1 – Aspectos da interpretação constitucional no direito do trabalho
1.1.– A constitucionalização do direito no cenário mundial e a constitucionalização tardia no direito brasileiro
Após a Segunda Guerra mundial, os países ocidentais passaram por uma importante revolução no campo da interpretação do direito, atribuindo ao direito constitucional uma maior ênfase na hermenêutica das normas infraconstitucionais.
Nesse sentido, a obra “A força normativa da Constituição”, de Konrad Hesse, representou um marco sociológico no direito constitucional ao se opor ao discurso de Ferdinand Lassale, para quem a Constituição apenas representaria uma folha de papel (ein Stück Papier), uma espécie de síntese do que seriam os “fatores reais do poder” que formam “a constituição real do país” (HESSE, 1991, p. 09).
Para Lassale, a capacidade de uma constituição de regular e de motivar as decisões jurídicas de uma nação estaria
...limitada à sua compatibilidade com a Constituição real. Do contrário, torna-se inevitável o conflito, cujo desfecho há de se verificar contra a Constituição escrita, esse pedaço de papel que terá de sucumbir diante dos fatores reais de poder dominantes no país” (HESSE, 1991, p.9).
Segundo Lassale, a força determinante das relações fáticas seria o limite hipotético extremo da Constituição. E a Constituição jurídica, no que tem de fundamental, sucumbe cotidianamente em face da constituição real.
Durante muito tempo, de forma inconsciente a interpretação dos direitos e garantias constitucionais – em especial os dos cidadãos e os dos trabalhadores – foram interpretados à Lassale no direito brasileiro, a tal ponto do Professor Marcelo Neves, diante da crise constitucional interpretacional no início dos anos 90, ter lançado a sua tese da constitucionalização simbólica, que virou um marco no direito constitucional brasileiro.
De fato, na evolução histórica da interpretação das normas no direito brasileiro, as lições de Ferdinand Lassale eram mais do que evidenciadas em nossa jurisprudência. Diversos casos eram resolvidos apenas e tão somente analisando-se os dispositivos infraconstitucionais, mesmo quando a Constituição lhes trazia toda uma carga principiológica que deveria ser aplicada na concreção. Daí, o próprio artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (batizado por longas décadas como Lei de Introdução ao Código Civil) aduzia em seu artigo 4º que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”
Os princípios gerais do direito ficavam em última análise, com boa parte da doutrina brasileira do século XX o colocando como última alternativa à integração das lacunas (e apenas quando houvesse lacunas).
Em 1959, numa visão bem avançada para a sua época, Konrad Hesse (1991) lecionou, em síntese de parte de suas ideias, que:
- ) a força normativa de uma Constituição não reside, tão somente, na adaptação inteligente de uma dada realidade, combatendo a ideia central de Lassale, onde para Hesse a Constituição tem vida própria (embora aliada da realidade);
- ) apesar da Constituição não fazer nada no campo fático, ela impõe tarefas que devem ser por todos observadas e cumpridas;
- ) a Constituição converte-se em força ativa se nestas tarefas:
- existir a disposição de orientar condutas de acordo com as ordens nela estabelecidas;
- houver desejo de concretizar estas ordens, a despeito de todos os juízos de oportunidade e conveniência;
- ) a Constituição será convertida em força ativa se fizerem presentes a vontade de poder e a vontade de Constituição.
A força normativa de uma Constituição depende muito, pois, de sua força ativa. Esse tipo de pensamento terminou por servir de um dos pilares para o neoconstitucionalismo.
Nesse particular, nosso sistema jurídico sofreu de uma constitucionalização tardia. Normas constitucionais outorgavam direitos e garantias aos cidadãos e trabalhadores, mas os tribunais interpretavam tais normas como sendo de constitucionalização simbólica, ou seja, despidas de efeitos sociais práticos.
Este cenário passou por profundas alterações recentemente na jurisprudência do Supremo que, a partir de meados dos anos 2000, passou a emprestar efeitos reais da Constituição para diversos ramos do direito, com forte aplicação no direito administrativo, penal e civil. Entrementes, no direito do trabalho, tal constitucionalização ainda demanda um labor de releitura de alguns dos principais dispositivos dos direitos sociais, conforme será adiante demonstrado.
1.2.– O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDANTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
O princípio da dignidade da pessoa humana se constitui no núcleo central e indissociável de todos os demais direitos subjetivos, estejam eles constitucionalizados como direitos fundamentais ou subsistam no plano da legislação infraconstitucional.
Ingo Wolfgang Sarlet (2002, p. 120-121), neste sentido, leciona:
É justamente neste contexto que o princípio da dignidade da pessoa humana passa a ocupar lugar de destaque, notadamente pelo fato de que, ao menos para alguns, o conteúdo em dignidade da pessoa humana acaba por ser identificado como constituindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais, ou pela circunstância de – mesmo não aceita tal identificação – se considerar que pelo menos (e sempre) o conteúdo em dignidade da pessoa em cada direito fundamental encontra-se imune a restrições.
