6. De lege ferenda: atualização das normas sobre infrações e sanções aplicáveis às concessionárias dos serviços de televisão por radiodifusão do setor privado, nos aspectos de produção de conteúdo por terceiros e respectiva veiculação
A Lei n. 4.117/1962, como referido, não proíbe a concessionária do serviço de televisão por radiodifusão de veicular conteúdo da programação televisiva coproduzido em parceria com terceiros. A veiculação de conteúdo autoral de terceiros não substancia infração tipificada na Lei n. 4.117/1962, razão pela qual nenhuma penalidade pode ser aplicada à empresa concessionária do serviço de televisão por radiodifusão por esta conduta. Com efeito, enquanto não alterada a referida lei da radiodifusão, para fins de tipificação da veiculação de programa produzido por terceiros como infração, não é admissível a sua interpretação extensiva para sancionar a concessionária. Também, o Judiciário não pode criar um limite para a concessionária de televisão quanto à veiculação de programa de terceiros, sem a previsão legal da infração.[77]
De lege ferenda, a questão sobre a veiculação pela concessionária de televisão por radiodifusão de conteúdo autoral coproduzido por terceiros pode ser modificada no âmbito legal. Daí porque é recomendável o debate deste tema no âmbito do Congresso Nacional, o qual detém a competência legislativa para modificar a legislação dos serviços de televisão por radiodifusão.
Compete ao Congresso Nacional dispor sobre a modificação da lei aplicável sobre o setor privado de televisão por radiodifusão, para o fim de restringir, proibir ou permitir a prática de produção, programação e a veiculação pela concessionária de televisão por radiodifusão de conteúdo coproduzido por terceiros.[78] Caso o Congresso entenda que a ausência de norma que proíba a veiculação pela concessionária de conteúdo coproduzido por terceiros, na Lei n. 4.117/1962, constitui problema, poderá alterar o tratamento legislativo da matéria.
É da competência do Congresso Nacional deliberar se adotará a seguinte tese como infração praticada por concessionária do serviço de televisão por radiodifusão: “Veicular programa de conteúdo produzido por terceiros, acima do limite legal”. Igualmente, caberá ao Congresso Nacional estipular a sanção específica para esta espécie de infração: “Pena: Multa no valor de X”. Ao que parece, a aplicação de uma multa em valor substancial é mais eficaz do que a aplicação das penalidades de cassação ou suspensão da emissora.
A eventual iniciativa que, tratando do limite à produção e à veiculação de programas coproduzidos por terceiros, modificar a Lei n. 4.117/1962 há de respeitar o núcleo essencial das liberdades de radiodifusão, de comunicação social e de produção e programação das emissoras de televisão. Não pode, por isso, a lei federal invadir o núcleo do direito fundamental à escolha dos conteúdos dos programas televisivos pelas emissoras. Daí a necessidade de equilíbrio entre a liberdade de radiodifusão e liberdade de programação das emissoras de televisão, com o estabelecimento do limite à produção e à veiculação de programas televisivos por terceiros. Além disso, a proposta legislativa deve dispor de modo preciso, claro e determinado, sob pena de ofensa aos princípios da estrita legalidade, da segurança jurídica e do devido processo legal.
Atualmente, conforme a legislação do setor de radiodifusão, o teto máximo da multa aplicável às concessionárias dos serviços de televisão por radiodifusão é pequeno.[79] É fundamental que as sanções sejam proporcionais e adequadas à natureza da infração, imputada à concessionária, nem aquém da gravidade do ilícito administrativo (que sequer inibam a conduta ilícita da concessionária), nem além do necessário para restabelecer o cumprimento da legalidade no setor da radiodifusão.[80]
Por outro lado, de acordo com a legislação da radiodifusão em vigor, a competência para aplicar a multa à concessionária do serviço de televisão por radiodifusão é do Ministério das Comunicações. Diversamente, a prática regulatória em outros setores de serviços regulados, as sanções pelo descumprimento da legislação setorial são aplicadas por uma agência reguladora independente, como é o caso da regulação dos serviços de telecomunicações e a aplicação das penalidades pela Anatel. Daí porque, de lege ferenda, a competência para a aplicação da multa à concessionária do serviço de televisão por radiodifusão deveria ser conferida a uma agência reguladora, eventualmente a à própria Anatel.[81]
7. Conselho de Comunicação Social: manifestação sobre eventual iniciativa de atualização das infrações e penalidades
Eventual iniciativa de lei atualizando a legislação da radiodifusão com a previsão e determinação de infrações e penalidades aplicáveis às concessionárias do serviço de televisão por radiodifusão em virtude de excesso de conteúdo produzido por terceiros reclamará a manifestação do Conselho da Comunicação Social.[82]
A Constituição, no capítulo da Comunicação Social, instituiu o Conselho de Comunicação Social (art. 224), na qualidade de órgão auxiliar do Congresso Nacional nos temas relacionados à Comunicação Social. Trata-se, portanto, de órgão integrante do Poder Legislativo, com funções de aconselhamento em matérias da Comunicação Social. Nos termos da Lei n. 8.389/1991, o Conselho de Comunicação Social tem competências para realizar estudos, pareceres, recomendações e outras solicitações encaminhadas pelo Congresso Nacional, relacionadas ao capítulo da Comunicação Social.[83] Sua atuação incide sobre temas relacionados aos meios de comunicação social: serviços de televisão e rádio por radiodifusão, serviços de TV por assinatura, imprensa, diversões e espetáculos públicos.[84] É composto por 13 (treze) pessoas representantes das empresas de rádio, televisão, imprensa escrita, categorias dos jornalistas, radialistas, artistas, cinema e vídeo e da sociedade civil, e um engenheiro com notório conhecimento na comunicação social.[85] Os membros do Conselho de Comunicação Social e respectivos suplentes são eleitos em sessão conjunta do Congresso Nacional, para o exercício de mandato de dois anos, sendo permitida uma recondução.[86]
Especialmente, na forma da Lei n. 8.389/1991, o Conselho de Comunicação Social tem competências para, entre outras questões, opinar sobre projetos de lei relacionados à: liberdade de manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação, produção e programação das emissoras de rádio e televisão, finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas da programação das emissoras de rádio e televisão, promoção da cultura nacional e regional, e estímulo à produção independente e à regionalização da produção cultural, artística e jornalística, monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação social,[87] complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal de radiodifusão, defesa da pessoa e da família de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto na Constituição Federal, propriedade de empresa de radiodifusão sonora e de sons e imagens, outorga e renovação de concessão, permissão e autorização de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, legislação complementar quanto aos dispositivos constitucionais que se referem à comunicação social.[88]
O Conselho de Comunicação Social não tem competência legislativa, nos termos da Constituição e da lei de sua criação. Os estudos, pareceres, recomendações e outras solicitações preparados pelo Conselho servem apenas para subsidiar os trabalhos do Congresso Nacional no setor da Comunicação Social. Trata-se de competência de natureza consultiva e auxiliar para o Poder Legislativo, no âmbito do processo legislativo e no âmbito do processo de outorga, renovação e não-renovação das concessões, bem como no processo de fiscalização dos serviços de televisão por radiodifusão.[89] O Conselho de Comunicação Social não dispõe de competência legislativa, regulatória e fiscalizatória sobre os serviços de televisão por radiodifusão, nem de competência para outorgar os serviços de radiodifusão.
