4. Inexistência de “proveito econômico” stricto sensu nas demandas de saúde
A questão crucial a ser analisada, para que se possa saber qual o regime cabível para fixação da condenação em honorários advocatícios, é ver se, nas demandas de saúde, há proveito econômico que possa servir de lastro à aplicação dos percentuais descritos no NCPC. Tal se faz importante para qualquer demanda envolvendo a saúde, seja em relação a entes privados ou à Fazenda Pública.
Isso porque, como já se referiu supra, o NCPC reitera a disposição do código anterior, no sentido de que a condenação em honorários nas demandas cujo proveito econômico seja inestimável seja feita por arbitramento (art. 85, § 8º). Para tanto, importa elencar os pontos mais relevantes que demonstram a inviabilidade de identificar as prestações que se demandam nas ações de saúde com aquelas atinentes a algum “proveito econômico” stricto sensu.
O primeiro aspecto que importa salientar é que o conceito de proveito econômico está intrinsecamente relacionado àquilo que se acresce ao patrimônio de determinado sujeito. Quando se pleiteia uma indenização, por exemplo, ou uma determinada prestação obrigacional, ou um vencimento de natureza salarial, ou mesmo um direito qualquer que possa ser economicamente avaliado, esse “direito” a ser judicialmente concretizado é suscetível de apropriação pela parte, integrando seu patrimônio jurídico, e podendo, por conta disso, ser mesmo suscetível de transmissão por sucessão.
Digamos que a parte venha a falecer no curso do processo, antes do trânsito em julgado de demanda em que tenha pleiteado indenização por dano moral. Por certo que uma futura execução poderá ser movida pelos seus sucessores, uma vez que na demanda restou incorporado o direito vindicado ao patrimônio econômico da parte. Nas demandas de saúde, por outro lado, caso a parte venha a óbito no curso da demanda, ela será inevitavelmente extinta por perda superveniente de interesse. Ainda que se julgue devida determinada prestação de saúde (a concessão de um medicamento, por exemplo), seu espólio jamais poderá pleiteá-la, pois ela nunca integrou o patrimônio econômico da parte falecida.
Isso porque, no que diz respeito a prestações de saúde, seu conteúdo está relacionado à proteção, promoção e sua recuperação, dentro do contexto de acesso universal e igualitário, aqui compreendido em sentido geral, conforme previsão do artigo 196 da CRFB em relação saúde pública. Os pedidos, como visto, envolvem não apenas a mera concessão de medicamentos ou a realização de tratamentos, mas ao fim e ao cabo a obtenção de prestação que possa atender à remissão da doença ou agravo à saúde que é descrita na causa de pedir.
Em última análise, o que se pleiteia em face do Estado não são determinadas obrigações pecuniárias stricto sensu, mas prestações suficientes à manutenção da saúde, na exata medida da necessidade que a hipótese fática levada a Juízo demanda, sendo típicas obrigações de fazer, sem conteúdo econômico. Por conta disso, os valores despendidos nos tratamentos ou nos medicamentos em si pleiteados não se incorporam ao patrimônio do seu requerente. São vinculados a determinado fim e indisponíveis.
Prova disso é que a parte, ao mesmo tempo em que tem o direito a buscar prestações de saúde em face do Estado, tem a obrigação de restituir aquilo que não foi estritamente utilizado para o seu tratamento. Nesse sentido, veja-se seguinte julgado do STJ:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PORTADORA DE CÂNCER DE MAMA. PROMOÇÃO, PROTEÇÃO E RECUPERAÇÃO DA SAÚDE. DEVER DO ESTADO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES DA FEDERAÇÃO. DIREITO PERSONALÍSSIMO. INTRANSMISSIBILIDADE.
(...)
6. O objeto do presente feito é o fornecimento de medicamento, tendo em conta a situação pessoal e específica da impetrante. Trata-se, portanto, de ação de cunho personalíssimo, a ser exercida pelo seu próprio titular, e intransmissível. De modo que devem ser devolvidos eventuais medicamentos não utilizados pela parte autora.
7. Remessa oficial e apelação da União parcialmente providas. Apelação do Município de Assu/RN improvida. (REsp 1436198/RN – 2ª T. – Relator Min. Herman Benjamin – DJe 19/03/2014).
