Aborto e anencefalia no Supremo Tribunal Federal.

Breve análise dos votos na ADPF nº 54/2004

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2 OS VOTOS CONTRÁRIOS À INTERRUPÇÃO TERAPÊUTICA DA GESTAÇÃO

A questão do aborto de fetos anencéfalos não repousa em campos serenos e tranquilos, mesmo entre os ministros, como visto, houve divergências e oposição.

O ministro Ricardo Lewandowsi defendeu ser o anencéfalo detentor de vida e, portanto, sujeito de direito protegido pelo ordenamento jurídico. O ministro procurou afastar a possibilidade de ser essa hipótese de interrupção caso de excludente de ilicitude, pois segundo ele o legislador infraconstitucional definiu apenas duas situações que o aborto será isento de pena (art. 128, I e II, do Código Penal), destacando que se fosse vontade do legislador, este teria promovido alteração da legislação de modo a incluir tal hipótese entre aquelas previstas na lei.

Em tempo, enfatizou que caso fosse dada uma decisão favorável no caso do aborto de feto anencéfalo esta teria o condão de legalizar também outras hipóteses de interrupção de gravidez de embrião portador de outras que tivessem pouca ou nenhuma expectativa de vida extrauterina. Assim, percebe-se a flagrante inconstitucionalidade da decisão por violação ao limite do princípio da separação dos poderes (LEWANDOWSKI, 2012, p. 247s.). Ainda, compreendeu o ministro que decidir favoravelmente ao pleito da ADPF n.º 54/2004 seria legitimar a eugenia, esboçando compreensão que não se trataria de uma interrupção terapêutica, mas de um ato egoístico que visa o aprimoramento da espécie humana.

Já o ministro Cezar Peluso também argumentou pela existência de vida do feto anencéfalo, afirmando ainda ser hipótese de aborto.

[...]“o aborto pressupõe uma potencialidade de vida” fora do útero, para que se possa ter por configurado o aborto como crime basta, a meu juízo, a eliminação da vida, abstraída toda especulação quanto a sua viabilidade futura ou extrauterina. Daí, mui diversamente do que se aduz na inicial, o aborto provocado de feto anencefálico é conduta vedada, e vedada de modo frontal, pela ordem jurídica. E, a despeito dos esforços retóricos da autora, aparece, por conseguinte, de todo inócuo o apelo para a liberdade e a autonomia pessoais, fundado na pressuposição errônea de inexistência de proibição jurídico-normativa da conduta. [...] Estou de todo convicto da ofuscante tipicidade da conduta que, preconizada pela arguente, se acomoda, com folga, à definição legal do crime de aborto. A ação de eliminação intencional de vida intrauterina, suposto acometida esta de anencefalia, corresponde ao tipo penal do aborto, não havendo malabarismo hermenêutico ou ginástica de dialética capaz de conduzir a conclusão diversa. (PELUSO, 2012, p. 33ss.)

Para o ministro, o aborto de anencéfalo guarda semelhança com o aborto eugênico, afirmando que a decisão favorável a sua interrupção configuraria um perigoso precedente para o surgimento e legitimação de práticas de eugenia e eutanásia.

No entanto, prevaleceu no Supremo Tribunal Federal, a tese da atipicidade da conduta como se percebe no voto do ministro Marco Aurélio de Mello (2012, p. 54s.):

O anencéfalo é um natimorto. Não há vida em potencial. Logo não se pode cogitar de aborto eugênico, o qual pressupõe vida extrauterina de seres que discrepem de padrões imoralmente eleitos. (...) não se trata de feto portador de deficiência grave que permita sobrevida extrauterina. Cuiada-se tão somente de anencefalia. Na expressão da Dra. Lia Zanotta Machado, “deficiência é uma situação onde é possível estar no mundo; anencefalia, não”[52]. De fato, a anencefalia mostra-se incompatível com a vida extrauterina, ao passo que a deficiência não. (MELLO, 2012, p. 48s.)

O Ministro Joaquim Barbosa Gomes arguiu que

Em se tratando de feto com vida extrauterina inviável, a questão que se coloca é: não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento em que se interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê. A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso porque, ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extrauterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal. (GOMES, 2012, p. 149)

A ministra Cármen Lúcia, também no sentido da procedência da ADPF 54, destacou alguns dos aspectos mais relevantes em relação ao caso, como o direito à saúde, o direto à vida, e toda a questão emocional e psicológica a qual é submetida a gestante. Ressaltou a necessidade de se fazer um juízo de ponderação entre os princípios envolvidos para análise do presente caso e concluiu pela não criminalização dessa hipótese de interrupção da gravidez.

