O presente artigo possui como objetivo expor o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça acerca da forma de cobrança, judicial ou administrativa, dos créditos da Fazenda Pública na hipótese de revogação de decisão judicial precária concessiva de vantagem patrimonial ou benefício em desfavor do erário, bem como o modo de persecução do crédito no caso em que a própria Fazenda constata a ocorrência de fraude na percepção de quantias pagas a título de benefício previdenciário.
É necessário, primeiramente, analisar a primeira situação, na qual, no bojo de um processo judicial, há a inicial concessão de ordem de pagamento de verbas a servidor público ou a segurado previdenciário em sede de decisão interlocutória, a qual, mais adiante, resta revertida.
O STJ entende que, em havendo a revogação de decisão judicial precária que, em antecipação de tutela, havia determinado à Fazenda Pública o pagamento de valores em benefício de servidor ou segurado do RGPS, a devolução desse importe à Fazenda é uma decorrência lógica da própria revogação da decisão.
As únicas exceções à regra da devolução residem nos casos em que o Tribunal, em sede de apelação, confirma ser devido o pagamento do benefício, porquanto, na hipótese, a decisão de segunda instância criaria, na ótica do segurado, uma justa expectativa e uma legítima confiança na existência do direito ao recebimento dos valores, razão por que eventual ordem judicial contrária não poderia implicar a repetição da verba (EREsp 1086154/RS, DJe 19/03/2014), bem como no caso de procedência de ação rescisória de sentença que, já estabilizada pela segurança da coisa julgada, havia declarado ser devido o pagamento do benefício previdenciário (AR 4.186/SP, DJe 04/08/2015).
Para além desses casos, a regra, no âmbito do STJ, tem sido pela devolução dos valores pagos em razão de decisão antecipatória de tutela posteriormente revogada.
Isso porque o caráter precário da decisão não permite supor que o particular tivesse uma justa expectativa de que os valores seriam recebidos definitivamente. Ademais, o pagamento da verba não se deu por erro ou equívoco interpretativo por parte da Administração Pública, mas por decisão do Judiciário, posteriormente modificada. Por esses motivos não se poderia alegar boa-fé objetiva dos beneficiários a fim de sustentar a irrepetibilidade da verba. Demais disso, não se acolhe a tese de que a verba seria alimentar e, por isso, não sujeita à devolução. (REsp n.1.401.560/MT, - recurso repetitivo. Ver, ainda, REsp 1384418/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/06/2013, DJe 30/08/2013).
O tema deste artigo, porém, é pesquisar a forma como essa devolução deve ser feita. Adiante-se que o STJ não tem admitido a inscrição do débito em Dívida Ativa.
A Primeira e a Segunda Turma daquele Sodalício assentaram a necessidade de que seja aberto um processo administrativo interno contra o servidor que recebeu a verba oriunda da decisão judicial revogada, tendo em vista a necessidade de respeito ao contraditório e à ampla defesa. Somente após aberto o processo administrativo e facultado o exercício do contraditório e da ampla defesa serão admitidos os descontos diretamente na folha de salários (ou proventos) do servidor público (ativo ou inativo). Confira-se:
Esta Corte possui jurisprudência no sentido de que é obrigatória a devolução por servidor público de vantagem patrimonial paga pelo erário público, em face de cumprimento de decisão judicial precária, desde que observados os princípios do contraditório e da ampla defesa. AgRg no Ag 1337780/RS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/03/2013, DJe 06/12/2013) Na segunda turma:AgRg no REsp 1301411/RN, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/08/2014, DJe 03/09/2014)” (g.n.). Cf. também, STJ, RMS 18.057/RS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, DJU de 02/05/2006).
É necessário, ainda, observar os percentuais máximo e mínimo de desconto em folha, que estão estabelecidos, em regra, na lei que rege a carreira do servidor em questão. No âmbito da Lei 8.112/90 – União, autarquias e fundações federais - o limite máximo de desconto é de 10% da remuneração do servidor:
"Esta Corte Superior de Justiça firmou já entendimento de que é obrigatória a devolução de vantagem patrimonial paga pelo erário público, em face de cumprimento de decisão judicial precária, desde que respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa e o limite máximo de desconto previsto em lei, a saber, a décima parte da remuneração, nos termos do artigo 46 da Lei n° 8.112/90.” (STJ, AgRg nos EDcl no REsp 1.224.995/CE, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, PRIMEIRA TURMA, DJe de 18/04/2011) (g.n.)
