1. INTRODUÇÃO
A jurisprudência no Brasil é consolidada no sentido de que o Estado pode ser obrigado a implementar políticas públicas sanitárias em favor de particulares, em razão de a saúde se configurar como um direito público subjetivo a prestações materiais, consoante interpretação dada à Constituição Federal.
Sucede que “direito subjetivo” é termo cujo significado foi dado pela doutrina clássica por volta do século XIX, para disciplinar relações típicas de direito privado, de maneira que, por considerar este conceito inadequado aos casos em que há controle judicial de políticas públicas, este artigo proporá novo sentido a tal expressão, especialmente em se tratando de judicialização da saúde.
2. DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO
Conforme se depreende da leitura dos artigos 196 a 200 da CF, não resta dúvida acerca do caráter público do direito à saúde, cuja garantia passou a ser dever do Estado, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196, da CF).
Nesse contexto, em contrapartida ao dever estatal de promoção e proteção da saúde, consolidou-se a tese do direito à saúde como direito fundamental social, ao qual se aplica a garantia do §1º, do art. 5º, da CF, segundo a qual normas de direitos fundamentais são dotadas de aplicabilidade imediata.
Assim, o direito à saúde passou a ser considerado não somente um direito negativo (que veda interferências indevidas do Estado ou de particulares sobre a esfera jurídica do titular), ou como um direito a prestações em sentido amplo (como, p. ex., organização e regulamentação de um sistema público de saúde), mas também como direito público subjetivo a prestações materiais.
Ou seja, para evitar que o direito à saúde fosse resumido a mera recomendação política proclamada na Constituição, ele foi concebido como fundamento de “posições jurídico-subjetivas concernentes à exigibilidade das mais variadas prestações, inclusive pela via judicial” (FIGUEIREDO, 2014, p. 43).
Na prática, essa tese passou a fundamentar numerosas decisões judiciais obrigando o Poder Público a disponibilizar tratamentos médicos aos requerentes, conquanto os réus alegassem a inviabilidade econômica dos pedidos e vedações de natureza fiscal e orçamentária.
Hoje os Tribunais decidem quase sempre em favor dos demandantes, como demonstra pesquisa realizada por Silvia Badim Marques e Sueli Gandolfi Dallari (2007, p. 105), através da análise de 31 processos judiciais de fornecimento de medicamentos contra o Estado de São Paulo, por meio da qual se descobriu que os juízes subsidiaram a condenação do Estado em 96,4% dos casos analisados.
Em geral, as decisões assentam-se na tese de que a saúde é direito subjetivo que deve ser tutelado independentemente de questões políticas, orçamentárias ou entraves burocráticos. O posicionamento é resumidamente o seguinte: demonstrando o autor ser portador de doença ou enfermidade e que necessita de um determinado tratamento, é obrigação do Estado providenciar a sua implementação.
Contudo, é preciso destacar que a noção clássica de direito subjetivo tem muito pouco a ver com a tutela de direitos fundamentais sociais, cuja garantia deve ocorrer mediante a instituição de políticas públicas adequadas.
Com efeito, atos estatais não devem se subordinar a interesses meramente individuais, uma vez que se associam ao princípio da indisponibilidade do interesse público. É preciso, portanto, uma readequação do conceito de direito subjetivo, para o correto entendimento do que vem a ser o direito subjetivo à saúde.
3. O CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO APLICADO À TUTELA JUIDICIAL DA SAÚDE: NOSSA VISÃO
O termo “direito subjetivo” foi desenvolvido em meados do século XIX, para tratar primordialmente de relações privadas. Windscheid foi responsável pela primeira teoria disposta a conceituar o direito subjetivo, descrevendo-o como vontade juridicamente protegida, por se configurar quando a pessoa (jurídica ou física) quer e age garantida pelas regras do ordenamento.
Logo em seguida adveio a teoria sustentada por Jhering, que, por considerar a primeira insuficiente diante de casos em que há direitos subjetivos sem que haja necessariamente vontade do titular (por exemplo, o menor recém-nascido que recebe herança de seus pais logo após a morte deles), suscitou a tese de que a essência do direito subjetivo não estaria na vontade, mas no interesse. Daí a ideia de direito subjetivo enquanto interesse juridicamente protegido.
Miguel Reale, em suas “Lições Preliminares de Direito”, também se propôs a conceituar o termo, preconizando que “direito subjetivo é a possibilidade de exigir-se, de maneira garantida, aquilo que as normas de direito atribuem a alguém como próprio” (2004, p. 260).
Portanto, baseando-se nessa clássica visão, não seria absurdo imaginar a possibilidade de o Poder Público ser condenado a oferecer qualquer tipo de tratamento prescrito a um paciente, como, por exemplo, tratamento domiciliar fora do Brasil ou medicamento de alto custo para terapia meramente estética, a despeito das várias outras obrigações sociais que o Estado deve satisfazer.
No entanto, essa é evidentemente uma interpretação não condizente com a realidade, já que inexequível diante das inegáveis limitações financeiras e do conceito abrangente de saúde, definida no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde como um “estado completo de bem estar físico, psíquico e social”.
Daí por que se tem sugerido a adoção de outras premissas ao entendimento da saúde como direito subjetivo do indivíduo contra o Estado.
Esse é o posicionamento, dentre outros, de Ricardo Seibel de F. Lima, que, em face da nova realidade trazida pelo Estado Social, propõe a reformulação do conceito de direito subjetivo, sugerindo que se passe a entendê-lo como “direito-função, como poder condicionado a sua respectiva função ou poder desdobrado em dever” (2013, p. 245). No entendimento do autor
(...) não se pode mais conceber qualquer direito subjetivo como um poder absoluto do indivíduo contra a sociedade, o Estado e os demais indivíduos. Essa concepção de direito subjetivo que advém da modernidade funciona quando se trata de duas partes, uma ideia construída sob o modelo implícito da relação entre dois indivíduos, uma relação bipolar entre aquele que tem o direito e outro que tem o dever. Quando levamos em consideração as relações complexas entre membros de uma coletividade podendo usufruir de um benefício difuso comum no qual todos participam em indistintas e incertas parcelas, como entendemos ser o caso dos direitos sociais, essa ideia de direito subjetivo não funciona e deve ser superada. (2013, p. 246).
Portanto, sob os influxos dessa nova visão, não se deve considerar a saúde um direito irrestrito do cidadão em face do Estado, porquanto deve ser exercido de forma razoável. Em outras palavras, o direito subjetivo à saúde está condicionado ao dever de ser razoável e conforme as diretrizes que regem a elaboração de políticas públicas no SUS, como a universalidade, igualdade, eficiência e economicidade.
A consequência prática disso é a impossibilidade de um pedido desse tipo ser deferido com base apenas na genérica afirmativa de que a saúde é direito subjetivo de todos e dever do Estado, como não raro ocorre neste País, inclusive em sede de mandado de segurança.
Sendo controle de políticas públicas, a judicialização da saúde deve ser feita de forma cautelosa, com investigação profunda (produção de provas) acerca do pedido realizado, sob o risco de indesejável desperdício de dinheiro público, fato que se agrava ainda mais em épocas de crise como esta.
REFERÊNCIAS
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito à saúde. 3. ed. Salvador: Juspodivum, 2014.
LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Direito à saúde e critérios de aplicação. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos Fundamentais: orçamento e "reserva do possível". 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 237-253
MARQUES, Silvia Badim; DALLARI, Sueli Gandolfi. Garantia do direito social à assistência farmacêutica no Estado de São Paulo. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 41, p.101-107, fev. 2007. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102007000100014>. Acesso em: 30 jun. 2015.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.