A nova regra da penhorabilidade de salário quando a penhora objetiva o adimplemento de dívida de caráter alimentar lato sensu. Agora, salário se paga com salário.
O processo do trabalho, como sabido, muito embora siga suas próprias regras, se socorre corriqueiramente do processo civil. Este, por sua vez, lhe é aplicado subsidiariamente, com arrimo no artigo 769 da CLT, em caso de omissão da norma celetista e compatibilidade entre a norma do processo civil a ser aplicada e a principiologia processual trabalhista.
E o Novo Código de Processo Civil, que passou a vigorar recentemente, trouxe inúmeras regras novas e aptas a contribuir positivamente com o desenvolvimento do processo do trabalho.
Algumas delas darão novas cores à dinâmica do processo do trabalho, enquanto outras pouco ou nada acrescentarão. Entretanto, chama e muito a atenção a norma instituída pelo §2º do artigo 833 do NCPC.
Entendamos a inovação havida e por que ela será tão importante para a efetividade do processo trabalhista, estando apta, inclusive, a diminuir consideravelmente o número de execuções frustradas.
No cotidiano das execuções trabalhistas, é comum nos depararmos com situações em que o trabalhador tem reconhecido seu crédito pelo juiz, mas na hora de recebê-lo encontra dificuldades. Isso ocorre, muitas vezes, quando o empregador, seja pessoa jurídica ou pessoa física, tentar blindar de alguma forma seu patrimônio, escondendo-o de diversas formas.
Há casos específicos em que o empregador “quebra” e resolve, por exemplo, voltar ao mercado de trabalho. Há também os casos dos empregadores domésticos que, muitas vezes, também são empregados de outras empresas, além de uma série de outras situações que poderiam ser aqui relatadas. Nessas situações, o empregador virava empregado e se mantinha em zona de conforto para não pagar o crédito de seu ex trabalhador, pois protegido pela antiga norma que previa a absoluta impenhorabilidade do salário. Ou seja, seu salário, não raras vezes elevado para o padrão médio, não poderia ser penhorado.
Aprofundo, com mais detalhes, o problema aqui trazido.
O artigo 833 do NCPC elenca, em seus 12 incisos, aqueles bens escolhidos pelo legislador como sendo impenhoráveis. Dentre tais incisos está o de número IV, segundo o qual são impenhoráveis “os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montépios, bem como quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o §2º”. Em suma, segundo o referido comando legal, o salário “lato sensu” é, em regra, impenhorável.
Muito embora a jurisprudência da área trabalhista fosse dividida quanto ao tema, parcela considerável dos juízes entendia que seria possível se penhorar percentual do salário se a penhora objetivasse a efetividade de uma execução de crédito também com natureza alimentícia. Havia, todavia, considerável corrente refratária à aplicação desse entendimento que, por seu turno, se baseava em entrave legal que, sob o ponto de vista meramente positivista, impossibilitava qualquer penhora de salário. Eis a regra prevista no Código de Processo Civil anterior, instituída pelo artigo 649, IV:
“São absolutamente impenhoráveis: IV – os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3o deste artigo”.
O parágrafo segundo do referido comando legal excetuava dessa regra de impenhorabilidade o caso de penhora para pagamento de prestação alimentícia, aí não incluído o crédito trabalhista.
O próprio Tribunal Superior do Trabalho, por meio da SDI-II (Seção de Dissídios Individuais II), formulou Orientação Jurisprudencial que não flexibilizou o comando legal citado no parágrafo anterior:
“OJ 153. MANDADO DE SEGURANÇA. EXECUÇÃO. ORDEM DE PENHORA SOBRE VALORES EXISTENTES EM CONTA SALÁRIO. art. 649, IV, do CPC. ILEGALIDADE. (DEJT divulgado em 03, 04 e 05.12.2008). Ofende direito líquido e certo decisão que determina o bloqueio de numerário existente em conta salário, para satisfação de crédito trabalhista, ainda que seja limitado a determinado percentual dos valores recebidos ou a valor revertido para fundo de aplicação ou poupança, visto que o art. 649, IV, do CPC contém norma imperativa que não admite interpretação ampliativa, sendo a exceção prevista no art. 649, § 2º, do CPC espécie e não gênero de crédito de natureza alimentícia, não englobando o crédito trabalhista” (grifei).