Na hipótese, porém, em que os descontos não possam ser efetuados até o ressarcimento integral – seja por demissão, exoneração ou cassação da aposentadoria do servidor – a própria lei 8112/90 admite a inscrição do débito em dívida ativa:
“Art. 47. O servidor em débito com o erário, que for demitido, exonerado ou que tiver sua aposentadoria ou disponibilidade cassada, terá o prazo de sessenta dias para quitar o débito. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 4.9.2001)
Parágrafo único. A não quitação do débito no prazo previsto implicará sua inscrição em dívida ativa” (g.n.)
Insta voltar a atenção a hipótese distinta, referente ao caso de débito direto à autarquia previdenciária, fora do âmbito da relação servidor público/Estado. No caso de os valores serem devidos pelo indivíduo ao próprio INSS, como é o caso de benefícios previdenciários pagos em razão de decisão interlocutória antecipatória de tutela, é preciso que a autarquia previdenciária execute a sentença em que se consignou a irregularidade da percepção das verbas, isso é, a sentença de improcedência proposta pelo segurado. Após a liquidação do valor e caso o segurado já receba algum outro benefício pago pela autarquia, devem ser feitos descontos mensais, no percentual máximo de 10%, por analogia ao serviço público federal. Vide o julgado, em que se analisou hipótese em que particular recebeu pensão por morte por ordem judicial posteriormente reformada:
“À luz do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e considerando o dever do segurado de devolver os valores obtidos por força de antecipação de tutela posteriormente revogada, devem ser observados os seguintes parâmetros para o ressarcimento: a) a execução de sentença declaratória do direito deverá ser promovida; b) liquidado e incontroverso o crédito executado, o INSS poderá fazer o desconto em folha de até 10% da remuneração dos benefícios previdenciários em manutenção até a satisfação do crédito, adotado por simetria com o percentual aplicado aos servidores públicos” (art. 46, § 1º, da Lei 8.213/1991.12. Recurso Especial provido.(REsp 1384418/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/06/2013, DJe 30/08/2013) (g.n.)
O débito, caso não seja pago, por exemplo, por serem inviáveis os descontos, não pode ser inscrito em dívida ativa.
Isso porque o STJ assentou a compreensão de que não se mostra impossível inscrever em dívida ativa o débito oriundo de recebimento indevido de benefício previdenciário, mesmo na grave hipótese de o beneficiário haver empregado fraude (Resp 867718/PR, DJe 04/02/2009).
Por seu turno, quando esse recebimento indevido não tiver advindo de decisão judicial precária, deve ser proposta ação de conhecimento a fim de se apurar a responsabilidade do indivíduo (e não deve haver a inscrição em dívida ativa). Para o Tribunal, não haveria a certeza que deve ser inerente à CDA, tampouco existiria lei a autorizar a inscrição. Logo, como regra geral, sendo o caso de ilícito fundado na responsabilidade civil, sempre deve haver o processo de conhecimento. Vide o aresto, julgado sob o rito dos recursos especiais repetitivos:
“À míngua de lei expressa, a inscrição em dívida ativa não é a forma de cobrança adequada para os valores indevidamente recebidos a título de benefício previdenciário previsto no art. 115, II, da Lei n. 8.213/91 que devem submeter-se a ação de cobrança por enriquecimento ilícito para apuração da responsabilidade civil. (...)Não há na lei própria do INSS (Lei n. 8.213/91) dispositivo legal semelhante ao que consta do parágrafo único do art. 47, da Lei n.8.112/90. Sendo assim, o art. 154, §4º, II, do Decreto n. 3.048/99 que determina a inscrição em dívida ativa de benefício previdenciário pago indevidamente não encontra amparo legal.”(REsp 1350804/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/06/2013, DJe 28/06/2013).(g.n.)
No mesmo sentido, abordando diretamente a hipótese da ocorrência de fraude:
“O crédito oriundo de suposta fraude no recebimento de benefício previdenciário deve ser assentado judicialmente no afã de aferir os requisitos necessários exigíveis para dar início à execução.3. É que a repetição do indébito impõe ao jurisdicionado manejar o processo de cognição, assim como, diante do pagamento indevido, o Poder Público não pode lançá-lo unilateralmente, devendo valer-se da mesma forma de tutela jurisdicional.4. É cediço nesta Corte que é necessária a propositura de ação de conhecimento, em que sejam garantidos o contraditório e a ampla defesa, para o reconhecimento judicial do direito à repetição, por parte do INSS, de valores pagos indevidamente a título de benefício previdenciário, pois não se enquadram no conceito de crédito tributário, tampouco permitem sua inscrição em dívida ativa.(...). 3. Crédito proveniente de responsabilidade civil não reconhecida pelo suposto responsável não integra a chamada dívida ativa, nem autoriza execução fiscal. O Estado, em tal caso, deve exercer, contra o suposto responsável civil, ação condenatória, em que poderá obter o título executivo. 4.É nula a execução fiscal por dívida proveniente de responsabilidade civil, aparelhada assentada em títulos." (REsp nº 440540/SC) (...)”(REsp 1177342/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 01/03/2011, DJe 19/04/2011) (g.n.).