Quem tanto tiver lido haverá de saber que, quando se faz escolha pela interrupção do que poderia ser a vida de um momento ou a vida por mais um mês, não é escolha fácil, é escolha trágica sempre; é a escolha que se faz para continuar e para não parar; é a escolha do possível numa situação extremamente difícil. Por isso, acho que é preciso que se saiba que todas as opções como essa, mesmo essa interrupção, é de dor. A escolha é qual a menor dor; não é de não doer, porque a dor do viver já aconteceu, a dor do morrer também. Ela só faz a escolha possível nesse sentido. E é exatamente para preservar a dignidade da vida, que é o que a Constituição assegura como princípio fundamental do constitucionalismo contemporâneo, do Direito Constitucional contemporâneo, do Direito positivo brasileiro contemporâneo. Por isso acho que, exatamente fundado na dignidade da vida, é que neste caso essa interrupção não é criminalizável, como posto nos votos que me antecederam. (ROCHA, 2012, 174-175)

Em seu voto, o ministro Celso de Mello defendeu o argumento da atipicidade da conduta analisada, pois entendeu que não haveria vida a ser protegida pela norma penal.

[...] o conceito de antecipação terapêutica do parto, porque destituído de tipicidade penal, não se subsume à ideia de aborto. 

Com efeito, evidencia-se, no caso, para efeitos criminais, a caracterização de absoluta impropriedade do objeto, eis que inexistente organismo cuja integridade deva ser protegida pela legislação penal, pois, segundo o Conselho Federal de Medicina, o anencéfalo qualifica-se como “natimorto cerebral”, vale dizer, o feto revela-se organismo destituído de viabilidade e de autonomia existencial em ambiente extrauterino, ou seja, torna-se lamentavelmente plena a certeza de letalidade, seja no curso de processo de gestação, seja no momento do nascimento, seja, ainda, em alguns minutos, horas ou dias após o parto.

Isso significa, presente tal situação, que não se mostra configurado o próprio objeto material do tipo penal, a tornar evidente a ausência de tipicidade penal da própria conduta da mulher gestante e de quem a auxilie no procedimento de antecipação terapêutica de parto.

[...]

Mesmo que se considerasse típica a conduta referente à antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico, ainda assim não haveria como reconhecer delituosidade em tal comportamento.

É que se registra, em referida situação, hipótese configuradora de causa supralegal de exclusão da culpabilidade que se revela apta a descaracterizar a própria delituosidade do fato.

Nessa específica situação, a causa supralegal mencionada traduzirá hipótese caracterizadora de inexigibilidade de conduta diversa, uma vez que inexistente, em tal contexto, motivo racional, justo e legítimo que possa obrigar a mulher a prolongar, inutilmente, a gestação e a expor-se a desnecessário sofrimento físico e/ou psíquico, com grave dano à sua saúde e com possibilidade, até mesmo, de risco de morte, consoante esclarecido na Audiência Pública que se realizou em função deste processo. (MELLO FILHO, 2012, p. 355ss.)

Como se nota, apesar de supor a tipicidade da conduta praticada, alega que mesmo assim não seria possível reconhecer tal comportamento como delituoso, pois estaria configurada a causa supralegal de exclusão de culpabilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Supremo Tribunal Federal, conforme já foi dito, ao fim do julgamento da ADPF 54, julgou procedente o pedido formulado inicialmente, declarando inconstitucional a interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada como aborto pelo Código Penal.

Vários foram os argumentos debatidos a fim de se resolver a polêmica, principalmente aqueles relacionados ao direito à vida do feto anencéfalo em contradição aos direitos da mulher. Também, é possível destacar nos votos dos ministros que se manifestaram pela procedência da arguição teses conferidas pela lei penal que procuraram justificar a posição adotada pelos julgadores, são elas: a exclusão da ilicitude, a exclusão da culpabilidade e a exclusão da tipicidade da conduta.

De logo, já se percebe que existe uma certa divergência quanto ao exato enquadramento dogmático da antecipação do parto do feto anencéfalo, pois são várias as interpretações conferidas pela lei penal.

A primeira teoria a ser ressaltada defende que o caso dos anencéfalos se amolda as excludentes de ilicitude e no julgamento da ADPF 54 foi defendida pelo ministro Gilmar Mendes. Segundo essa tese, a gestante ao interromper a gravidez de feto acometido de anencefalia estaria praticando uma conduta expressamente proibida pela lei, ou seja, haveria sim a prática do crime de aborto, entretanto, em razão da existência de certos fatores, a sua conduta não seria considerada ilícita (AZEVEDO, 2009).

Realmente, faz sentido incluir a questão do anencéfalo dentre as excludentes legais previstas no artigo 128 do Código Penal, que tratam sobre o aborto necessário e o aborto sentimental, pois tais hipóteses buscam proteger a vida e a saúde física e mental da gestante. No caso do anencéfalo, apesar de suas peculiaridades, também se busca a proteção dos mesmos bens jurídicos, o que a partir de uma interpretação mais completa suscitaria na inclusão do fato nesse mesmo rol.