Não obstante, o Congresso Nacional deve considerar, no processo legislativo e nos debates parlamentares, as opiniões manifestadas pelo Conselho de Comunicação Social. Vale dizer, as considerações apresentadas pelo Conselho de Comunicação Social devem integrar, formalmente, o trâmite do processo legislativo, até por força do princípio do devido processo legal. Por outro lado, no âmbito das outorgas, renovações ou não renovações das concessões de radiodifusão, as opiniões do Conselho de Comunicação Social constituem requisito de validade das decisões do Congresso Nacional.[90]
Os pareceres do Conselho de Comunicação Social, embora não vinculem o Congresso Nacional, possuem valor jurídico na medida em que servem como diretriz à atuação parlamentar, seja no processo legislativo, seja nos procedimentos de outorga, renovação ou não renovação das concessões de radiodifusão.
O Conselho de Comunicação Social tem relevante papel definido pela Constituição, o qual está detalhado na Lei n. 8.389/1991. Espera-se que o Conselho de Comunicação Social seja ainda mais efetivo no cumprimento de sua missão constitucional, contribuindo para o aprimoramento do processo legislativo nos temas da comunicação social, bem como para a melhor fiscalização das outorgas e renovações das concessões dos serviços de radiodifusão. Sua missão constitucional consiste na contribuição para a efetivação da democracia comunicativa no País, com as garantias de acesso à pluralidade e à diversidade dos meios de comunicação social, e da concretização dos direitos à liberdade de expressão, informação e comunicação social, e direito à cultura brasileira.[91]
8. Conclusão
Por conseguinte, percebe-se que a concessionária de serviço de televisão por radiodifusão está submetida à normativa da Lei Federal n. 4.117/1962 (radiodifusão e sons e imagens). Desse modo, não são aplicáveis à concessionária as penalidades previstas nas Leis Federais n. 8.987/1995, 8.666/1993 e 12.846/2013. As sanções aplicáveis nesse regime setorial enquadram-se nas disposições da Lei n. 4.117/1962 e do Decreto n. 52.795/1963.
Entende-se que a veiculação de programas de televisão, mesmo com eventual conteúdo cultural-religioso, ainda que em contrato de coprodução, não caracteriza infração à Lei n. 4.117/1962 (arts. 34, 38, alínea "d" e 124) ou ao Decreto n. 52.795/1963 (arts. 3, 10, 28, item 12, alínea “d”). No mesmo sentido, o termo “publicidade comercial”, previsto no art. 124 da Lei n. 4.117/1962 e no art. 28, item 12, alínea "d", do Decreto n. 52.795/1963, está associado à veiculação de conteúdo publicitário pela televisão por radiodifusão, caracterizado pela difusão de mensagens e informações sobre produtos e serviços, para estimular a oferta, a venda e o consumo de bens econômicos para os consumidores e o público em geral. Tal definição não alcança os programas de televisão produzidos por terceiros ou veiculados em regime de coprodução. Nestes termos, a concessionária pode veicular conteúdo coproduzido com terceiros, visto que a normativa setorial do serviço de radiodifusão por televisão não restringe a possibilidade, o que não caracteriza, por isso, hipótese de transferência irregular da concessão do serviço.
O regime jurídico do setor de radiodifusão por televisão, particularmente no que concerne à veiculação de programas coproduzidos por terceiros, precisa, parece claro, ser atualizado. O Congresso Nacional não pode se furtar a essa tarefa. A discussão no Parlamento dar-se-ia, por exigência constitucional, com o auxílio do Conselho de Comunicação Social e, obviamente, de toda a sociedade. Poderá o Legislador, nesse caso, estabelecer condições para a veiculação de programas coproduzidos ou produzidos por terceiros, inclusive limites máximos no quadro de programação e, sendo o caso, definir percentuais mais generosos de programação dedicados aos conteúdos regionais e noticiosos. Não poderá, entretanto, o Congresso Nacional, uma vez estabelecidos os limites por categoria de programação, censurar conteúdos, cuja escolha compõe a esfera de liberdade da concessionária, uma vez satisfeitos os parâmetros constitucionais.
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