmente naquilo que diz respeito ao significado da vida. O fato é que os Tapirapé haviam instituído, ao longo de seu deslocamento para a região do rio do mesmo nome, a prática da eliminação do quarto filho, desde que, assim fazendo, imaginavam impedir o aumento de sua população (...) Evidentemente, institucionalizada essa prática no âmbito da cultura Tapirapé, difícil seria erradicá-la mesmo após o violento declínio da população que, à época da pesquisa etnográfica, não contava com mais que 54 indivíduos! O certo é que as missionárias, valendo-se de alguns expedientes, lograram convencer o grupo indígena a não mais recorrer ao infanticídio. (...) O que se pode dizer é que houve uma interação comunicativa extremamente favorável no interior do sistema interétnico local, constituído pela associação entre missionárias e índios, marcada, por sua vez, por um padrão altamente "democrático" de sociabilidade: pudemos observar, Wagley e eu, a existência de uma verdadeira comunidade de comunicação (como interpreto hoje aquilo que presenciei à época) entre os Tapirapé e as missionárias, onde não se verificavam quaisquer daqueles mecanismos repressivos e autoritários comumente presentes. (...) Os Tapirapé, por seu lado, parece que se mostraram sensíveis pelo menos a um argumento – recordo bem ter conversado sobre o assunto com um deles – aquele que mencionava o fato de que qualquer morte estaria contribuindo para a destruição completa de toda a aldeia, tão poucos eles eram.” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1994.)
Cardoso de Oliveira propõe uma distinção entre costume, ou tradição, de moralidade, devendo, esta, ser direcionada por normas sujeitas a argumentação racional, significando, portanto, que os juízos morais são passíveis de negociação no interior de comunidades de comunicação, tal como sugere a ética discursiva de Habermas.
Como tentativa legal de se viabilizar esta ética discursiva, tem-se a Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, promulgada pelo Brasil em 2007, que traz como um de seus objetivos “encorajar o diálogo entre culturas a fim de assegurar intercâmbios culturais mais amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma cultura da paz”, e apregoa nos seus considerandos: “(...) a diversidade cultural cria um mundo rico e variado que aumenta a gama de possibilidades e nutre as capacidades e valores humanos, constituindo, assim, um dos principais motores do desenvolvimento sustentável das comunidades, povos e nações; (...) a diversidade cultural, ao florescer em um ambiente de democracia, tolerância, justiça social e mútuo respeito entre povos e culturas, é indispensável para a paz e a segurança no plano local, nacional e internacional” (BRASIL. Decreto nº 6.177, de 1º de agosto de 2007. Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais.)
A Convenção proclama ainda que a diversidade cultural é importante “para a plena realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e outros instrumentos universalmente reconhecidos”. Alerta, entretanto, no seu art. 2º: “Artigo 2 – PRINCÍPIOS DIRETORES1. Princípio do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. A diversidade cultural somente poderá ser protegida e promovida se estiverem garantidos os direitos humanos e as liberdades fundamentais,tais como a liberdade de expressão, informação e comunicação, bem como a possibilidade dos indivíduos de escolherem expressões culturais.Ninguém poderá invocar as disposições da presente Convenção para atentar contra os direitos do homem e as liberdades fundamentais consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e garantidos pelo direito internacional, ou para limitar o âmbito de sua aplicação.”
O reconhecimento da realização do intercâmbio entre as diversas sociedades como solução ao impasse entre respeito à diversidade cultural e aplicabilidade dos Direitos Humanos, foi também abordado pela UNESCO; o que se verifica na citação abaixo que encerra este subitem: “Face ao atual contexto de globalização mundial, é cada vez mais necessário e urgente que as sociedades e culturas vivam um clima de entendimento e respeito mútuo, possível apenas através do conhecimento e do diálogo com o Outro. Só assim será possível manter a paz e a harmonia mundiais.”
2.2.II - A PROPOSTA DE POSTURA A SER ADOTADA
Considerando os estudos anteriormente realizados, tem-se que as normas morais inscritas em acordos internacionais de Direitos Humanos não podem ser ignoradas pelo país quando já promulgadas. Em que pese o Estado ainda não tenha sido punido internacionalmente, em relação a sua postura omissiva, nada obsta que isso ocorra.
Caso, portanto, não seja a intenção do Brasil denunciar os tratados, dos quais é signatário, que estabelecem normas de proteção à vida, deve o Governo elaborar Programas de promoção do diálogo intercultural, para que se estabeleçam comunidades de comunicação e argumentação no intuito de se por fim às práticas infanticidas, através de argumentos legítimos, posto que, encontrados dentro das próprias sociedades indígenas.