Em consequência, ter-se-á mero cumprimento de sentença condenatória, não podendo ser operada a inscrição em dívida ativa do débito já reconhecido judicialmente. A esse respeito, o STJ já adotou o entendimento de que violaria a economia processual a pretensão de cobrança via execução fiscal de valor já constante de título executivo judicial. No aresto em questão foi analisada a possibilidade de inscrever em Dívida Ativa os honorários sucumbenciais devidos à Fazenda. O raciocínio exposto no aresto, contudo, é válido à hipótese presente:
“Com efeito, se no processo judicial o Estado-juiz arbitra crédito em favor do Estado-administração, crédito esse que pode ser obtido diretamente nos autos, em procedimento ulterior e consequente ao trânsito em julgado, não há motivo lógico ou jurídico para conceber que o Estado-administração desista – obrigatoriamente, sob pena de cobrança em duplicidade – da sua utilização, para então efetuar a inscrição da verba honorária em dívida ativa e, depois, ajuizar novo processo, sobrecarregando desnecessariamente o Poder Judiciário com demandas (a Execução Fiscal, como se sabe, pode ser atacada por meio de outra ação, os Embargos do Devedor) cujo objeto poderia, desde o início, ser tutelado no processo original.(...)” (REsp 1126631/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/10/2009, DJe 13/11/2009).
Conclui-se, portanto, que, em se tratando de valores a serem devolvidos pelo servidor à Administração Pública, em razão da revogação de decisão judicial precária, não deve ocorrer, ao menos em princípio, a inscrição do devedor em Dívida Ativa, mas sim, a instauração de processo administrativo em que se oportunize o contraditório e a ampla defesa. Uma vez reconhecido o dever de devolução da vantagem patrimonial, devem ocorrer descontos nos salários ou proventos do servidor, em percentuais ditados pela legislação de regência. No âmbito da União, autarquias e fundações públicas federais, aplica-se a percentagem de 10% sobre a remuneração, consoante Lei 8.112/90 (art.46).
No caso, porém, de benefício previdenciário pago pelo INSS em razão de decisão judicial precária posteriormente revertida, como regra geral, segundo o STJ, a restituição do montante recebido deve ocorrer por meio de descontos sobre benefícios porventura já percebidos pelo segurado ou, não sendo a hipótese, através do cumprimento da sentença que declarou a improcedência do direito alegado pelo segurado.
Por sua vez, em se cuidando de benefício recebido a partir de mecanismo fraudulento, a repetição desses valores ao erário não deve ocorrer por meio de cobrança via execução fiscal, mas deve ser obrigatoriamente precedida de ação de conhecimento em que se busque o reconhecimento da fraude e da responsabilidade civil do seu praticante. Uma vez obtida a sentença de procedência, deve ser dado início ao seu regular cumprimento. Nesse âmbito, prestando homenagem à economia processual, a Fazenda não deve optar por cobrar o débito via execução fiscal.
Em suma, nota-se que não há imediatismo entre a existência de um débito não-tributário perante a Fazenda e sua inscrição em Dívida Ativa. É necessário termos em mente que, embora amplo, o conceito de Dívida Ativa não abarca quaisquer débitos, sobretudo aqueles já proclamados em títulos judiciais (art.39 da Lei 4320/64). Embora o rito da execução fiscal seja benéfico à Fazenda (Lei 6830/80), nem sempre ele poderá ser utilizado, devendo ser dada preferência a meios extrajudiciais, como o processo administrativo, e ao próprio sincretismo processual. Ademais, a unilateralidade na formação da Dívida Ativa, segundo o STJ, não permite supor que possa a Fazenda Pública nela inserir quaisquer débitos. A relevante função orientadora da jurisprudência vem justamente a delinear essas possibilidades, exercício que, consoante se expôs em linhas volvidas, vem se inclinando no sentido de favorecer a garantia do contraditório, da ampla defesa e da economia processual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil: Tutela Jurisdicional Executiva. Vol. 3.6.ed.São Paulo: Saraiva, 2013.
CARNEIRO, Cláudio. Processo Tributário Administrativo e Judicial.4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
NERY JR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. Novo CPC – Lei 13.105/2015.São Paulo: RT, 2015.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. Volume único.6.ed.São Paulo: Método, 2014.
SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 7.ed.São Paulo: Saraiva, 2015