4. DEPOIMENTO COM REDUÇÃO DE DANOS: BREVE HISTÓRICO E CONCEITOS.
O ponto de partida para o surgimento da técnica do depoimento sem dano, de acordo com Santos e Gonçalves, foi a chamada Câmara Gesell, que poderia ser conceituada como:
um dispositivo criado pelo psicólogo norte-americano Arnold Gesell (1880-1961) para o estudo das etapas do desenvolvimento infantil. Constituída por duas salas divididas por um espelho unidirecional, que permite visualizar a partir de um lado o que acontece no outro, mas não vice-versa, a Câmara Gesell passou a gozar de reconhecimento constitucional no que concerne à tomada de depoimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sexual (2008, p. 15).
Ainda para aqueles autores, as práticas de tomada de depoimento com redução de danos indicam que estas são muito recentes na história da humanidade. As mais antigas foram registradas em Israel, Canadá e Estados Unidos e datam da década de 1980. Prosseguindo:
é interessante observar que os países pioneiros iniciaram a busca de métodos alternativos de não-revitimização de crianças e adolescentes vítimas de violência (abuso e exploração sexual) antes mesmo da aprovação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, um marco legal impulsionador de ações de defesa dos direitos da criança no mundo (2008, p. 34-35).
Depois, a nova prática se espalhou por outros continentes. Cézar (2010) menciona que a África do Sul adotou o projeto em 1991, através do Decreto 135 de Emenda à Lei Criminal. A França o instituiu em 1998, enquanto a Argentina, através da Lei no 25.852, promulgada pelo Congresso Nacional, em 04 de dezembro de 2003 e sancionada em 06 de janeiro de 2004, também implementou a sistemática.
No Brasil o depoimento sem dano, segundo Fávero (2010), teve início em 2003, em Porto Alegre. Cezar (2007, apud FÁVERO, 2010, p. 186), idealizador do projeto na capital gaúcha, relata que:
ao assumir a magistratura em vara criminal, deparava com dificuldades para inquirições em juízo” de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, sendo que as informações prestadas na fase policial não se confirmavam em juízo, o que criava situações de constrangimento e desconforto para todos, principalmente às crianças e aos adolescentes, e as ações terminavam, na sua maior parte, sendo julgadas improcedentes, com base na insuficiência de provas.
Ao falar sobre o projeto depoimento sem dano em sua dissertação, Santos (2010) diz que o projeto se propõe a observar todas as garantias processuais à criança inquirida em juízo, por meio da adoção de procedimentos especiais que a respeite em sua condição de pessoa em desenvolvimento. Tais procedimentos consistem em ouvir a acriança em recinto diverso das salas de audiência, ambiente inadequado para uma pessoa que terá de falar sobre tema constrangedor, como é a violência ou a exploração sexual.
Sobre o que seja o Depoimento com Redução de Danos, nada melhor que o relato do desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Dr. José Antonio Daltoé Cézar (2007 apud TABAJASKI et all, 2010, p. 64), como já dito alhures, autor do projeto pioneiro que iniciou o depoimento sem dano no Brasil, na 1ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre que, em síntese, fala:
trata-se de, na ocasião dos depoimentos das crianças e dos adolescentes vítimas de violência sexual, retirá-las do ambiente formal da sala de audiências e transferi-las para uma sala especialmente projetada para esse fim, devendo estar devidamente ligada , por vídeo e áudio, ao local onde se encontram o magistrado, promotor de justiça, advogado, réu e serventuários da justiça, os quais também podem interagir durante o depoimento. Assim, é possível realizar esses depoimentos de forma mais tranquila e profissional, em um ambiente mais receptivo e com a intervenção de técnicos previamente preparados para tal tarefa. Dessa forma, diminuem-se as chances de más práticas de entrevista, tais como perguntas inapropriadas, impertinentes, agressivas e desconectadas não só do objeto do processo, mas principalmente das condições pessoais do depoente.
O depoimento, que é gravado, na íntegra, em áudio e vídeo (em formato digital), é degravado e juntado aos autos. Além da degravação, é feita uma cópia da entrevista em disco, a qual é juntada na contracapa do processo [...].
