3. A RESOLUÇÃO CONJUNTA N° 02/2015: (IN)EFICAZ PARA A REDUÇÃO DE MORTES ORIUNDAS DA FAMIGERADA “RESISTÊNCIA SEGUIDA DE MORTE”?
Os dados oficiais da Secretaria de Estado da Segurança Pública Alagoas revelam que, entre janeiro 2012 e dezembro de 2015[1], 156 pessoas foram mortas em confronto com a polícia no Estado em situações tipificadas como “resistência com resultado morte”[2] ou “autos de resistência”. Em que pese o crime ser previamente tipificado no ordenamento jurídico pátrio como homicídio, a instauração do respectivo procedimento – inquérito policial – nem sempre é possível. A Autoridade Policial, por sua discricionariedade, está supostamente autorizada a deixar de instaurar o inquérito policial, pois delibera que o crime foi cometido em legítima defesa ou com o objetivo de vencer a resistência de suspeitos do crime. A questão posta está também na inércia do Ministério Público (responsável pelo controle externo da atividade policial), já que nem sempre intervém em situações em que figura como autor o ESTADO (representado pelo Policial) e como vítima o cidadão previamente julgado como criminoso.
Agora, com a recente publicação da Resolução nº 02/2015, questiona-se a obrigatoriedade da polícia judiciária em instaurar inquérito policial quando a lesão ou o homicídio decorrer de oposição à intervenção policial. Essa nomenclatura é capaz de contribuir com a redução de mortes causadas por policiais? O que seriam os “autos de resistência”? É o que se pretende apresentar abaixo.
3.1. A Resolução nº 02/2015: (in) eficácia na redução do número de mortes em confrontos policiais
O relatório final do Grupo de Persecução Penal da ENASP (META 2), que – tinha por objetivo concluir as investigações por homicídio doloso instaurado até 31/12/2007 – aponta que Alagoas possuía como estoque inicial 4.180 inquéritos policiais pendentes ou inconclusos. Na entrega do relatório da META 2, ocorrida em abril de 2012, Alagoas fechou o balanço com 3.520 inquéritos policiais pendentes, ou seja, em 05 anos conseguiu concluir apenas 15,78% dos IPs.[3] Esses números já apontam a crise institucional vivenciada na polícia judiciária alagoana. E mais, tais números só não foram maiores, em razão do reduzido número de inquéritos policiais instaurados quando se tratava de “autos de resistência”.
Em Alagoas, quando ocorre um evento policial que culmina no resultado morte de um indivíduo, de forma automática e sem nenhum tipo de análise técnica-científica (por meio do perito criminal) e até mesmo jurídica, os agentes de segurança pública alegam diante da autoridade policial que o homicídio ocorreu devido à resistência do individuo à prisão. Essa narrativa é lavrada no sistema policial da polícia judiciária de Alagoas (SISPOL), e o homicídio recebe a classificação de “autos de resistência”. Por fim, na delegacia de polícia, os papéis se invertem: a vítima é o policial e o morto é o autor do delito de resistência.
As justificativas para isso ocorrer são infinitas. A primeira é a que trata de poder discricionário que o Delegado possui na abertura do inquérito policial, pois, por critérios subjetivos julga e decide se houve abuso ou não por parte do agente de segurança responsável pelo homicídio. A depender do ocorrido, para efeitos meramente estatísticos, “os autos de resistência” são inseridos no sistema policial informatizado com ou sem abertura de Inquérito Policial. A segunda é que se trata de procedimento administrativo extrajudicial (peça informativa e inquisitorial). Assim, pela conveniência e oportunidade – por ser uma peça administrativa – é assegurada à autoridade policial a instalação do inquérito, ou não, caso em que, uma vez instaurado, seguirá o seu trâmite natural (portaria de instauração, cumprimento de diligências, oitivas, relatório) com a posterior remessa ao Poder Judiciário. Como bem afirma o professor Roberto Kant de Lima, com a instauração do procedimento policial o delegado de polícia passará “a prestar contas de seu andamento aos membros do judiciário”[4].
