Dos cerca de setenta mil feitos recebidos, anualmente, pelo Supremo Tribunal Federal, todos sendo trabalhosos, poucos desafiam um processo de deliberação mais delicado. A imensa maioria, algo como mais de noventa por cento, constituem casos que, em princípio, podem ser solucionados mediante a aplicação de precedentes, da jurisprudência reiterada, ou mesmo através do manejo adequado dos recursos hermenêuticos convencionais. Aqueles complexos, todavia, supondo questões difíceis diante da ausência de parâmetros claros ou de precedentes aproveitáveis ou mesmo da jurisprudência reiterada, impactam poderosamente a vida em sociedade. Nestes escassos e importantíssimos casos, a Suprema Corte desnuda-se inteiramente.
Ora, em tais circunstâncias, o Estado de Direito reclama da Corte, além da decisão solvendo a questão, a produção de parâmetros para auxiliar as demais instâncias judiciais no processo racional de solução de feitos análogos, o que não exclui, ao contrário exige, a apreciação simultânea de outros dados decorrentes da conjuntura política, do diagnóstico do momento histórico, da densidade deliberativa à qual a matéria foi exposta (processo legislativo), considerada também, fazendo uso das lições de Dworkin, a coerência do romance em cadeia.
Tenho defendido, em inúmeros escritos, a necessidade, em nosso país, do manejo de uma dogmática constitucional emancipatória. Poderiam pensar alguns que um discurso com essa natureza, intransigente com a defesa da dignidade da pessoa humana, implica, no universo da prestação jurisdicional, prática em descompasso com as exigências democráticas, porque autorizadora de um suposto ativismo judicial. Nada mais falso. É verdade que esta dogmática preocupa-se com a efetiva realização dos comandos constitucionais, em particular aqueles tratando dos direitos fundamentais. E, nesse passo, acredita no importante papel a ser desenvolvido pelo Judiciário brasileiro, sobretudo no exercício da jurisdição constitucional. Nem por isso se propõe um papel ao juiz que esteja além do desenhado pela arquitetônica da organização dos poderes, presente na Constituição ou que autorize indevida compressão do campo de escolhas legítimas do legislador, a partir de um processo aberto de deliberação com repercussão na arena pública.
Ora, o Judiciário ocupado com as promessas constitucionais não será nem ativista, nem deferente, com as escolhas do legislador. Operará, conforme o caso, mas sempre a partir de bases racionais com sustentação na Lei Fundamental, ora um controle mais forte, ora um controle mais débil do ato (omissivo ou comissivo) impugnado. Transitará entre a auto-contenção, prestando deferência à escolha do legislador, e o controle mais forte (ativismo) para a proteção deste ou daquele direito. Em qualquer caso, porém, deverá adotar postura vigilante a respeito dos postulados da democracia (que implicam autogoverno e definição de escolhas prioritariamente através do processo público de deliberação).
Há momentos, como aqueles que envolvem a defesa de minorias contra atos discriminatórios, a proteção da liberdade de manifestação e de opinião, a proteção do mínimo existencial, que são verdadeiras condições para o exercício da democracia, exigentes de um controle forte do Judiciário. Há outros, ao contrário, que desafiam, prima facie, de uma postura de auto-contenção, de deferência para com a decisão do legislador. São necessários argumentos muito robustos para justificar, em casos assim, uma ação distinta do órgão judicial. Cite-se, por exemplo, as questões difíceis que supõem interpretação de cláusulas constitucionais (abertas) autorizadoras de concepções distintas e razoáveis num ambiente de pluralismo moral. Aqui, em princípio, a escolha do legislador, tomada a partir de um processo público de deliberação, não deve ser substituída pela do juiz. Nesse caso, ausentes robustas razões a justificar a substituição, ocorrendo esta, manifestar-se-ia hipótese contrastante com a experiência democrática.
Não se trata, para o juiz, portanto, de agir contra a democracia, mas, antes, para a democracia. Quer-se uma sociedade de livres e iguais, não uma sociedade inadequadamente paternalista, onde o juiz possa agir como uma espécie de pai caridoso e docemente autoritário. Dito isso, é necessário reiterar que, diante de uma Constituição analítica como a nossa, muitas questões que antes remanesciam no exclusivo campo da política são, agora, levadas ao Judiciário em função de escolha operada pelo Constituinte. Todavia, judicialização não implica necessariamente ativismo.