Em outro julgado, assim decidiu o TRF da 4ª Região:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. FALECIMENTO DO PACIENTE. PERDA SUPERVENIENTE DO OBJETO. MULTA POR DESCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. DEVOLUÇÃO DE MEDICAMENTOS NÃO UTILIZADOS. 1) O óbito do paciente acarreta a perda superveniente do objeto da ação que postula o fornecimento de medicamento, não havendo mais interesse processual, de modo que desnecessário se torna o provimento jurisdicional. 2) Havendo cumprimento da antecipação da tutela pelo autor, sendo posteriormente ressarcido da compra dos medicamentos, descabe a alegação de demora na prestação jurisdicional pela União. 3) A condenação pecuniária não pode se configurar em enriquecimento sem causa aos apelantes, considerando que o valor da multa tido por devida é próximo ao que foi despendido para a aquisição dos medicamentos. 4) Permanece a obrigação do autor em devolver os medicamentos que eventualmente restaram do tratamento, eis que foram custeados pelo erário. Caso verificada a existência de medicação excedente no Hospital, ou em posse do autor, esta deve ser devolvida a União, salvo comprovada inexistência de excedentes. (TRF4, AC 5007431-50.2012.404.7204, Quarta Turma, Relator p/ Acórdão Candido Alfredo Silva Leal Junior, juntado aos autos em 21/05/2015)
Dito de outra forma, as prestações relacionadas ao direito à saúde não têm caráter remuneratório (devidas em razão de algum serviço ou uso de bem), compensatório ou indenizatório (reparação ou indenização por prejuízos). A saúde, em verdade, é um direito humano fundamental e sua prestação uma obrigação de fazer de direito público, assim, de inestimável valor econômico. O Estado é obrigado ao seu atendimento na medida estrita da necessidade, não se incorporando ao patrimônio da parte aquilo que pleiteia em juízo.
5. Conclusão
Analisando o que foi exposto supra, é possível concluir que nas demandas de saúde não há falar em proveito econômico stricto sensu, podendo-se sintetizar os seguintes argumentos:
- A saúde é um direito social com alto grau de concretude constitucional, de caráter público, universal e integral;
- Nas demandas de saúde, conquanto a causa de pedir seja limitada pela descrição fática da situação de saúde da parte, o pedido, ainda que não seja genérico, tem caráter abrangente;
- Em última análise, o pedido final nas demandas de saúde é a prestação pública necessária à cura, tratamento ou remissão da situação de saúde da parte, sendo inestimável o seu proveito econômico;
- A prestação de saúde vindicada judicialmente não se integra ao patrimônio econômico da parte (nada a ele se acresce), uma vez que ela se destina precipuamente à manutenção de sua saúde, nos limites da sua necessidade. Descabe, por exemplo, eventual apropriação pela parte ou pelo espólio de medicamentos não utilizados, seja por óbito, cura, ou rejeição ao tratamento;
Portanto, descabe a fixação da verba honorária em eventuais percentuais sobre o valor da causa ou da prestação vindicada, não sendo aplicável o art. 85, § 3º, do NCPC. Em realidade, não obstante as alterações que o NCPC promoveu sobre o regime de fixação de sucumbência em face da Fazenda Pública, não houve alteração substancial no que diz respeito às demandas de saúde, dada a sua natureza peculiar. Assim, sendo inestimável o proveito econômico da parte, ante as características precípuas do direito à saúde, devem-se arbitrar os honorários advocatícios por apreciação equitativa, na forma do art. 85, § 8º, do NCPC.
Tal entendimento, ademais, privilegia a isonomia, uma vez que, se o sistema de saúde pública não pode fazer distinções entre pacientes (não há doentes mais ou menos importantes), não se podem distinguir processos em relação à fixação da sucumbência, uma vez que em todos eles, invariavelmente, discute-se o mesmo bem jurídico: a saúde e a vida. Por certo, a distinção que se pode fazer é em relação ao trabalho jurídico do advogado em si, considerando os ditames do art. 85, § 2º, o que pode propiciar sucumbências fixadas em valores diversos em cada processo, de acordo com os critérios postos na norma.
Em outras palavras, em se tratando de pleitos de saúde pública, não é cabível considerar que o advogado que patrocina demanda em que o paciente pleiteie tratamentos mais caros seja melhor remunerado do que outro que pleiteie aqueles menos onerosos, já que, em tese, a “natureza e importância da causa” (art. 85, § 2º, III) são necessariamente as mesmas. Mais do que isso, a lógica ora proposta evita que sejam pleiteados tratamentos mais caros em face do Erário, em detrimento de outros análogos de igual eficácia e menor valor, como meio de majorar valores de sucumbência.
6. Referências:
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A regra da eventualidade como pressuposto da denominada teoria da substanciação. Revista do Advogado, São Paulo, nº. 40, julho, 1993. |
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. |
MARINONI, Luiz Guilherme. Processo de Conhecimento, São Paulo: Revista dos Tribunais, 7ª Ed., 2008. |
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. Saraiva: São Paulo, v. I, 1999. |
VILLAS-BÔAS, Eduardo da Silva. Perfil constitucional do direito à saúde: natureza jurídica, eficácia e efetividade, 2014, disponível em http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,perfil-constitucional-do-direito-a-saude-natureza-juridica-eficacia-e-efetividade,47837.html, acesso em 21/030/2016. |
Notas
[1] Ação ordinária nº 5000533-31.2015.4.04.7005, juíza Lília Côrtes de Carvalho de Martino, sentença proferida em 29/03/2016.