Capa da publicação Recepção da Lei de Anistia pela Constituição de 1988: repercussões da ADPF 153
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As repercussões jurídicas da ADPF 153

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4 A REPERCUSSÃO DO JULGAMENTO

Desde 1948, com a promulgação do Tratado Internacional sobre Direitos Humanos, que a legislação internacional tinha um marco normativo para parametrar as decisões internas de seus Estados. A partir desta declaração muitos outros pactos políticos de defesa de interesses de classe sociais foram assinados pelo Brasil, mas os avanços internos nesta direção foram poucos.

Assim como a Idade Média foi um período considerado obscuro e sem avanços para história da humanidade, o período ditatorial para o Brasil também foi uma hiato compulsório na evolução nacional. A nação ficou voltada apenas aos preceitos americanos, consumindo seus produtos, cultura e tentando imitar sua estrutura política. Por conta disso, avanços importantes na seara internacional foram relegados a um segundo plano, tanto na seara jurídica, como social.

Somente em 1998 o Brasil se submeteu à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, onde passou a submeter suas ações políticas e jurídicas. As leis de autoanistia promulgadas em Estados de exceção há muito condenadas nas cortes internacionais, também foram ratificadas como ilegais perante as cortes e pactos internacionais. Mas no caso brasileiro, o país que acabava de sair de um período longo e obscuro e, mesmo antes, não construiu uma jurisprudência legal ou mesmo uma tradição de respeito a decisões de cortes internacionais que influenciasse as decisões internas.

A relevância das questões internas levadas às cortes internacionais tinha uma linha de ponderação com ratificação, por conta do período ditatorial, a maioria das vezes tardia, (MAZZUOLLI, 2011) nossos juízes não tinham o costume de sequer atentar para as ponderações destas cortes, ainda mais quando as questões tinham relevância política internacional, mas que eram, de certa forma, invasivas à nossa soberania.

As ações intentadas contra o Brasil no plano internacional são consequências desses avanços, vez que o maior acesso a todas as cortes internacionais proporcionou um novo caminho para reparação de danos a direitos humanos ou, no mínimo, para busca de um parâmetro normativo que pudesse consubstanciar as ações internas nas cortes superiores.

Não é, pois de estranhar a opinião do Ministro Marco Aurélio que pontuou que a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos não tem eficácia no campo prático e que não altera as decisões anteriormente tomadas quanto ao assunto. Óbvio que esta posição se baseia no costume comum no Brasil de esperar o tempo curar tudo e da memória curta do povo, dessa forma não dando muita repercussão a decisão da corte, comentando á base de evasivas jurídicas as pressões internas e externas quanto à condenação do CIDH, os ministros deixam a justiça de lado em nome da própria segurança.

O Ministro Ayres Brito fez referência à imagem do Brasil em suas considerações que, para ele, ficaria maculada nos órgãos externos de justiça internacional. No entanto, é de se perguntar a quem isso preocupa, em um país conhecido por acatar sem punir todos os tipos de violações internas a formas básicas e fundamentais de direitos sociais e políticos.

Mazzuoli (2011) Compara o Brasil a outros países que atenderam as diretrizes das cortes internacionais revogando leis arbitrárias que anistiavam torturadores e responsabilizava criminalmente os mandantes, independente de sua posição política. Convém lembrar que o Brasil há muito reivindica uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU e, com essa retrospectiva interna na seara de Diretos Humanos, com que moral o país pretende argumentar sua capacidade de arbitrar ou julgar questões de países em beligerância ou com violações graves aos direitos de seus cidadãos. Ainda mais quando vem da própria ONU o entendimento da prevalência da punição dos crimes contra a humanidade sobre qualquer norma de direito interno.

Para tentar amenizar a própria imagem o Estado brasileiro, através do executivo, fez o que pode para encontrar os restos mortais das vítimas, concedeu, em alguns casos indenizações e tipificou os crimes de tortura e sequestro como hediondos, mas no resto como propagar informação verdadeira sobre a guerrilha do Araguaia e a ditadura em si, todas diretrizes determinadas na sentença do CIDH o Estado brasileiro prefere esquecer. A parte da sentença que tratava das obrigações penais impostas ao Estado Brasileiro, até agora nada foi cumprido.