Assim, infere-se que o objetivo precípuo do depoimento com redução de danos é reduzir os danos e sofrimentos psicológicos às crianças vítimas de violência sexual que precisam ser ouvidas em juízo. No dizer de Potter (2010), o depoimento sem dano busca adequar os princípios do processo penal, em especial o contraditório e ampla defesa, com os princípios da dignidade da pessoa humana e absoluta prioridade ao atendimento dos direitos da criança e do adolescente.
Wolf, analisando o trabalho desenvolvido na 1ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, observou que o depoimento de crianças e adolescentes se desenvolve em três momentos:
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Acolhimento: quando da intimação para a criança ou adolescente comparecer à audiência é solicitado que se apresente 30 minutos antes do início da mesma. Essa providência evita o encontro com réu e possibilita um contato com o profissional, prévio à audiência. Nesse momento, junto com o adulto acompanhante, é realizado esclarecimento sobre o objetivo dessa convocação e lhes são explicados os procedimentos da audiência e o funcionamento dos equipamentos eletrônicos; como o réu poderá estar presente, é esclarecido à criança que lhe será perguntado, no início da oitiva, sobre a permanência do mesmo na sala de audiências, que poderá optar pela sua permanência;
Depoimento propriamente dito: o depoimento inicia já com o equipamento eletrônico ligado, quando a assistente social ou psicóloga solicita que a criança/adolescente se manifeste sobre a permanência do réu na sala de audiências. É-lhe explicado que poderá deixar de responder perguntas ou pedir as explicações que necessitar. Na primeira parte do depoimento são realizadas, pela profissional, perguntas gerais e abertas sobre a situação da criança e depois lhe é solicitado seu relato sobre o fato ocorrido. Nesse momento pode haver a interferência do juiz, mas o mais usual tem sido a profissional esgotar suas perguntas, que estão baseadas na leitura prévia do processo e nas requisições feitas antecipadamente pelo juiz e, só após, o mesmo complementa suas questões, estendendo também a possibilidade de questionamento ao representante do Ministério Público e ao defensor do réu.
Retorno: ao final do depoimento e já com os equipamentos desligados, é possibilitada à criança ou ao adolescente falar sobre a audiência; é repassado com seu acompanhante algum aspecto relevante que tenha sido observado e que possa interferir no seu bem-estar futuro, sendo também verificado como estão sendo vivenciadas as decorrências do fato que originou o processo. Caso seja considerado necessário, são realizados encaminhamentos para avaliação e acompanhamento na rede de saúde (2010, p. 123).
Essas fases e a inquirição em si são realizadas por uma equipe multidisciplinar, formada geralmente por um assistente social e por um psicólogo, que realizam as mesmas atividades na audiência. Para Wolf (2010), o foco da intervenção deve estar na atividade em si e não na formação dos profissionais. O importante é que tanto assistentes sociais como psicólogos, possuam as competências profissionais que são requeridas para essa abordagem.
Portanto, esse tipo de produção de provas não tem outro objetivo senão assegurar os princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, além de efetivar os direitos de crianças e adolescentes, reduzindo o medo, ansiedade e valorizando o testemunho da criança. É uma metodologia de trabalho técnico que, além de aplicar a lei, mostra-se como alternativa viável e capaz de substituir a desatualizada e ultrapassada prática processual vigente, no que tange aos direitos fundamentais dos impúberes.
4.1. DEPOIMENTO COM REDUÇÃO DE DANOS FRENTE AO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO.
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, como já citado acima, dispõe em seu art. 12:
Art. 12. Os Estados partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade das crianças.
Mesmo tendo sido recepcionada pelo Brasil, o dispositivo, na prática, ainda carece de regulamentação. Isso porque, segundo Fávero (2010, p. 184), “as normas para ouvir os adultos são as mesmas utilizadas para inquirir crianças e adolescentes”. É o que se infere da leitura do art. 201 do Decreto-Lei no 3.689/1941, que institui o Código de Processo Penal: “sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações”.
Bem, se não há dispositivo regulamentando, com base em quê se procede a oitiva de crianças e adolescentes, na abordagem depoimento com redução de danos? A resposta está no art. 217 do Código de Processo Penal, que diz:
Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor.