Vejam que não havia, sob o ponto de vista legal, possibilidade de flexibilização à regra da impenhorabilidade dos salários. Quem seguia outro caminho fundamentava suas decisões em normas constitucionais e principiológicas, tendo em conta especialmente os predicados da razoabilidade e proporcionalidade.
Parece ser o caso do juiz e doutrinador Mauro Schiavi que, em seu Manual de Direito Processual do Trabalho, página 1211, (na 10ª edição e nas anteriores), opina:
“À luz dos princípios da razoabilidade, da equidade e da justiça no caso concreto, pensamos que a regra da impenhorabilidade absoluta do salário deve ser relativizada na execução trabalhista uma vez que tanto o reclamante como o executado postulam verbas de índole alimentar: o exequente buscando a satisfação do seu direito e o executado visando à defesa da verba alimentar. Inegavelmente, o Juiz do Trabalho está diante de dois males, prestigiar o credor trabalhista ou imunizar o salário do devedor do crédito trabalhista, devendo adotar a teoria do mal menor, constritando parte do salário do reclamado, em percentual que não atente contra sua existência digna”.
Há até um enunciado formulado na 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho do Tribunal Superior do Trabalho em sentido semelhante1.
O fato novo é que tal entrave, entretanto, com a novel regra processual civil, deixou de existir, pois a norma insculpida no §2º do artigo 833 do NCPC é clara no sentido de que “o disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independente de sua origem”. E o uso, pelo legislador, dos termos “independente de sua origem” afasta qualquer possibilidade de interpretação restritiva quanto à aplicabilidade da exceção quanto à impenhorabilidade.
Não se mostra mais necessário, portanto, que o juiz do trabalho envide maiores esforços interpretativos para realizar penhora de salário de devedores de créditos trabalhistas. Basta, agora, aplicar a letra da lei, pura e crua.
Poderia algum intérprete menos imparcial argumentar que a prestação alimentícia a que se refere o indigitado dispositivo legal é de natureza strictu sensu e nela não estariam incluídos os créditos trabalhistas de natureza salarial. Essa possibilidade, entretanto, não existe, pois além do uso dos termos acima referidos (“independente de sua origem”), é sabido que a norma não tem contém termos inúteis e vazios de significado.
O próprio Tribunal Superior do Trabalho, através de Instrução Normativa de número 39, já se manifestou positivamente em relação à plena aplicabilidade do indigitado §2º do artigo 833 do NCPC e não poderia ser diferente.
O Desembargador do Trabalho da 13ª Região (Paraíba) e Professor, Dr. Wolney de Macedo Cordeiro, em seu livro intitulado Execução no Processo do Trabalho (página 342 da 1ª edição), resume, de forma bastante didática, o que até aqui se expôs:
“A ressalva preconizada pelo texto vigente, em relação à impenhorabilidade das parcelas remuneratórias do devedor, diz respeito à execução de prestações alimentícias, bem como à constrição de verbas salariais acima de cinquenta salários mínimos. Nessa situação, o texto do NCPC foi mais abrangente do que o anterior, posto que a redação atual do §2º do art. 833 permite a penhora de salário na execução de prestação alimentícia independentemente de sua natureza. No texto anterior, não havia essa abrangência, sendo pacífico o entendimento de que a possibilidade de penhora de salário limitava-se à execução de prestação alimentícia strictu sensu. O crédito trabalhista, nessa perspectiva, teria o caráter genericamente alimentício, mas não seria enquadrado na espécie de prestação alimentícia”.
