Há mais de vinte anos eu tenho, ao lado de outros constitucionalistas, chamado a atenção para a necessidade de um controle mais estrito do Poder Judiciário, no exercício da jurisdição constitucional, sobre as medidas provisórias. As lições de Gustavo Zagrebelsky, Andrea Simoncini e Pablo Santolaya Machetti, para citar apenas alguns, foram decisivas para a formação de um entendimento claro a propósito da matéria. A nossa tumultuada experiência constitucional, por outro lado, apenas confirmou a convicção. Os abusos no manejo da medida normativa pelo Executivo são flagrantes, implicando, muitas vezes, séria possibilidade de bloqueio da atividade do Congresso Nacional em função do trancamento da pauta decorrente da não apreciação a tempo de providências de urgência acumuladas (art. 60, par. 6º. da CF).
Por outro lado, também o Congresso Nacional tem atropelado o processo legislativo, aproveitando a ocasião para inserir jabutis, contrabandos, ou, mais precisamente, novos dispositivos no projeto de conversão que não guardam nenhuma relação, sintonia ou proximidade com o assunto disciplinado na medida baixada pelo Chefe do Poder Executivo. E no jogo de correlação de forças do nosso singular presidencialismo de coalizão, não são poucas as vezes em que o Presidente da República se vê compelido a sancionar a lei de conversão carregada, tal como um ônibus clandestino, de passageiros indesejados. São perdedores nesse jogo, claro, o país, os cidadãos e, obviamente, o Estado Democrático de Direito.
A boa notícia é que, embora vagarosamente, o Supremo Tribunal Federal vem evoluindo na sua compreensão sobre a matéria. Não se recusa, por exemplo, a fazer o controle da legitimidade substantiva das medidas provisórias e das respectivas leis de conversão. Em relação ao controle dos requisitos de circunstância (relevância e urgência) tem sido mais comedido, embora não se negue, em casos absolutamente teratológicos, a censurar aquilo que já foi chamado de abuso do poder de legislar. Há aqui, é certo, ainda, um longo caminho a percorrer.
Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal resolveu admitir um controle mais estrito da regularidade do procedimento de conversão, manejando argumentos bastante interessantes, tal como ocorreu no julgamento da ADI 4.029 (ICMBio), de relatoria do Min. Luiz Fux. Nesse campo, um acertado passo adiante foi dado, pela Colenda Corte, no corrente mês, no julgamento da ADI 5127, aforada pela Confederação Nacional das Profissões Liberais contra as alterações feitas na MP 472/2009, convertida na Lei 12.249/2010, tratando da profissão de contador. Aqui, o Supremo Tribunal Federal, reconheceu, com eficácia prospectiva, a inconstitucionalidade das emendas introduzidas pelo Legislativo nos processos de conversão em lei quando tratarem de matéria estranha àquela disciplinada na medida provisória. Para a felicidade geral da nação, porque inconstitucionais, serão fulminados, doravante, os contrabandos legislativos e jabutis normativos introduzidos arbitrariamente nas leis de conversão.
Tal como ainda ocorre com os pressupostos de circunstância (relevância e urgência), a timidez do Supremo no controle da regularidade processual da conversão da medida provisória em lei decorria, imagino, de leitura influenciada pela centralidade de um modelo constitucional gravitando em torno da separação dos poderes (modelo I na linguagem de Laurence Tribe), o que importava em forte deferência do Judiciário ao agir político (ainda que revestido de formas e decorrente de procedimentos) do Executivo e do Legislativo.
Nos últimos anos, entretanto, o Supremo transita, no exercício da fiscalização da regularidade formal e procedimental dos atos legislativos, para outro modelo constitucional, agora gravitando em torno dos direitos fundamentais (preferred rights e equal protection, modelos V e VI na linguagem de Laurence Tribe), embora, acertadamente, porque a adequada leitura da Constituição pressupõe o acesso a uma constelação de modelos, sempre levando em conta, reconhecido o peso específico, a equação derivada do modelo I. É aqui que emerge a compreensão da conexão entre o controle do procedimento e as exigências do autogoverno democrático, entre a liberdade de ação dos órgãos políticos e a necessidade do fortalecimento dos espaços de deliberação da cidadania ativa. Daí porque, na democracia constitucional, o papel da jurisdição constitucional no controle do processo legislativo não pode ser tímido, ao contrário, supõe escrutínio adequado da ação política, implicando, muitas vezes, correlata compressão do âmbito de imunidade dos atos interna corporis, tudo para permitir o robustecimento da democracia e do processo deliberativo em curso no Parlamento. No caso, o Judiciário não age contra a democracia (ou contra a competência dos órgãos representativos), mas, antes, para a democracia.
A Resolução n. 1/2002 do Congresso Nacional e a Lei Complementar 98/1998 (art. 70, II), contemplam o princípio da congruência, reclamando pertinência temática entre as emendas apresentadas e o projeto de lei ou de conversão em andamento. Ocorre que tais normativas, porque infraconstitucionais, não se prestam para servir como parâmetro para o controle de constitucionalidade. O passo agora dado pelo Supremo caminha no sentido de resolver o problema, reafirmando que as limitações previstas ao poder de emenda (artigos 61, par. 1º., 63, I e II, 84 e 166, parágrafos 3º. e 4º., por exemplo) também se aplicam àquelas apresentadas ao projeto de conversão de medida provisória. Mais do que isso, a Colenda Corte entendeu, acertadamente, que o nosso desenho institucional apontando para a excepcionalidade da providência de urgência e o princípio democrático exigente de regular processo legislativo (arts. 1º., 2º. , 5º. LIV, entre outros, da CF), tudo amarrado numa compreensão sistemática e unitária do documento constitucional, constituem, em sua implícita principiologia, parâmetro normativo suficiente para o controle de constitucionalidade, reconhecendo, portanto, no julgado referido, embora, por razões de segurança jurídica, com eficácia ex nunc, a inconstitucionalidade das emendas de iniciativa parlamentar introduzindo matérias estranhas ao tema disciplinado na medida provisória.
O Ministro Fachin inaugurou a divergência que conquistou a maioria para, julgando improcedente a ADI, decidir no sentido acima apontado. Para orgulho dos paranaenses, aqui e em outros julgados, o Ministro tem demonstrado, embora o pouco tempo de casa, estar absolutamente confortável exercendo as relevantes funções de magistrado de uma Corte Constitucional.
A Ministra Rosa Weber, Relatora da ADI, acompanhada pelos Ministros Marco Aurélio e Lewandowski, ficou vencida. Mas, alguns argumentos lançados no seu voto merecem ser lembrados, porque, aparentemente, retratam o novo momento do Supremo Tribunal Federal. Disse a Ministra que os assim chamados contrabandos legislativos não substanciam simplesmente uma mera inobservância de forma, “mas um procedimento antidemocrático, em que se subtrai do debate legislativo, intencionalmente ou não, a discussão sobre normas que irão regular a vida em sociedade”. E tal discussão não acontece, porque tais emendas, diante da especial natureza do procedimento de conversão, seguem curso sem apreciação pelas comissões temáticas, ou discussão em audiências públicas, implicando uma tramitação sem maior debate e mais aprofundada reflexão.
Não se está, como se vê, a discutir, portanto, mera questão de forma. Mais do que isso, são as condições para o exercício da democracia, de uma robusta democracia, tal como requerida por nossa Lei Fundamental, como direito fundamental da coletividade, que estão em jogo. E neste ponto, o Supremo Tribunal Federal, ao condenar os contrabandos legislativos e as leis de conversão ônibus, caminha na direção correta.