O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença (CIDH, 2010, p. 14).

Como o Estado vai conduzir investigações com pretensões de punibilidade penal se teme até em revogar a própria lei que anistiou criminosos e torturadores.Talvez depois que todos eles estejam mortos de senilidade. Alguns, como João Curió, continuaram a matar mesmo depois da redemocratização e tem até seus nomes homenageados em cidades.

Há autores que vêem na passividade da sociedade uma confissão de culpa por ter incentivado o golpe (Reis Filho 2001), como se todo o povo brasileiro tivesse participado de movimentos como a TFP ou do Integralismo. Não se poderia esperar da sociedade outra reação época que não fosse se manter o mais passiva possível, pois o povo era bombardeado por uma guerra de informações e a história recente trazia temor tanto do comunismo quanto do capitalismo exacerbado.

No entanto, a mesma passividade não se justifica nos dias de hoje, o Brasil é signatário de importantes tratados, quase todos cumpridos por seus vizinhos da América do Sul durante o processo de redemocratização. Entre estes tratados está a Convenção de Viena que reafirma a preponderância dos tratados e convenções internacionais sobre o direto interno de cada país. O Brasil como signatário não observou estas diretrizes em seu posicionamento diante do que aconteceu no período ditatorial.

Aliás, apesar da constituição fazer diversas referências aos tratados internacionais do qual o país faz parte, estes tratados são ainda subsidiários à lei interna. Os pactos ratificados pelo Brasil só tem preponderância quando estes não chocam com a legislação interna, ou dependem apenas de atos do executivo. Nosso legislativo só lembra destes tratados para os debates políticos entre governo e oposição.O judiciário, acostumando-se a uma independência e poder cada vez maior, já que quase todas as questões legislativas e executivas controversas terminam por solicitar interferência do STF ou de outros tribunais superiores, não se sentem obrigados pelos princípios que regem os tratados internacionais.

A forma de se desobrigar de cumprir os tratados é denunciá-los, ou seja, manifestar contra o que foi pactuado para poder isentar-se de cumpri-lo.(Mazzuoli, 2011. Ocorre que nossos políticos e juízes sabem que um país que pretende se tornar uma liderança mundial não pode retroceder tanto.O significado da reafirmação dos direitos humanos, principalmente em países emergentes, contribui para consolidação internacional dos ideais e princípios internos defendidos pelo Brasil como necessários para paz mundial.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A nossa tão prolixa Constituição faz diversas referências aos tratados internacionais, mas está claro que nossos tribunais tomam em preponderância as leis internas. Diversos países na América Latina revogaram suas leis de autoanistia e levaram aos tribunais penais ditadores e criminosos políticos. O Brasil fica em uma posição debilitada em relação a estes países. Não há como negar que a posição do STF macula a imagem do país frente aos organismos internacionais de proteção de direitos humanos.

É preciso, no entanto, entender o que levou a este posicionamento do tribunal pátrio e porque é preciso que se busque refazê-lo. É óbvio que há uma áurea de temor nas decisões quanto os desmandos da ditadura, principalmente no que se refere a ADPF 153, é que a ditadura deixou marcas tão profundas que até hoje teme-se por seu retorno.

Os argumentos dos nossos tribunos foram bem mais políticos que técnicos, mas mesmo os argumentos políticos carecem de uma base mais profunda para que se possa considera-los com fundamentação sólida o bastante para deixar tantos crimes impunes. A tortura no Brasil já é um elemento histórico desde a escravidão, passou a ser elemento político e já está se tornando quase cultural que se utiliza no dia-a-dia das polícias, da formação de cadetes no exército, recepção de calouros em universidades, em penitenciárias e até em lares familiares. O próprio Subcomitê de Prevenção a Tortura (SPT), órgão vinculado a ONU, revela em relatório de 2012 que a tortura no Brasil é generalizada.

Quebrar esse ciclo de legitimação de poder através da força foi a grande oportunidade perdida pelo Brasil através do STF quando considerou uma lei de autoanistia válida e constitucional. Não é a toa que o SPT diz que o povo brasileiro já se conformou com a tortura e que alguns até defendem como forma de garantia de segurança.