Para os defensores  da segunda tese suscitada no julgamento, tem-se a interrupção da gestação do feto portador de anencefalia como hipótese de exclusão de culpabilidade em razão da inexigibilidade de conduta diversa, e foi discutida pelo ministro Celso de Mello.

As excludentes de culpabilidade também estão previstas no Código Penal, e na sua ocorrência isentam de pena o autor de um fato típico e ilícito. A inexigibilidade de conduta diversa é uma causa supralegal de exclusão de culpabilidade, ocorre quando o agente pratica uma conduta típica e antijurídica, mas não será responsabilizado, pois agiu sob a influência de certas circunstâncias em que não poderia ser exigido que se comportasse em conformidade com o Direito.

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Não existe um modelo previamente definido que estabeleça as situações em que não será exigível a atuação do agente conforme o Direito, essa possibilidade deve ser analisada de acordo com o caso concreto. Desse modo, são as circunstâncias específicas de cada situação que definirão se a hipótese pode ser declarada como inexigível, e a gestação de anencéfalo pode ser considerada como uma delas (SILVA, 2010).

De fato, não existe motivo justo ou legítimo que justifique a obrigação da mulher prolongar a gestação, sabendo que em seu ventre está sendo gerado um ser desprovido de potencialidade vital e que não existe nenhuma possibilidade de cura para a má formação. Além disso, obrigar a gestante a prosseguir com a gravidez de um feto anencéfalo seria o mesmo que expor a mulher a um sofrimento físico e mental desnecessário, um tratamento que pode ser equiparado a tortura.

Desta maneira, com fundamento nos argumentos acima expostos, a inclusão da interrupção da gestação de feto portador de anencefalia como excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa também é perfeitamente admissível.

A terceira tese defendida corresponde a exclusão da tipicidade da conduta de interromper a gravidez, tendo sido esta a opinião que prevaleceu entre a maioria dos ministros votantes. Segundo esta linha de raciocínio, o feto anencéfalo carece de vida, sendo um natimorto cerebral, o que por via de consequência, tornaria o crime impossível ante a impropriedade absoluta do objeto (art. 17 do Código Penal).

Embora exista entendimento diverso, o feto anencéfalo não possui vida viável que enseje a sua proteção pelo Direito Penal, e muito menos que diante dessa certeza de sua inviabilidade que prevaleça sobre os direitos da mulher (NUCCI, 2009). Nesse sentido, Dobrowolski (apud Teixeira, 2010, p. 210) afirma

O feto anencéfalo, porém, é inviável e só possui existência enquanto ligado à mãe, sendo absolutamente insensível por ausência de cérebro. Descabe considerá-lo como dotado de interesses próprios, pois não tem consciência e nunca assumirá a condição de pessoa. De afastar, por essa mesma razão, se esteja na presença de situação fática em que se deva preservar a vida em si mesma. Quanto a esse aspecto, a permissão legal para a interrupção da gravidez resultante de estupro significa que o ordenamento pátrio não adotou a ideia de que toda possibilidade vital merece ser assegurada.

Em todo caso, seria ainda desproporcional qualificar essa conduta como sendo abortiva, pois conforme destacado acima “o ordenamento pátrio não adotou a ideia de que toda possibilidade vital merece ser assegurada” (Dobrowolski apud Teixeira, 2010, p. 210), tendo previsto, como já destacado acima, situações em que mesmo diante de um feto saudável e totalmente viável se permite a realização do aborto.

Assim, dada a certeza de sua inviabilidade, o feto anencéfalo não necessita da proteção estatal, sendo, pois inconstitucional entender criminalizável a antecipação da gestação quando o produto da concepção for portador de anencefalia.

Como se vê, as três teses respondem adequadamente o questionamento quanto ao enquadramento dogmático da interrupção da gravidez de feto com anencefalia, inclusive até se complementam entre si.

Nesse trabalho, adota-se a tese que defende a inexistência de vida no feto anencéfalo, não tendo qualquer expectativa de vida extrauterina, sendo, portanto, atípica a conduta de interromper a gestação, ou seja, não constitui prática abortiva, mas sim, segundo a denominação adotada pelos que entendem pela atipicidade da conduta, antecipação terapêutica do parto.

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Sobre os autores
Ivandro Menezes

É Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (PPGCS/UFCG). Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba (PPGCI/UFPB). Especialista em Direito Constitucional pelo Centro Universitário de João Pessoa - Unipê. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

Patrícia de Moraes Cruz

Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Texto adaptado de Trabalho de Conclusão de Curso de Bacharelado de Direito na FACESF - Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco.

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