Com a oxigenação constitucional a partir da promulgação da Constituição de 1988, o Direito à liberdade passou a ser amealhado a um fundamento da República, qual seja: a dignidade da pessoa humana, conforme art. 1º, III, da CF.
Assim, todas as autoridades imbuídas da persecução criminal devem assegurar o direito à liberdade, notadamente quando se fizerem presentes os requisitos legais. Principalmente, aquela que é a primeira a tomar conhecimento dos fatos, vale dizer, o Delegado de Polícia.
Dito esses prolegômenos, passemos à análise da fiança, que, na precisa lição de Nestor Távora[1], “consiste no fato jurídico de caucionar obrigação alheia, importando, pois, em abonação ou responsabilidade”.
Para Aury Lopes Jr.[2], a fiança é “uma contracautela, uma garantia patrimonial, caução real, prestada pelo imputado e que se destina, inicialmente, ao pagamento das despesas processuais, multa e indenização, em caso de condenação, mas, também, como fator inibidor da fuga”.
Stricto sensu, Norberto Avena[3] ensina que a fiança tem por finalidade “assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial”.
A título histórico, a primeira notícia que se tem de uma garantia exigida pelo Estado – assim em Atenas como em Roma – foi a caução fidejussória, consistente na apresentação de fiadores, que assumiam a obrigação de apresentar o réu no dia do julgamento (ALMEIDA JÚNIOR[4]).
No Brasil-colônia (1500-1822), “desde as Ordenações Afonsinas, havia a concessão da liberdade por meio das Cartas de Seguro, da homenagem (menagem[5]) e da palavra de fiéis carcereiros, geralmente mediante compromisso de comparecimento ao julgamento”.
Importante observar que não existe mais, no processo penal, a conotação fidejussória de fiança (garantia apenas com base na palavra do investigado/acusado), vez que o tratamento legal que lhe é dado é de uma garantia real.
Nas palavras de Nestor Távora[6], “não existe mais fiança fidejussória no processo penal comum. A confiança na palavra cedeu espaço à prestação financeira. A fiança é uma caução, uma prestação de valor, para acautelar o cumprimento das obrigações do afiançado”.
No mais, o objetivo primordial da fiança é “obter a presença do agente a todos os atos da persecução penal, evitando-se os efeitos deletérios do cárcere preliminar”[7], todavia, se seu objetivo é evitar os efeitos deletérios do cárcere preliminar, como resguardar esse objetivo ao cidadão pobre, que não possui condições financeiras de arcar com a fiança?
O Código de Processo Penal, em seu art. 350, caput, é preciso em estabelecer que “nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando a situação econômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória, sujeitando-o às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 deste Código e a outras medidas cautelares, se for o caso” (grifei).
Pois bem, a questão é: e no interstício da lavratura do Auto de Prisão em Flagrante até o seu recebimento pelo Juiz, deverá o investigado/afiançado ficar recluso mesmo não tendo condições para pagar a fiança? Poderá o Delegado de Polícia dispensar a fiança?
A resposta não é de fácil solução, se por um lado temos que assegurar a igualdade entre os cidadãos (ricos e pobres no mesmo patamar), a Lei, entretanto, é precisa em estabelecer (ou melhor: não estabelecer) a dispensa de fiança pelo Delegado de Polícia, mesmo este sendo “o primeiro garantidor da legalidade e da justiça”[8].
A doutrina, por sua vez, diverge na possibilidade de o Delegado de Polícia poder ou não dispensar a fiança. Vidal Gomes[9], por exemplo, ensina que “quanto à dispensa de fiança na hipótese prevista no art. 350 do Código de Processo Penal, a competência para sua concessão neste caso é apenas do juiz, conforme expressamente disposto”.
Por outro lado, Cleopas I. Santos[10] afirma que “o respeito aos direitos fundamentais do cidadão é dever de toda autoridade e seus agentes. Partindo dessa premissa, não haveria qualquer razão, lógica ou jurídica, para que o Delegado de Polícia fosse impedido de dispensar a fiança, quando a situação econômica do autuado assim recomendasse, mas estivesse autorizado a aumenta-la e reduzi-la. Além disso, o art. 350 pode ser aplicado por analogia, como autorizado pelo art. 3º do CPP, tudo com o fim de dar maior eficácia aos direitos fundamentais do imputado”.
Nessa esteira, não há como não concordar com o segundo posicionamento, a fim de preconizar os institutos garantidores da liberdade com a atual conjuntura da Constituição Federal.
Entretanto, dispensada a fiança pelo Delegado de Polícia à luz de uma interpretação analógica, qual medida cautelar seria imposta àquele que acabara de ser preso em flagrante delito? Isso porque é inegável que seria necessária alguma medida a fim de resguardar o transcurso normal da persecução penal. Qual garantia terá o Estado de que o autuado iria colaborar prontamente com os atos processuais? Qual garantia se tem que o autuado não se evadiria do distrito da culpa?
Por essas razões, é de se concluir que a dispensa da fiança pelo Delegado de Polícia é uma necessidade premente, sim, notadamente porque “sendo a fiança um direito, é inimaginável que os incluídos financeiramente pudessem ficar livres, por terem condição de pagar, e os pobres tivessem que ficar reclusos, pelo desprestígio da condição financeira”[11].
