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As "Fabíolas" do Brasil e o entretenimento nosso de cada dia

18/12/2015 às 12:14
Leia nesta página:

Se trair alguém já é um ato reprovável, propagar essa traição é algo ainda mais digno de reprovação, não só por parte dos envolvidos, mas, acima de tudo, por quem, estranho ao problema do casal, por pura diversão, se regozija das tragédias alheias.

O mais novo (e lamentável) caso de vingança conjugal que viralizou nas redes sociais envolve uma mulher de nome Fabíola, a qual foi flagrada em um motel na companhia do melhor amigo de seu cônjuge, que, enfurecido, danificou o veículo do amante, além de ter desferido tapas e empurrões em sua esposa e ameaçado ambos (esposa e ex-amigo) de morte, tudo registrado em filmagem feita por um amigo do marido traído.

Conforme odiosa “regra” que se estabeleceu na “cultura” brasileira, o episódio ganhou as redes sociais. Não só o vídeo viralizou, como também foram criadas páginas falsas no Facebook em nome da mulher, Fabíola, as quais escarnecem veementemente do caso e atribuem a ela um sem número de epítetos pejorativos relacionados ao seu gênero e ao seu comportamento.

  Mais do que mulher que goza de direitos fundamentais como todos do povo brasileiro, Fabíola agora é mais uma vítima do repugnante comportamento dos usuários das redes sociais que, desrespeitando o preceito fundamental relacionado à inviolabilidade do direito à privacidade, intimidade, honra e imagem, expressa no art. 5º, X, da Carta Republicana, promovem a repercussão pública de algo que deveria permanecer na esfera privada dos casais, como se entretenimento fosse.

Não se olvida, aqui, do compreensível sentimento de revolta do marido traído. Antes de tudo, raiva, ódio, frustração, irresignação e afins são sentimentos humanos perfeitamente identificáveis em casos envolvendo traições amorosas, e devem ser compreendidos.

Contudo, compreender a mágoa que se irradia pelo espírito de uma pessoa traída não importa em legitimar atos de violência como o observado no caso em comento, que, a princípio, revela a prática, por parte do homem traído, dos crimes de ameaça e de dano, previstos, respectivamente, nos arts. 147 e 163 do Código Penal brasileiro, bem como de ilícito civil (dano material), o que é capaz de ensejar sua responsabilização penal e civil.

Anote-se, por oportuno, que o vazamento do vídeo em questão não foi opção de Fabíola, mas sim de quem gravou a cena e, por cumplicidade, de seu marido, que não se opôs à gravação. Assim, ainda que o ato da esposa tenha ferido a honra do homem traído, este compactuou com o registro de sua fúria e, ainda que se assuma que não foi sua intenção divulgar o vídeo através da internet, no mínimo assumiu o risco de que o conteúdo se tornasse público.

Se trair alguém já é um ato reprovável – afinal de contas, a formação de um laço amoroso com alguém envolve a assunção de observância de preceitos éticos – propagar essa traição é algo ainda mais digno de reprovação, não só por parte dos envolvidos, mas, acima de tudo, por quem, estranho ao problema do casal, por pura diversão, se regozija das tragédias alheias. E isso é o que mais tem ocorrido em nossa sociedade doente, infelizmente.

Já tive a oportunidade de escrever sobre a violência doméstica no mundo virtual, em artigo intitulado “Lei Maria da Penha é aplicável aos casos de Crimes Virtuais” (disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-out-26/vitor-guglinski-lei-maria-penha-aplicavel-aos-casos-crimes-virtuais). Hoje, volto a destacar o que registrei naquela ocasião:

“(...) a tecnologia, fruto do saber humano, da investigação voltada à evolução e ao bem viver, tem, em verdade, se tornado uma nova “arma” para a prática de todo o tipo de atrocidade contra nossos semelhantes. Em seu tempo, Aldous Huxley concluíra que ‘as palavras nos permitiram elevar-nos acima dos animais, mas também é pelas palavras que não raro descemos ao nível de seres demoníacos’. Transportando o pensamento do festejado escritor para os dias atuais, junto às palavras vem a tecnologia permitir que os inescrupulosos desçam a tais níveis demoníacos”.

 Em excelente análise sobre o “caso Fabíola”, a colunista da Folha de São Paulo, Mariliz Pereira Jorge, com muita propriedade pontuou:

“Muita gente riu e não se deu conta de que ajudou o traído a ter o que queria: vingança ao expor a mulher. Conseguiu, para meio mundo Fabiola não presta. Só consigo ter pena de todas aquelas pessoas, as quais não conhecemos, cujas histórias não sabemos. Ajudamos a acabar com a reputação dessa mulher para sempre” (disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilizpereirajorge/2015/12/1720187-barraco-digital.shtml).

Pois é isso o que acontece em casos de vingança digital: quem compartilha vídeos de natureza pornográfica ou de brigas de casal está, nada menos, do que ajudando a vilipendiar a imagem da pessoa violentada.

No caso em comento, não há dúvidas de que Fabíola foi humilhada, coisificada, vilipendiada, pois, repita-se, se a cena foi gravada, o foi com o consentimento de seu marido, que, no mínimo, assumiu o risco de que o vídeo fosse divulgado pelo cinegrafista. Se Fabíola errou, é outro assunto, e que deveria ser resolvido na esfera íntima do casal, sem a intervenção de terceiros.

Há quem chegue a sustentar, como vi no Facebook, que o mundo digital é assim mesmo, não havendo nada demais em estragar algo que já estava estragado, pois, nas palavras do referido usuário do Facebook: “não fui eu quem escolheu se casar com uma vagabunda e depois que fedeu, joguei o vídeo deles na net” (sic). Em outras palavras, para tentar legitimar o compartilhamento desse tipo de conteúdo, não haveria prejuízo em se divulgar vídeos registrando questões íntimas, se a situação entre os envolvidos já estava deteriorada.

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Pois eu digo: nada mais equivocado.

Não é questão de escolha de cada um; é questão de respeito, de não bisbilhotar a vida alheia, ainda que o conteúdo chegue até nós através de nossos contatos ou de outros meios. Aí é que se situa a ética: decidir entre assistir ou não assistir vídeos dessa natureza; descartar ou passar à frente o conteúdo; preservar a imagem da pessoa violentada ou ajudar a vilipendiá-la ainda mais. É questão de consciência; de não fazer da vida de tantas Fabíolas o entretenimento nosso de cada dia.

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Sobre o autor
Vitor Guglinski

Advogado. Professor de Direito do Consumidor do curso de pós-graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (RJ). Professor do curso de pós-graduação em Direito do Consumidor na Era Digital do Meu Curso (SP). Professor do Curso de pós-graduação em Direito do Consumidor da Escola Superior da Advocacia da OAB. Especialista em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Ex-assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Autor colaborador da obra Código de Defesa do Consumidor - Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional (Juspodivn). Coautor da obra Temas Actuales de Derecho del Consumidor (Normas Jurídicas - Peru). Coautor da obra Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico (Empório do Direito). Coautor da obra Direito do Consumidor Contemporâneo (D'Plácido). Coautor de obras voltadas à preparação para concursos públicos (Juspodivn). Colaborador de diversos periódicos jurídicos. Colunista da Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal. Palestrante. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4246450P6

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUGLINSKI, Vitor. As "Fabíolas" do Brasil e o entretenimento nosso de cada dia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4552, 18 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45395. Acesso em: 25 nov. 2024.

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