Fávero (2010) cita os artigos 150 e 151 do Estatuto da Criança e do Adolescente como dispositivos também importantes, pois fundamentam a adoção da equipe técnica, chamada no projeto depoimento com redução de danos de equipe multidisciplinar. Os dispositivos, respectivamente, dizem:
Art. 150. Cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, prever recursos para manutenção de equipe interprofissional, destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude.
Art. 151. Compete à equipe interprofissional dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.
Diante da ausência de normas específicas e após a implementação, com sucesso, do projeto depoimento com redução de danos em Porto Alegre, é que começaram a aparecer propostas legislativas com o intuito de alterar alguns dispositivos tanto do Estatuto da Criança e do Adolescente quanto do Código de Processo Penal. Como exemplo, temos os Projetos de Lei no 4.126/2004 e no 5.329/2005.
De acordo com o PL no 5.329/2005, que altera dispositivos processuais penais sobre oitiva da vítima, em caso de crimes cometidos contra criança ou adolescente, de autoria do Deputado Paulo Pimenta, seria acrescentado mais dois parágrafos ao artigo 201 do Decreto-Lei no 3.689/1941. Esses parágrafos teriam a seguinte redação:
A oitiva da vítima, da Criança ou Adolescente será dispensada se já houver nos autos laudo de profissional qualificado na saúde mental ou equipe interprofissional integrada contendo a versão por ela narrada que demonstrem a existência do crime.
Quando a vítima for criança ou adolescente, sua oitiva será condicionada a um laudo elaborado por perito judiciário médico psiquiatra, psicólogo ou equipe interdisciplinar integrada afirmando suas condições favoráveis para prestar depoimento em audiência judicial.
Já o PL no 4.126/2004, que hoje tramita no Senado Federal, da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, prevendo a alteração de dispositivos da Lei no 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, é mais específico, pois traz à baila elementos do que já vem sendo praticado pelo projeto depoimento sem dano. A redação do art. 197-B ficaria da seguinte forma:
Na inquirição de criança e adolescente, vítima ou testemunha de delitos de que trata essa seção, adotar-se-á, preferencialmente, o seguinte procedimento: I – A inquirição será feita em recinto diverso da sala de audiências, especialmente projetada para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e adequados à idade e à etapa evolutiva do depoente; II – Os profissionais presentes À sala de audiências participarão da inquirição através de equipamentos de áudio e vídeo, ou de qualquer outro meio técnico disponível; III – A inquirição será intermediada por profissional devidamente designado pela autoridade judiciária, o qual transmitirá ao depoente as perguntas do juiz e das partes [...].
O projeto depoimento com redução de danos ainda é encarado como um projeto piloto, pois não existe legislação, ainda, tornando-o obrigatório. Por enquanto, têm-se alguns julgados favoráveis ao projeto e a Resolução no 33/2010, do Conselho Nacional de Justiça. Esta faz algumas recomendações importantes aos tribunais, dentre as quais destacamos a primeira: “a implantação de sistema de depoimento vídeogravado para as crianças e os adolescentes, o qual deverá ser realizado em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado para atuar nessa prática”.
4.2. DEPOIMENTO COM REDUÇÃO DE DANOS X PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA.
Questão bastante interessante é o debate no campo jurídico gerado em torno da escuta de crianças e adolescentes. Questiona-se se não estariam sendo afrontados os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, corolários de qualquer Estado que se queira denominar “democrático de direito”. Para Oliveira (2012), ampla defesa consiste na possibilidade do acusado usar de todos os meios lícitos para se esquivar das acusações que lhe são dirigidas, desde que não seja contrário à lei. Sobre o contraditório, prossegue:
O princípio basilar da sistemática processual estabelece que as partes devem ser ouvidas e ter oportunidade de se manifestar em igualdade de condições. O processo só atingirá seus fins se houver equilíbrio entre as partes. É conhecida a expressão paridade de armas, pela qual alguns autores se referem ao contraditório. Ela condena a ideia de que, no processo, as partes devem ter as mesmas oportunidades, não devendo uma ser mais “municiada” do que a outra. É o tratamento paritário dos sujeitos parciais da relação jurídica processual (2012, p. 29-30).