Trata-se o inquérito de um procedimento inquisitorial (sem regras) sendo o detentor do procedimento o “dono”. É a “criatura” autorizada pelo Estado capaz de julgar e determinar como bem conduzi-lo. Para o professor Kant de Lima:
[...] a inquisitorialidade é um modelo de administração institucional de conflitos entre desiguais, pela qual o condutor do processo – seja ele o Estado ou não – está acima da sociedade e de seus conflitos, exercendo especial vigilância sobre o conflito entre desiguais, para que não se façam acusações infundadas. Como consequência, surge a ideia de que uma verdade deve ser apurada sigilosamente e registrada por escrito no decorrer desse procedimento, que verificará o fundamento das acusações e, conforme for, as encaminhará, ou não, para receberem tratamento judicial.[5]
Os “autos de resistência” são fruto de uma maquinação burocrática da polícia. Não se encontra no mundo jurídico, ou seja, não possui previsão legal. A interpretação para a sua aplicação é resultante da análise extensiva do direito. Fazendo-se uma análise dos crimes de homicídios existentes em Alagoas, através do SISPOL[6], em episódios de flagrante resistência à prisão ou de confronto com a polícia, utiliza-se como registros desses eventos os “autos de resistência”. Todavia, o que era para ser exceção, virou regra e todo homicídio que ocorre entre um individuo e a polícia, é definido como “autos de resistência” para, em uma apreciação apressada, ocultar execuções sumárias. A figura do auto de resistência foi regulamentada durante a ditadura militar, pela Ordem de Serviço nº 803, de 02/10/1969 da Superintendência da Polícia Judiciária do antigo Estado da Guanabara, publicado no Boletim de Serviço do dia 21/11/1969.[7]
Ao abordar sobre “autos de resistência,” o Código de Processo Penal em seu art. 292 leciona que:
Art. 292. Se houver, ainda que por parte de terceiro, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.
Indaga-se em que momento há inserida a possibilidade de não ser instaurado o aludido procedimento, in casu, o Inquérito Policial? Há omissão. O inquérito policial deve ser instaurado por se tratar de crime (homicídio) de ação penal pública incondicionada. Os “autos de resistência” sempre foram considerados atípicos.
A alteração dada pela Resolução nº 02/2015, que alterou em definitivo as designações genéricas, como autos de resistência e resistência seguida de morte, definindo-as em “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial” não irá contribuir com a redução do número de homicídios cometidos por policiais, tampouco irá contribuir para a obrigatoriedade na instauração dos inquéritos policiais. Essa alteração nos parece ter efeitos domésticos e serve como instrumento para silenciar os grupos de Direitos Humanos, bem como para atender à solicitação já realizada pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Essa alteração não possui eficácia no âmbito prático-policial, nenhum efeito surtirá, pois o crime de homicídio, independentemente de quem o tenha cometido deve ser investigado e instaurado o respectivo procedimento com a posterior remessa ao Ministério Público.
Em Alagoas houve um aumento significativo dos “autos de resistência”. Em 2012 foram 26 autos de resistência, já em 2015 foram 102 autos de resistência. Esses números estão contidos no site oficial da Secretaria de Estado da Segurança Pública e já foi referenciada no presente trabalho. Houve um aumento de 74%. A quem atribuir a culpa? A resolução irá servir para diminuir o alto índice de homicídios cometidos por policiais? Vai acabar com a não instauração do inquérito policial? Vai compelir os delegados de polícia a instaurar inquérito policial?
O que se sabe é que se não houver o acompanhamento dos diferentes atores do sistema criminal (defensoria pública, ministério público, poder judiciário, OAB etc.) o número de “autos de resistência” permanecerá aumentando.
Ademais, estes homicídios estão inseridos nas estatísticas, mas não são contabilizados pela Secretaria de Estado da Segurança Pública, pois se fossem contabilizados como homicídios os números se elevariam vertiginosamente, e o Governo de Estado não seria bem avaliado pela sociedade. Assim, nota-se que a não inserção destes dados tem por objetivo convencer que a política adotada pelo governo em Alagoas, no que diz respeito à criminalidade tem efetivamente diminuído.
Conclui-se, sem suprimir os estudos, que o elevado número de vítimas de “autos de resistência” em Alagoas, indica que a polícia alagoana é extremamente repressiva e não preventiva (como se requer no modelo de polícia cidadã) e o que é pior, está legitimada e autorizada a matar; os números são inquestionáveis. O aumento considerável no número de homicídios (autos de resistência) evidencia o equívoco da atual política governamental: repressora e seletiva.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo demonstrou que a redução dos “autos de resistência” ou sua própria extinção não irá ocorrer com uma simples imposição normativa, mas com a conscientização da própria polícia.