A impossibilidade de restrições dos direitos subjetivos fundados diretamente na dignidade da pessoa humana é, portanto, uma das características de nossa Constituição.
Para Luís Roberto Barroso (2009, p. 584):
A dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independemente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. O desrespeito a este princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação um símbolo do novo tempo.
O princípio da dignidade da pessoa humana, por vezes, é confundido como sendo um direito de qualquer pessoa que esteja em território nacional. Ao lado da soberania e da cidadania, o princípio da dignidade da pessoa humana vai muito além de um mero direito constitucional: ele é um dos três princípios fundadores da República brasileira.
Neste sentido, Luiz Edson Fachin (FACHIN, RUZYK, 2011, p. 307) afirma que “trata-se de reconhecimento pelo direito de uma dimensão inerente a toda pessoa humana que antecede – como princípio simultaneamente lógico e ético – o próprio ordenamento jurídico”.
Ao analisar a figura do trabalho escravo versus dignidade da pessoa humana, o Supremo Tribunal Federal decidiu, recentemente:
A ‘escravidão moderna’ é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento a liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa, e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa ‘reduzir alguém a condição análoga à de escravo’. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2012. Inq 3.412, rel. p/ o ac. min. Rosa Weber, julgamento em 29-3-2012, Plenário, DJE de 12-11-2012).
Em excelente lição, Flávia Pessoa aduz que, na análise da dignidade da pessoa humana há “a garantia de um espaço privativo, no âmbito do qual o indivíduo se encontra resguardado contra ingerências na sua esfera pessoal” (PESSOA, 2009, P. 32).
Ou seja: no momento de concreção de qualquer norma, o princípio fundamente da dignidade da pessoa humana terá uma ampla prevalência sobre as demais normas constitucionais e será a diretriz base na ponderação de princípios.
2 – A TEORIA DO DIÁLOGO DAS FONTES E A MAXIMIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
2.1 – O diálogo das fontes nascido na teoria do Código de Defesa do Consumidor
O direito do consumidor possui um forte ponto em comum com o direito do trabalho. Existe, de um lado e de regra, um prestador de serviços organizado e mais forte do que a outra face da moeda, o consumidor. E, por questões culturais, a Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor trazem um sistema protetivo e de alcance inegável.
O primeiro instrumento para assegurar a equidade e a justiça contratual nas relações de consumo, mesmo em face dos métodos unilaterais de contratação em massa, é a interpretação judicial do contrato em favor do consumidor. De fato, de acordo com o artigo 47 do CDC, iluminado pelo princípio da boa-fé, positivado no artigo 4º, III, do CDC, a interpretação de todo contrato de consumo deve (e será sempre) conforme as imposições da boa-fé objetiva e do mandamento constitucional de promoção dos interesses dos consumidores.
Mister ressaltar que o mandamento constitucional de proteção ativa aos consumidores (ex vi do artigo 5º, XXXII da CF) e as normas dos artigos 1º, 7º e 47 do microsistema, acabam por impor uma hermenêutica especial das normas e dos contratos de consumo, que é categorizada pela doutrina consumerista em hermenêutica mais favorável ao consumidor.
Mais do que uma simples “interpretação a favor” dos interesses dos consumidores, o sistema jurídico brasileiro de normas de ordem pública, normas tutelares do sujeito vulnerável (como é o caso vertente), impõe uma aplicação das normas em diálogo (estejam ou não presentes no CDC estas normas) e uma integração das eventuais lacunas legislativas e do próprio contrato, sempre mais favorável ao consumidor.
Neste sentido, o STJ vaticina, verbis:
O mandamento constitucional de proteção do consumidor deve ser cumprido por todo o sistema jurídico, em diálogo de fontes, e não somente por intermédio do CDC. Assim, e nos termos do art. 7º do CDC, sempre que uma lei garantir algum direito para o consumidor, ela poderá se somar ao microssistema do CDC, incorporando-se na tutela especial e tendo a mesma preferência no trato da relação de consumo (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma, REsp. 1009591/RS, rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 13.4.2010, DJE 23.08.2010, destaques de ora).
Inclusive, nas palavras da abalizada Cláudia Lima Marques (2011, p.905-906),
esta hermenêutica a favor do consumidor é cláusula pétrea (“que dispõe que é dever do Estado proteger o sujeito vulnerável na relação jurídica de consumo”), concretiza os princípios gerais (romano cristão de interpretação do favor debitoris, favor debilis, in dúbio minus/odia restringi e benigna interpretatio/humanior interpretatio) e tem hoje reflexos no processo civil, tributário, propriedade intelectual, determinando uma ‘leitura’ renovada das normas do CDC e do diálogo das fontes, como o diálogo entre a lei de planos de saúde, o CDC, o Estatuto do Idoso, o Código Civil e mesmo as normas trabalhistas e previdenciárias.