Neste sentido leciona Roberto Cardoso: “(...) o encontro entre uma equipe de indigenistas (formada por antropólogos, técnicos e administradores) e lideranças indígenas, consistiria uma comunidade real de comunicação, no interior da qual se daria o diálogo tendente a gerar (...) um acordo intersubjetivo em torno de regras mínimas suscetíveis de assegurar um fluxo recíproco de idéias formuladas pelas partes.” ( CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000.)
Os Programas devem ter como ideal a promoção do encontro entre as culturas, mas não a invasão de uma à outra, já que posturas tomadas por apenas uma das partes interlocutoras não contribuiriam para soluções justas aos conflitos étnicos, podendo, em muitos casos, acarretar a impossibilidade de aplicação daquelas no plano factual.
Como exemplo da tentativa de se iniciarem mudanças quanto à postura do Estado, há em tramitação no Congresso o Projeto de Lei n.º 1057, denominado Muwaji, que dispõe sobre o combate às práticas infanticidas das tribos indígenas.
Menciona o Projeto o dever de qualquer cidadão em denunciar a ocorrência de situações de risco de morte das crianças indígenas, sob pena de se responsabilizar pelo crime de omissão de socorro, em conformidade com a lei penal vigente. Insta ressaltar, entretanto, que, embora o art.4º não faça distinção quando se refere a “todos” – incluindo, portanto, os índios – obviamente, estes não incorrerão na pena (critérios de tratamento jurídico penal do índio).
A importância das denúncias consiste no conhecimento pelas autoridades competentes da existência da prática do “infanticídio” em determinada sociedade indígena, para que se inicie o trabalho de diálogo proposto.
Com caráter mais polêmico determina o art. 6 do mesmo Projeto: “Art. 6º. Constatada a disposição dos genitores ou do grupo em persistirem na prática tradicional nociva, é dever das autoridades judiciais competentes promover a retirada provisória da criança e/ou dos seus genitores do convívio do respectivo grupo e determinar a sua colocação em abrigos mantidos por entidades governamentais e não governamentais,devidamente registradas nos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente. É, outrossim, dever das mesmas autoridades gestionar, no sentido de demovê-los, sempre por meio do diálogo, da persistência nas citadas práticas, até o esgotamento de todas as possibilidades ao seu alcance.”
Parágrafo único. “Frustradas as gestões acima, deverá a criança ser encaminhada às autoridades judiciárias competentes para fins de inclusão no programa de adoção, como medida de preservar seu direito fundamental à vida e à integridade físico-psíquica.”
Quanto a tal dispositivo cabe análise mais cuidadosa. Primeiramente, há que se fazer mudança em relação ao termo “prática tradicional nociva”, isto porque, apesar de o infanticídio ser de fato uma prática tradicional, não pode ser caracterizado como “nocivo”, por demonstrar grau de intolerância, já que tal conceito vem arreigado de valores ocidentais; afinal, até que uma dada tribo repense a prática, ela é tida por benéfica àquela.
Em segunda análise, o texto prevê a retirada da criança do convívio do respectivo grupo. Verifica-se que não há nenhum equívoco aqui, se considerado que, embora não se possa exigir que os membros da tribo não pratiquem o homicídio de suas crianças, é exigível que a autoridade competente adote medida urgente para evitar que o crime (ainda que não punível) se consuma. Inclusive a retirada urgente da criança poderá ser efetuada por qualquer indivíduo, caso não lhe ofereça risco. É o que determina o art. 135 do Códio Penal: “Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública”. (BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.)
Entretanto, constata-se que a previsão da retirada dos genitores, da criança em risco, padece de inconstitucionalidade, vez que, fere o direito de liberdade de locomoção do índio. Tal exílio corresponderia, de maneira mascarada, à prisão em flagrante, que ao caso é incabível, já que não se pode exigir conduta diversa dos genitores, que estão estritamente acatando suas normas internas, não havendo, portanto, a capacidade daqueles de atingir a consciência da ilicitude do fato frente as circunstâncias nas quais se encontram.
Observa-se que, em relação ao disposto no parágrafo primeiro do referido artigo, há respaldo legal, se considerado o Decreto n° 99.710, de 21 de novembro de 1990, que promulgou a Convenção sobre os Direitos da Criança. Assim determina no seu art. 20:
“1. As crianças privadas temporária ou permanentemente do seu meio familiar, ou cujo interesse maior exija que não permaneçam nesse meio, terão direito à proteção e assistência especiais do Estado.