O próprio Código de Processo Penal, em seu art. 32, §2º, deixa claro que “será prova suficiente de pobreza o atestado da autoridade policial em cuja circunscrição residir o ofendido”. Se o Delegado de Polícia pode reconhecer a hipossuficiência do autuado, por que não poder aplicá-la concretamente dispensando a fiança?
Todavia, antes seria necessária uma alteração legislativa para que a Autoridade Policial[12] pudesse fixar, de plano, algumas das medidas cautelares do art. 319, do Código de Processo Penal, a fim de resguardar o transcurso legítimo da persecução criminal, notadamente da fase investigativa.
Gize-se que a fixação de algumas dessas medidas pela Autoridade Policial não extrapolaria o Poder Jurisdicional do Estado (muito menos afastaria a apreciação judicial, art. 5º, XXXV, da CF), pelo contrário, garantiria a liberdade provisória imediatamente, ante a concessão da dispensa de fiança pelo Delegado de Polícia, vez que haveria outra garantia nos autos do procedimento, como, por exemplo, a proibição de ausentar-se da Comarca (art. 319, IV, do CPP).
Ou, facilitando ainda mais, que se alterasse apenas a redação do art. 350, do CPP, a fim de incluir o Delegado de Polícia como legitimado para dispensar a fiança, pois, assim o fazendo, este já poderia impor as obrigações consequentes dos arts. 327 e 328, do CPP.
Importante observar, que a fixação dessas medidas seria – na verdade - uma medida pré-cautelar, a exemplo da própria prisão em flagrante. Afinal, qual o motivo de manter alguém preso se, na análise do caso concreto, o autuado teria direito a fiança, mas não possui condições de arcá-la? Ademais, apenas a título argumentativo, Zaffaroni[13] ensina, não sem razão, que o “efeito da prisão, que se denomina prisionização, sem dúvida é deteriorante e submerge a pessoa numa ¨cultura de cadeia¨, distinta da vida do adulto em liberdade”.
Ressalta-se, ainda, que o Delegado de Polícia já emana poder decisório para algumas medidas cautelares, conforme o escólio de Ruchester Marreiros[14] “por uma questão de simples coerência, se a doutrina é uniforme em entender que a liberdade provisória é uma espécie de medida cautelar, ou contracautela, não há outra conclusão lógica a de que se o delegado de polícia determina a lavratura do auto de prisão em flagrante e concede liberdade provisória mediante fiança, por exemplo, estaremos diante de duas decisões (e não despacho, por favor) de naturezas cautelares. Seja emanado por autoridade administrativa ou não, o rótulo não altera o conteúdo e a finalidade”.
Portanto, é imperativa uma alteração legislativa prevendo a possibilidade de fixação de outras medidas pelo Delegado de Polícia – que não a fiança – a fim de possibilitar a sua dispensa já na Delegacia de Polícia, ou, tão somente, a inclusão do Delegado de Polícia como legitimado no próprio art. 350, caput, do CPP, vez que a dispensa da fiança já traria outras obrigações lógicas decorrentes da própria Lei (art. 327 e 328, do CPP).
Referências:
[1] TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 7ª ed. Revista, ampliada e atualizada. Jus Podivm. 2012, pg. 656.
[2] LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. p. 917.
[3] AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo Penal: esquematizado – 6ª e.d. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.
[4] Apud Eugênio Pacelli de Oliveira, p. 42.
[5] A menagem, então privilégio dos nobres, é prevista até hoje no Código de Processo Penal Militar, conforme Octaviano Vieira apud Tales Castelo Branco, p.166. Extraído do site: http://www.adepolalagoas.com.br/artigo/fianca-policial-violencia-domestica-e-lei-n%C2%BA-124032011.html
[6] TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 7ª ed. Revista, ampliada e atualizada. Jus Podivm. 2012, pg. 657.
[7] TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 7ª ed. Revista, ampliada e atualizada. Jus Podivm. 2012, pg. 657.
[8] (Min. Celso de Melo, Supremo Tribunal Federal, em sede do HC 84548/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 21.6.2012)
[9] GOMES, Amintas Vidal. Manual do delegado: teoria e prática. 6 ed. Revista e atualizada por Rodolfo Queiroz Laterza. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 467.
[10] ZANOTTI. Bruno Taufner. SANTOS, Cleopas Isaías Santos. Delegado de Polícia em Ação. Juspodvum. 2014. P. 253.
[11] TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 7ª ed. Revista, ampliada e atualizada. Jus Podivm. 2012, pg. 670.
[12] “A autoridade (e essa autoridade, a nosso juízo, na esfera estadual, outra não é senão o Delegado de Polícia, e, na Federal, o Delegado Federal)(...)”. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. V. 4. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 118.
[13] Zaffaroni, Eugenio Raul, 1927. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal/ Eugenio Raul Zaffaroni: tradução Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. – Rio de Janeiro: Revan, 1991, 5º edição, janeiro de 2001, 1ª reimpressão, outubro de 2010, 3º reimpressão, setembro de 2014.
[14] http://www.conjur.com.br/2015-dez-08/academia-policia-delegado-possui-funcao-imanente-decisao-cautelaridade-prova