E continua a doutrinadora (2011, p 907):
em outras palavras, a aqui chamada justiça contratual começa pela aplicação concreta da norma protetiva do consumidor e continua com uma interpretação das normas em diálogo, a mais favorável ao consumidor, sujeito escolhido pelo mandamento constitucional para ser o protegido. Seria totalmente contrária ao mandamento constitucional de proteção especial e de promoção dos direitos do consumidor uma interpretação das normas legais e uma integração de lacunas contra o consumidor, além de violar o art. 7º do CDC.
Segundo a regra do direito comum do art. 112 do CC/02, nas declarações de vontade “se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”.
E, ainda nas lições de Cláudia Lima Marques (2011, p. 908),
a jurisprudência brasileira foi evoluindo no sentido de interpretar cada vez mais positivamente para o consumidor as cláusulas do contrato de adesão, principalmente em caso de dúvida ou lacuna do contrato.
Noutro toar e dentro, ainda, do princípio do diálogo das fontes, o Código Civil de 2002 também prevê, em seu artigo 423, o recurso à interpretação mais favorável ao aderente em contratos de adesão (interpretação contra proferentem), restringindo o seu alcance para as cláusulas ambíguas ou contraditórias.
Já o artigo 47 do CDC, ao seu turno, representa uma evolução em relação a essa norma (MARQUES, 2011, p. 912),
pois beneficiará todos os consumidores, em todos os contratos, em todas as normas, mesmo se as cláusulas contratuais são claras e não contraditórias, sendo que agora a vontade interna, a intenção não declarada, nem sempre prevalecerá. Em outras palavras, é da interpretação ativa do magistrado a favor do consumidor que virá a ‘clareza’ da cláusula e que será estabelecido se a cláusula, assim interpretada a favor do consumidor, é ou não contraditória com outras cláusulas do contrato”[MARQUES, ob. Cit, p. 912].
2.2 – A transladação da teoria do diálogo das fontes para o direito do trabalho
Em excelente trabalho, Renato Rua de Almeida perfaz uma importante introdução da teoria do diálogo das fontes nas relações trabalhistas. Defende o autor que o intérprete pode se utilizar da teoria do diálogo das fontes não apenas no direito do consumidor, mas sempre que estiver em jogo os direitos fundamentais de um cidadão, pois a teoria fornece um instrumento metodológico seguro e útil a ser trilhado.
Em suas lições, assevera o autor:
Ademais, quando o método do diálogo das fontes e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações de trabalho visam à máxima efetividade dos direitos fundamentais dos trabalhadores, como visão pós-positivista dos direitos – diferentemente da rigidez positivista da legislação trabalhista protecionista que muitas vezes gera efeito bumerangue em relação aos próprios trabalhadores – fazem-no sob o crivo e a ponderação do princípio da proporcionalidade e dos subprincípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade propriamente dita, quando sua aplicação implicar conflito com princípios normativos que assegurem valores constitucionais como a livre-iniciativa e a livre concorrência. (ALMEIDA, 2015, LTr 79-05/526).
Na evolução interpretativa do direito do trabalho, o direito até então potestativo do grande empregador de realizar demissões em massa hoje em dia encontra-se absolutamente reduzido e relativizado. Neste sentido, o autor supracitado leciona:
Mas é justamente uma visão pós-positivista pela utilização do método do diálogo das fontes e da eficácia dos direitos fundamentais nas relaç~eos de trabalho que permite a adoção das cláusulas gerais do Código Civil constitucionalizado de 2002, especialmente a boa-fé objetiva (art. 442) e a função social do contrato (art. 441), para chegar=-se à conclusão de que não mais subsiste no direito brasileiro o direito potestativo nas despedidas coletivas ou em massa, malgrado a inexistência de uma legislação complementar a respeito (...).
Com efeito, é o método do diálogo das fontes na promoção da coordenação das normas do direito brasileiro e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações de trabalho, por força de sua dimensão objetiva irradiando-se por todo o ordenamento jurídico brasileiro, que fazem uma releitura, por meio das cláusulas gerais da boa-fé objetiva e da função social do contrato do direito civil constitucionalizado, do art. 7º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, e do art. 444 da Consolidação das Leis do Trabalho, no sentido de que, mesmo diante da ausência de uma legislação complementar que limite a liberdade contratual do empregador de unilateralmente romper o contrato de trabalho de vários trabalhadores por um mesmo motivo de ordem econômico-conjuntural ou de ordem técnico-estrutural, o direito potestativo do empregador nas despedidas coletivas não mais subsiste no direito brasileiro, pelo que a extinção contratual no caso depende de uma negociação ´revia entre trabalhadores e seus representantes e o empregador na tentativa de serem encontradas alterativas menos traumáticas que a despedida em massa, como férias coletivas, redução da jornada e do salário, suspensão d contrato de trabalho para os trabalhadores participarem de curso de qualificação profissional com o recebimento de ajuda compensatória sem natureza salarial etc, aliás, previstas pela legislação trabalhista brasileira. (ALMEIDA, 2015, LTr 79-05/527).