Importa dizer, ainda, que a norma prevista no inciso X do aqui tratado artigo 833 do NCPC (que trata da impenhorabilidade da quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 salários mínimos), já vinha também sendo interpretada com reservas por considerável parcela dos juízes trabalhistas, pois é plenamente possível que os valores depositados em poupanças sejam provenientes de salário de seus proprietários.
Além disso, a própria norma que estabelece a impenhorabilidade das cadernetas de poupança já era passível de críticas, pois quem pode poupar dinheiro e investi-lo deveria poder também pagar suas dívidas. Já há, também, um Enunciado da 1ª Jornada Nacional de Execução Trabalhista, realizada em novembro de 2011, segundo o qual:
“Enunciado 23. EXECUÇÃO. PENHORA DE CADERNETA DE POUPANÇA. INCOMPATIBILIDADE DO ART. 649, INCISO X, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC) COM OS PRINCÍPIOS DO DIREITO E PROCESSO DO TRABALHO. I – A regra prevista no art. 649, X, do CPC, que declara impenhorável a quantia depositada em caderneta de poupança até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, é incompatível com o direito e o Processo do Trabalho. II – A incompatibilidade com os princípios do direito e do Processo do Trabalho é manifesta, pois confere uma dupla e injustificável proteção ao devedor, em prejuízo ao credor, no caso e em regra, o trabalhador hipossuficiente. A proteção finda por blindar o salário e o seu excedente que não foi necessário para a subsistência e se transformou em poupança. Há, na hipótese, manifesta inobservância do privilégio legal conferido ao crédito trabalhista e da proteção do trabalhador hipossuficiente”.
O juiz, como aplicador e intérprete da norma posta, tem o dever, consoante exposto no artigo 8º do NCPC, de, ao aplicar o ordenamento jurídico, atender “aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”.
Neste breve arrazoado, trato justamente de uma situação que é exemplo claro de como o juiz pode otimizar o atendimento aos fins sociais e às exigências do bem comum, aplicando a letra da lei, da forma como ela é posta, pois a vigente norma processual civil, de forma explícita, elimina quaisquer possibilidades de interpretação restritiva quanto à penhora de salário para a quitação de execução decorrente de crédito alimentar.
Em suma, “salário” agora pode ser penhorado se o objetivo é o pagamento de “salário”. E os mal pagadores que recebiam e recebem altos salários, muitas vezes bem acima da mádia da população em geral, deixarão de se beneficiar da proteção antes existente, desde que observado o limite previsto no artigo 529, §3º, do NCPC (o comprometimento da remuneração do devedor não poderá ultrapassar o montante de 50%)2.
Notas
1 EXECUÇÃO. PENHORA DE RENDIMENTOS DO DEVEDOR. CRÉDITOS TRABALHISTAS DE NATUREZA ALIMENTAR E PENSÕES POR MORTE OU INVALIDEZ DECORRENTES DE ACIDENTE DO TRABALHO. PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS CONTITUCIONAIS. POSSIBILIDADE. Tendo em vista a natureza alimentar dos créditos trabalhistas e da pensão por morte ou invalidez decorrente de acidente do trabalho (CF, art. 100, § 1º-A), o disposto no art. 649, inciso IV, do CPC deve ser aplicado de forma relativizada, observados o princípio da proporcionalidade e as peculiaridades do caso concreto. Admite-se, assim, a penhora dos rendimentos do executado em percentual que não inviabilize o seu sustento.
2 Artigo 529. Quando o executado for funcionário público, militar, diretor ou gerente de empresa ou empregado sujeito à legislação do trabalho, o exequente poderá requerer o desconto em folha de pagamento da importância da prestação alimentícia. § 3º Sem prejuízo do pagamento dos alimentos vincendos, o débito objeto de execução pode ser descontado dos rendimentos ou rendas do executado, de forma parcelada, nos termos do caput deste artigo, contanto que, somado à parcela devida, não ultrapasse cinquenta por cento de seus ganhos líquidos. (grifei)