A Resolução Conjunta nº 02/2015, que alterou em definitivo as designações genéricas, como autos de resistência e resistência seguida de morte, definindo-as em “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial,” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial,” não possui eficácia legal para impor à autoridade policial a obrigatoriedade de instaurar o inquérito policial nos casos de homicídios decorrentes dos confrontos policiais, pois, em que pese divergir, a autoridade policial detém de certa discricionariedade e autonomia.
O que se percebe é que os atores do sistema criminal, nesses casos, se apresentam omissos. É sabido que o crime de homicídio é de ação penal pública incondicionada[8], assim não pode, ao bel-prazer, a autoridade policial decidir por não investigar o homicídio cometido pelo policial; a sua instauração é obrigatória.
A política de segurança pública adotada em Alagoas se mostrou eficaz (na visão do governo), mas suas ações resultam no elevado índice de homicídios cometidos por policiais, o que demonstra a ausência de políticas de segurança que contemplem a concepção democrática de segurança pública nos termos da Constituição Federal de 1988. Esse alto índice se evidencia pelo elevado grau de investimento em armamentos letais e pela ausência de políticas de educação e prevenção.
Os dados oficiais da Secretaria de Estado da Segurança Pública, da Anistia Internacional e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, transmite que os “autos de resistência” continuam subindo, comprovando que a falta de compromisso por parte do Chefe do Poder Executivo, dos integrantes da segurança pública (polícia militar e polícia civil), do Ministério Público e do Poder Judiciário, não estão exercendo o papel de garantidores do princípio basilar pregado pela C.F/88: a vida.
As ações enérgicas da polícia no Estado de Alagoas, corroborada pelo Poder Executivo, em razão da redução da criminalidade, é traduzida por um alto índice de mortes, esta é a realidade cruel que deveria ser mostrada à sociedade, todavia, são maquiadas, quando não sonegadas. Alagoas anda na contramão do exato significado do Estado Democrático de Direito – no qual todos os homicídios devem ser combatidos por meio de sua instauração e investigação.
A nomenclatura atribuída na Resolução nº 02/2015 não desclassificou a possibilidade de se reduzir as mortes pela famigerada “resistência seguida de morte” ou “autos de resistência”, na realidade facilitou – para fins políticos – a sua “boa” divulgação nos meios estatísticos. Assim, no Boletim Estatístico Criminal, emitido anualmente pela Secretaria de Estado da Segurança Pública, os números de homicídios tenderão a cair, pois estarão inclusos como “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”.
O que se percebe é que Alagoas, assim como no Rio de Janeiro, tende a combater a criminalidade com violência de forma insensata. É necessário ouvir os diversos atores do sistema criminal, inclusive contar com a participação enriquecedora de estudiosos que trabalhem com os motivos e nas soluções dos fatores da violência pública e dos problemas sociais, relação causa/efeito, para que objetivos possam ser efetivamente alcançados e minorados.
Tão importante é o trabalho científico sobre segurança pública no intuito de detectar os problemas e tentar solucioná-los que, numa pesquisa feita pela socióloga Maria da Glória Bonelli, dos dez tópicos apresentados ao bom funcionamento da polícia, a interferência política na cúpula da polícia é um dos motivos que enleiam os trabalhos policiais.[9] É necessário, sem dúvidas, uma melhor análise quanto às escolhas e as formas de se escolher politicamente quem irá orientar, destinar e trabalhar como chefe maior da polícia.
Por fim, as diferentes ciências (jurídicas, sociais, filosóficas etc.) devem ser devidamente estudadas no âmbito da segurança pública, pois tornará efetiva a solução na redução da criminalidade e dos “autos de resistência” – o contrário tornará a mudança complexa, lenta e sem destino. Cada área tem o papel de completar a outra, essa solidariedade social combate as anomalias sociais. (DURKHEIM, 1999) Buscar acabar com o jargão de “bandido bom é bandido morto” é o primeiro passo. Não se combate a violência com violência.