As mulheres, em decorrência simplesmente de seu gênero, são, em regra, tratadas em condição de subordinação, sendo este um latente marcador de sua dominação ao longo da história.
Porém, mulheres negras se encontram, em geral, em situação de duplicidade na ordem de subordinação, em virtude do insistente racismo que permeia a sociedade, associado, rotineiramente, a questões de vulnerabilidade social. Trata-se de um cenário de múltiplas discriminações, onde são conexas três características: gênero, raça e classe social.
Paralelo a isso, estatísticas comprovam que a mulher negra possui um índice de vitimização bem mais elevado que mulheres brancas.
Nesse contexto se destaca recente obra divulgada pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), denominado Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil (WAISELFISZ, 2015). Nesse estudo se criou um tópico denominado “A Cor das Vítimas”, no qual se pontuou que, com raras exceções geográficas, a população negra tem sido a principal vítima da violência letal no País, provocando um crescimento de forma exponencial no índice de vitimização da população negra nos últimos anos.
Tal panorama se acentua a partir da análise das taxas de homicídios entre a população branca e a negra no Brasil, pois no mencionado Mapa da Violência se verificou que o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8% entre 2003 e 2013, ao passo em que os homicídios de negras aumentaram 54,2% no mesmo período. Repare-se: o indicador que refletia a vitimização negra, em 2003, era de 22,9%, ou seja, proporcionalmente, morriam assassinadas 22,9% mais mulheres negras do que brancas; esse indicador cresceu, ao longo do período 2003-2013, para se situar em 66,7%.
Percebe-se portanto, que, dentro do grande cenário de discriminação contra a mulher, persistem subconjuntos de condições específicas que fazem com que algumas mulheres se encontrem em situação de ainda maior desvantagem, posto que este preconceito de gênero se associa a outros (em especial o racismo), ocasionando em um sério e agravado problema de violência.
Sobre este tema citamos trecho da obra denominada Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil (MARCONDES, 2013) em que se relata:
As discriminações de raça e gênero produzem efeitos imbricados, ainda que diversos, promovendo experiências distintas na condição de classe e, no caso, na vivência da pobreza, a influenciar seus preditores e, consequentemente, suas estratégias de superação. Neste sentido, são as mulheres negras que vivenciam estas duas experiências, aquelas sempre identificadas como ocupantes permanentes da base da hierarquia social.
A distribuição de recursos na sociedade é profundamente marcada pela condição de raça e gênero dos indivíduos. O debate tradicional sobre as desigualdades de gênero não raro obscurecia a heterogeneidade dos grupos de mulheres, dando centralidade às questões enfrentadas pelas mulheres das classes dominantes. O reconhecimento da diversidade das experiências, especialmente a partir da introdução da variável étnica e racial, permitiu aproximações para incorporar, à perspectiva feminista, a complexidade da realidade das mulheres, dos papéis que assumem e das expectativas a elas direcionadas.
O fato é que as mulheres negras, em geral, vivenciam a experiência da violência com nuances de opressão distintas, de modo que tais condições devem ser levadas em consideração ao se objetivar uma real análise dos fenômenos sociais que norteiam tal violência. Do mesmo modo, tal percepção é necessária para se identificar mecanismos de contenção e erradicação da violência doméstica que sejam realmente adequados e eficazes.
Ainda, no já mencionado Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil (MARCONDES, 2013), em tópico específico sobre a violência, destaca-se:
Não é fácil admitir nem a si própria a violência sofrida, seja ela de qual tipo for. No caso das mulheres negras, esta história se complica, pois são muitas as situações de violência às quais elas são expostas, multiplicando-se os riscos de vitimização na experiência das violências originárias tanto da estrutura patriarcal quanto do racismo brasileiro, localizando a mulher negra na dicotômica situação de sofredoras e guerreiras nas suas representações essencializadas atualmente.
Segundo White (2002, p. 148), entre as várias representações sociais acerca das mulheres negras, a representação como vítimas sofredoras “serve para mantê-las passivas e confusas em relação à violência. Este estereótipo não influencia apenas nossas relações íntimas, mas também nosso dia a dia”.