Penso que, entre nós, é defensável o manejo de um controle de constitucionalidade mais forte (escrutínio mais estrito), em matérias que envolvam: I) liberdade de opinião; II) proteção do processo democrático (regularidade do processo legislativo e controle do poder político ou econômico no processo eleitoral); III) proteção de minorias e grupos vulneráveis; IV) direitos sociais, em particular os prestacionais, nos casos de eficácia originária ou diante da defesa do mínimo existencial (que não se confunde com o mínimo vital), verdadeiras condições para a satisfação da ideia de dignidade da pessoa humana.
A jurisdição constitucional guarda os valores substantivos necessários para a legítima deliberação pública. Porém, isso não é suficiente. Tais valores substantivos devem ser interpretados à luz do devido processo legal, o que supõe manifestação direta ou indireta de todos os possíveis afetados pela decisão, por isso a importância da preservação de espaços deliberativos e instituições que transformem as expressões plurais advindas da sociedade em razões para decidir. Nesse compasso, as audiências públicas e os amici curiae, por exemplo, qualificam o processo de deliberação e, por derivação, de adjudicação, merecendo acolhida generosa do Tribunal.
Há situações, porém, que, em princípio, demandam da Suprema Corte um controle menos exigente, supondo alguma dose de auto-contenção ou de deferência para com as razões ou decisões do legislador. É o caso I) das políticas públicas tratando de direitos sociais naquilo que se reporta à eficácia derivada ou que exceda largamente as fronteiras do mínimo existencial; II) das questões eminentemente políticas, considerando sempre que tais questões não constituem cláusula imunizadora (Há, afinal, necessidade de respeito à dimensão política da vida e à liberdade de conformação legislativa em relação àquilo que não é obrigatório constitucionalmente. Seria forçoso justificar a interferência do Judiciário em decisões típicas dos outros Poderes, como a escolha de Ministros ou o veto presidencial a projeto de lei, por exemplo). Também, III) nos resultados plebiscitários, referendários, envolvendo leis de iniciativa popular, momentos constituintes e, mesmo, leis novas que resultem de um processo regular, robusto e aberto de deliberação, deve-se, como regra, prestar deferência ao legislador. Não se trata aqui de admitir uma postura procedimentalista. Trata-se de, no processo argumentativo e deliberativo levado a termo pelo juiz constitucional, considerar, com peso adequado, as suas razões. Nesses casos há uma presunção forte de constitucionalidade das leis, a qual pode, não obstante, ser afastada por outras razões, mesmo não populares, mas determinantes. É sempre bom lembrar que o juiz constitucional figura como um guardião dos princípios permanentes da comunidade política constitucionalizada.
Por fim, deve-se reconhecer a existência de um conjunto de questões difíceis que, quando judicializadas, em poucas ocasiões serão resolvidas de modo satisfatório. Temas que envolvem o direito à vida, eutanásia, aborto, por exemplo, colocam à prova, como questões limites, os fundamentos de quaisquer teorias que procurem oferecer solução definitiva ao problema da tensão entre o controle de constitucionalidade e o governo da maioria. Cuida-se, aqui, de problemas que indicam a impossibilidade da formulação de consensos, já que supõem apresentação de razões que podem ser utilizadas na defesa de distintos pontos de vista com idêntico suporte constitucional. Neste terreno, todo cuidado é pouco.
Percebe-se que o Supremo Tribunal Federal tem mudado. Essa nova feição, entretanto, ainda está em construção. Ora, o novo papel precisa ser compreendido e, mais, discutido, com humildade, abertura e raciocínio crítico, lembrando, sempre, que o Supremo Tribunal Federal não está fora do jogo político. Como em qualquer ambiente democrático, as decisões judiciais, sendo corretas ou não, devem ser cumpridas. Isso não quer dizer que não possam ser, na arena pública, com o devido respeito e com bons argumentos, questionadas. Afinal, em uma sociedade livre, aberta e plural, o argumento vencido de ontem pode ser o vendedor de amanhã.