Como o depoimento com redução de danos ainda não está regulamentado, como já visto, não se deve olvidar que alguns cuidados devem ser tomados para que o ato não seja eivado de vícios que possam acarretar nulidades. De acordo com Cézar (2010, p. 82), “as comarcas onde já se encontra o projeto Depoimento Sem Dano instalado necessitam da anuência de todas as partes envolvidas no processo para que possa ele ser validado como prova judicial”.
A ideia central do contraditório passa pela ciência que as partes devem ter dos atos ou acontecimentos processuais. Destarte, cada parte deve ter a oportunidade de reagir ou não aos atos que não lhes sejam favoráveis. Nesse aspecto, Gomes diz:
Qualquer que seja o conteúdo conferido ao princípio do contraditório, não há qualquer relação com a temática do depoimento com redução de danos, que, como já visto, consiste em técnica especial de inquirição da vítima ou da testemunha menor, com a direta participação das partes interessadas (logo, com ciência e oportunidade de reação).
Assim, verifica-se que a metodologia não tem o condão de anular o ato processual que, no dizer de Bitencourt (2007), será válido desde que atenda determinadas exigências, como garantia de uma perfeita audição, visão e diálogo com a vítima na sala especial e os demais sujeitos que participam do processo, preservando-se as garantias processuais. Portanto, em se tratando da metodologia depoimento com redução de danos, não há que se falar em desrespeito aos preceitos constitucionais do contraditório e ampla defesa.
4.3. ENTRAVES À IMPLANTAÇÃO DO DEPOIMENTO COM REDUÇÃO DE DANOS.
Por ser uma metodologia relativamente nova no Brasil, a escuta de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual ainda gera inflamados debates na doutrina e jurisprudência. Todavia, esse, com toda certeza, não é o único grande entrave à implementação do projeto. De acordo com Cezar (2010), as discrepâncias já começam com a indagação sobre se acrianças e adolescentes devem ou não ser ouvidas em processos judiciais. Ora, como os crimes sexuais geralmente não deixam marcas, a inquirição da vítima é, em grande parte dos casos, a única prova a ser produzida. Logo, a inquirição da vítima é peça chave para um desfecho positivo do processo.
Gomes expressa, com maestria, as principais dificuldades enfrentadas para que a prática se efetive. Segundo o referido autor:
sem dúvidas, o maior inimigo à efetivação do depoimento com redução de danos – além dos desarrazoados ataques doutrinários – é a falta de recursos humanos suficientes (equipe técnica especializada) e de infraestrutura (salas especiais com circuito interno unidirecional de televisão), principalmente em comarcas interioranas (2010, p. 148).
Quanto aos espaços físicos da sala de audiências, estes não foram projetados para acolher crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Cezar (2010) retrata que aqueles ambientes são projetados de maneira a criar subserviência entre o juiz e as partes, além de trazer em seu interior muitas pessoas que têm de participar daquele ambiente, todas elas estranhas à figura do depoente.
Outro problema apontado é a relutância do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Federal dos Assistentes Sociais em participar das inquirições. Para Fávero (2010), quando o assistente social atua como intérprete da fala do juiz ou das partes, não é uma prática pertinente ao serviço social, pois trata-se de procedimento policial e judicial, pertinentes à investigação policial e à audiência judicial.
Quanto ao posicionamento do Conselho Federal de Psicologia, Potter (2010, p. 49) assegura que para o aludido órgão, “a inquirição proposta através de psicólogo não configura um método de trabalho psicoterápico nem de entrevista psicológica, ambos resguardados pelo Código de Ética do Psicólogo”.
Wolff (2010), em seu trabalho, traz o posicionamento do Conselho Federal de Psicologia sobre a matéria. Segundo o Conselho, a participação de crianças e adolescentes nas audiências, além de revitimizá-las, as expõem desnecessariamente ao aparato jurídico penal. Isso também pode trazer consequências negativas para seu desenvolvimento.
Entretanto, os defensores da metodologia alegam que a função dos profissionais é a de interlocutores das partes e não a produção de laudos ou pareceres, o que realmente contrariaria os códigos de ética do psicólogo e do assistente social. Nada que a iminente mudança legislativa em tramitação no Congresso Nacional não venha a corrigir, conforme já citado no item 4.1.