É o que pode ser averiguado na análise do caso de Sirlei, uma carioca, trabalhadora doméstica, que em 2007 foi agredida às 5h da manhã por um grupo de cinco jovens brancos de classe média alta no momento em que esperava o ônibus para ir ao trabalho. Os jovens alegaram que a confundiram com uma prostituta, o que justificaria a agressão na percepção deles. Após a agressão e o roubo, ela se dirigiu ao trabalho em vez de chamar a polícia. Chegando ao trabalho, foi socorrida pelo empregador, que a encaminhou ao hospital e à delegacia. Apenas por meio da unificação das categorias analíticas de raça, gênero e classe social é possível interpretar este caso. Para compreender como, além de ser identificada como vítima em uma agressão, ela também teve de se identificar como possuidora de direitos à denúncia, ao socorro e à dignidade como qualquer mulher. Outra forma de desigualdade embutida neste exemplo é a colagem do estereótipo de prostituta à mulher negra, que, no caso, a expôs a violência.
Percebemos um caráter de invisibilidade no qual se reveste a posição das mulheres negras na sociedade, posto que suas realidades são comumente relegadas a segundo plano, situando-se apenas nas entrelinhas entre a violência vivenciada pela mulher da classe dominante branca e do racismo suportado pelos homens negros.
Neste contexto, torna-se evidente que todos os fatores que culminam neste cenário de maior violência doméstica entre as mulheres negras têm de ser considerados com enfoque, especificidade e interseccionalidade entre gênero, classe social e raça. Esta perspectiva é o que possibilitará intervenções do Estado de forma bem mais ampla, capturando as várias tramas coexistentes, tais como a violência sexual, a conjuntura urbana, a relação entre machismo e racismo, a exploração midiática da imagem da mulher negra e os estereótipos que a perseguem.
DA LEI DO FEMINICÍDIO E A DESCONSIDERAÇÃO DESTE CONTEXTO RACIAL
Em nove de março de 2015 foi promulgada a lei nº 13.104 que, por sua vez, alterou o art. 121 do Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº. 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
Em que pese o grande avanço e relevância perpetrado por meio de tal regramento legal, observa-se que em nenhum de seus elementos se tratou da peculiaridade da violência suportada preponderantemente pelas mulheres negras no Brasil.
Entende-se que, em um país onde as vítimas letais são em absurda maioria negras, onde as questões do racismo estão nitidamente associadas à violência, bem como em razão de um compromisso histórico com a sempre existente segregação racial, era necessária uma previsão específica neste tocante como causa de aumento de pena, cujo rol está previsto no Art. 121, § 7º, do Código Penal, com a seguinte redação:
“Art. 121...
§ 7o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:
I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;
II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;
III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.”
Tal recorte racial, sem dúvida, representaria mais um importante mecanismo de penalização e de protagonismo da causa racial neste cenário de violência generalizada contra a mulher.
Válido frisar que são muitos os críticos da lei e, sem dúvida, haveria ainda mais, caso houvesse um aumento de pena em decorrência da questão racial. Porém, é certo que estes críticos seriam os mesmos que costumam relativizar a violência de modo geral, cunhando ser exagero leis anti-homofobia ou outros regramentos contra o racismo.
Ocorre que neste cenário deve prevalecer o jargão da necessária igualdade, respeitando-se as desigualdades, pois, enquanto as mulheres continuarem a ser assassinadas, predominantemente no seio de suas famílias, a lei será necessária; ao passo que, enquanto tais mulheres forem predominantemente negras, a legislação também tem de ser particularizada.
Por derradeiro, faz-se importante a disseminação e aplicação deste regramento no cotidiano social e penal brasileiro, dando-lhe plena legitimidade e eficácia, de modo que cada agressor compreenda a real dimensão dos seus atos e as prováveis consequências, seja diante de vítimas brancas ou negras.
Do mesmo modo, é preciso que os mecanismos voltados a contenção da violência de fato exerçam seu papel e sejam compreendidas as desigualdades vivenciadas no universo das mulheres brasileiras, sendo captadas suas demandas e suas específicas necessidades.
REFERÊNCIAS
1. WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil. Flasco. Brasília - DF, 2015.
2. MARCONDES, Mariana Mazzini ... [et al.]. Dossiê Mulheres Negras: Retrato das Condições de Vida das Mulheres Negras no Brasil. Ipea. Brasília-DF,2013.
3. WHITE, E. O amor não justifica: mulheres negras e violência doméstica. In: WERNECK, J. O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas; Criola, 2002.