2. Os Estados Partes garantirão, de acordo com suas leis nacionais, cuidados alternativos para essas crianças.
3. Esses cuidados poderiam incluir, inter alia, a colocação em lares de adoção, a kafalah do direito islâmico, a adoção ou, caso necessário, a colocação em instituições adequadas de proteção para as crianças. Ao serem consideradas as soluções, deve-se dar especial atenção à origem étnica, religiosa, cultural e lingüística da criança, bem como à conveniência da continuidade de sua educação.” (BRASIL. Decreto n° 99.710, de 21 de novembro de 1990. Convenção sobre os Direitos da Criança.)
Esta privação temporária ou permanente de convívio deve ser, também, incluída no diálogo interétnico, como proposta alternativa, a ser apresentada às sociedades indígenas, no caso da persistência de rejeição de determinadas crianças. É inclusive, objeto do projeto “Casa do Kunumim Xinguano”, idealizado por representantes indígenas.4
Embora contenha falhas, conclui-se que a proposta do deputado Henrique Afonso (PT/AC) foi salutar para a abertura de um debate legislativo acerca do conflito étnico-axiológico, bem com trouxe uma maior visibilidade nacional àquele.
A necessidade encontrada é a de que comecem a emergir, de fato, ações governamentais para a efetivação do intercâmbio cultural, para tanto, deve ser superada, definitivamente, a idéia de que o reflexo da culpa, carregada pela dizimação dos povos autóctones em período colombiano, seja suficiente para legitimar o Estado a se “redimir” com a adoção da atual política indigenista, que, ao optar pela omissão, eleva a cultura a ponto de calar os gritos de socorro dos próprios sujeitos aos quais se deveria destinar a proteção. Neste sentido lembra Roberto Cardoso: “é justamente na atualização de uma ética da responsabilidade que vamos deparar-nos com os maiores obstáculos a um bom encaminhamento de uma política pública no âmbito dos Estados nacionais que queiram comprometer-se com a moralidade de seus atos. Estamos agora na meso-esfera: aquela que, segundo Groenewold, é a da política nacional, orientada pelo que se costuma denominar "razões de Estado", vistas geralmente como moralmente neutras! Temos visto que em nome dessas razões de Estado o apartheid há décadas faz suas vítimas. No Brasil, o descaso governamental no que diz respeito a atender às demandas indígenas, dando a impressão de ter assumido como próprias as razões de empresários influentes nas cúpulas administrativas, também tem vitimado grande número de etnias indígenas que a história haverá de contabilizar. E dentro da singularidade do caso brasileiro, será sempre nessa meso-esfera que o discurso indigenista que se pretenda ético vai encontrar seu espaço. Um espaço onde os valores morais particularistas da micro-esfera inerentes às etnias indígenas sempre poderão ser balanceados com os valores universalistas da macro-esfera, na forma como eles se incorporam na Carta dos Direitos Humanos. E só quando a ética da responsabilidade ocupar efetivamente esse espaço da meso-esfera, onde, a rigor, não apenas o Estado-nação mas todos nós enquanto cidadãos estamos inseridos, é que poderemos esperar que um dia a moralidade passe a ser o fundamento de políticas indigenistas públicas e possa ser bem mais que um mero tópico de investigação e reflexão.”5
Estabelecer o auto-questionamento interno, para reavaliação de valores, é desejo dos próprios sujeitos das sociedades indígenas, que apesar de prezarem pelo respeito as suas respectivas culturas, têm a ciência de que estas não são imutáveis, e que o intuito de emancipação cultural, proposto por um diálogo justo, é benéfico para a própria perpetuação de suas sociedades.
Confirmando tal afirmativa e encerrando este capitulo, lê-se a declaração do líder indígena, Eli Ticuna: “Prefiro morrer do que me vender a ideologias de fora que prejudicam o bem-estar do meu povo. O índio é um ser pensante, não está morto ou estático no tempo. É ele o sujeito, arquiteto e responsável construtor de sua cultura. Toda cultura é dinâmica e está sujeita a constantes mudanças, como resposta às situações do presente. Pregar a importância da cultura indígena, somente na perspectiva estática, em desequilíbrio com a realidade dinâmica é prejudicial para a sobrevivência das sociedades indígenas. Faz-se necessário valorizar a pessoa do indígena, acima da cultura.”(SUZUKI. 2007).