Em um país que se ressente pela impunidade institucionalizada, com leis que punem seletivamente pobres e ricos e que sofre com a descredibilidade de suas instituições públicas, principalmente da Justiça, a posição do STF quanto a ADPF 153 deixou a sensação de abandono, não só das famílias de presos e torturados políticos, mas da própria justiça.


REFERÊNCIAS          

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CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Barrios Altos vs. Perú. Sentença de 14 de março de 2001. Série C. n. 75. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_75_esp.pdf>. Acesso em; 22. out. 2015.

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LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords.). Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 226.

MAZZUOLLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

NOSSA, Leonencio. Mata! O major Curió e as Guerrilhas no Araguaia. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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SÃO PAULO (Estado). 23ª Vara Cível. Sentença do processo nº 583.00.2005.202853-5/000000-000. Juiz de Direito Gustavo Santini Teodoro. Autores: Janaina de Almeida Teles e outros. Réu: Carlos Alberto Brilhante Ustra. São Paulo: 08 de outubro de 2008. In. Diário de Justiça Eletrônico, n. 3, 1ª instância da Capital (09 de outubro de 2008).                   


Notas

[i] A reforma política de 1967 impôs a existência de apenas dois partidos a Aliança Renovadora Nacional – ARENA e o Movimento Democrático Brasileiro - MDB.

[ii] Artigo 3º - Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.

Artigo 4º - Direito à vida. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

Artigo 5º - Direito à integridade pessoal.Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes.

[iii] Na ação, o Ministério Público Federal (MPF) acusa o Coronel BrilhanteUstra pelo desaparecimento do fuzileiro em 1971, sequestrado por agentes do Deops e depois mantido encarcerado do DOI-Codi, onde foi visto por outros presos pela última vez.Em 2010, o Supremo já considerou válida a Lei da Anistia, ao rejeitar ação que pretendia punir agentes políticos que atuaram na repressão. A ação, no entanto, ainda tem um recurso a ser julgado; outra ação semelhante também tramita no STF.

[iii]Em 29 de janeiro de 2010 o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, encaminhou ao Supremo Tribunal Federal parecer em que se manifesta contrário à revisão da Lei da Anistia. Para ele, a OAB participou ativamente do processo de elaboração da lei, que tinha o objetivo de viabilizar a transição entre o regime autoritário militar e o regime democrático atual. Segundo suas palavras, "Com perfeita consciência do contexto histórico e de suas implicações, com espírito conciliatório e agindo em defesa aberta da anistia ampla, geral e irrestrita, é que a Ordem saiu às ruas, mobilizou forças políticas e sociais e pressionou o Congresso Nacional a aprovar a lei da anistia".[7] Em 29 de abril de 2010 o Supremo rejeitou o pedido da OAB, por maioria 7 a 2.

[iv] EC 26. Art. 1º Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão,unicameralmente, em Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de1987, na sede do Congresso Nacional.

 Art. 2º. O Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembleia Nacional Constituintee dirigirá a sessão de eleição do seu Presidente.

 Art. 3º A Constituição será promulgada depois da aprovação de seu texto, em dois turnos dediscussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros da Assembleia Nacional Constituinte.

 Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta eindireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares.

[v]O projeto da Lei de Anistia é votado e aprovado com 50,61% dos votos, ou seja, 206 votos do ARENA contra 201 do MDB.

[vi] Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, julgou improcedente a argüição, nos termos do voto do Relator, vencidos os Senhores Ministros Ricardo Lewandowski, que lhe dava parcial provimento nos termos de seu voto, e Ayres Britto, que a julgava parcialmente procedente para excluir da anistia os crimes previstos no artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso. Ausentes o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, licenciado, e o Senhor Ministro Dias Toffoli, impedido na ADPF nº 153-DF. Plenário, 29.04.2010 (STF, 2010).

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Sobre a autora
Rosana Carvalho Barboza Teixeira

Advogada, formada pela UEMA, pós-graduanda em Direito Público pelo IMADEC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Rosana Carvalho Barboza. As repercussões jurídicas da ADPF 153. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4849, 10 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48253. Acesso em: 28 mar. 2024.

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