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Princípio da motivação e ônus da prova no processo tributário nas imunidades genéricas dos impostos

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09/10/2023 às 19:36
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O artigo versa sobre o princípio da motivação no processo administrativo e judicial tributário, destacando-se alguns aspectos relevantes sobre as decisões proferidas em sede de recurso especial e extraordinário, tais como o ônus da prova.

No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.

Declaração Universal dos Direitos Humanos


RESUMO: O presente artigo versa sobre o princípio da motivação no processo administrativo e judicial tributário brasileiro. Nesse estudo, serão destacados alguns aspectos relevantes sobre as decisões proferidas em sede de recurso especial e extraordinário, especialmente aquelas que se referem ao ônus da prova no processo tributário. Nesse contexto, busca-se ressaltar a importância crescente do princípio da motivação no Estado Democrático de Direito.

PALAVRAS CHAVES: Crédito Tributário. Motivação. Ônus da prova. Recursos Especial e Extraordinário.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A fundamentação deve ser clara e precisa; 3. O prequestionamento como pressuposto dos recursos especial e extraordinário; 4. CDA e a presunção de certeza e liquidez; 5. O dever de fundamentar, tratando-se de sociedade de economia mista anômala; 6. O dever de fundamentar, tratando-se de entidades sem fins lucrativos; 7. Considerações finais. 8. Referências bibliográficas.

1. Introdução

Nesse singelo estudo contextualizaremos a jurisprudência relacionada ao ônus da prova na esfera processual tributária, com o escopo de ressaltar a importância do princípio constitucional da motivação como instrumento hábil a assegurar a efetivação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão-contribuinte.

Para alcançar esse fim, serão destacados aspectos relevantes sobre as decisões proferidas em sede de recurso especial e extraordinário que gravitam em torno do ônus da prova no processo tributário, tendo, como pano de fundo, o tema da imunidade genérica dos impostos e o advento do Direito Processual das Constituições.

2. A fundamentação deve ser clara e precisa

Os recursos especial e extraordinário estão previstos nos artigos 102 e 105 da Lei Maior e, atualmente, disciplinados pelo artigo 1.029 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015 (CPC 2015), equivalente ao artigo 541 e seguintes, do Código de Processo Civil de 1973 (CPC 2013).

Nos termos do artigo 541, II e III, do CPC[2] as petições do recurso extraordinário e do especial deverão conter não apenas a demonstração do cabimento do recurso interposto, como também a demonstração das razões do pedido de reforma da decisão recorrida. Nesse sentido, esclarece Costa Machado:[3]

A falta de razões inviabiliza absolutamente o conhecimento do recurso pelo STF ou STJ. Além disso, o recorrente deve, ainda, explicitar da maneira mais detalhada possível o pedido de reforma da decisão atacada (art. 512: cassação e em que termos? Substituição e em que termos?). Ora, se o recurso é manifestação volitiva pela qual se impugna uma decisão, como se poderá admitir que o recorrente não diga expressamente o que quer do pretório? A ausência de pedido explícito é, portanto, obstáculo identicamente irremovível à apreciação do recurso extraordinário e/ou especial (texto de acordo com a Lei n. 8.950/94)

Deveras, é pacífico no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que “não se conhece do recurso especial por negativa de vigência de dispositivo legal não examinado pelo acórdão recorrido, a despeito de oposição de embargos de declaração. (Súmula 211/STJ)

O princípio da dialeticidade recursal, conforme entendimento de nossa Suprema Corte,[4] “impõe ao recorrente o ônus de evidenciar os motivos de fato e de direito suficientes à reforma da decisão objurgada, trazendo à baila novas argumentações capazes de infirmar todos os fundamentos do decisum que se pretende modificar, sob pena de vê-lo mantido por seus próprios fundamentos.”

Dito de outro modo, não serão apreciadas alegações genéricas sobre a negativa de vigência de dispositivo legal e, tratando-se de embargos de declaração, deve-se indicar de forma específica a questão omissa, obscura ou contraditória no julgamento do acórdão guerreado, de modo a afastar-se do campo de concentração da Súmula 284/STF, que assim se expressa: "É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia."[5]

Por fim, consoante a jurisprudência do Supremo Tribunal, “o que a Constituição exige, no art. 93, IX, é que a decisão judicial seja fundamentada; não, que a fundamentação seja correta, na solução das questões de fato ou de direito da lide: declinadas no julgado as premissas, corretamente assentadas ou não, mas coerentes com o dispositivo do acórdão, está satisfeita a exigência constitucional” (Recurso Extraordinário n. 140.370, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, RTJ 150/269). De igual modo, as “decisões no processo administração hão de estar fundamentadas, não se podendo confundir a exigência formal com conclusão contrária aos interesses das partes”. (MS n. 25.870, Rel. Min. Marco Aurélio, Plenário, DJe 27.9.2011)

3. O prequestionamento como pressuposto dos recursos especial e extraordinário

Em breve síntese, compete ao Supremo Tribunal Federal (STF) julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida contrariar dispositivo da CF; declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da CF; julgar válida lei local contestada em face de lei federal; e que em todos esses casos a matéria possua repercussão geral.

No tocante à exigência de repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, cumpre salientar, apenas para ilustrar, o entendimento da Suprema Corte no sentido de que é um equívoco sustentar que haveria repercussão geral em toda demanda com valor econômico em que a União for parte.

Nada obstante, em matéria tributária é comum o ente tributante, quando recorrente, sustentar seu direito de exaurir a via administrativa com a apreciação de suas impugnações, sob pena de violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa, sempre que se tratar de demanda em que poderá ser responsabilizado pelo pagamento do crédito em discussão, e esta possibilidade de vir a ter que disponibilizar dinheiro público caracterizaria a repercussão geral da lide nos interesses da sociedade brasileira.[6]

Ainda, por força das Súmulas n. 282 e 356 do STF exige-se o prequestionamento, ou seja, que as causas tenham sido efetivamente decididas em única ou última instância, para que possam ser objeto de controle difuso pela via do recurso extraordinário. Para essa aferição, torna-se imprescindível a juntada da cópia da petição de apelação.[7] Note-se que, consoante posicionamento de nossa Suprema Corte, ainda que se trate de matéria de ordem pública,[8] deverá o recorrente demonstrar que a questão objeto do recurso fora apreciada pela decisão recorrida, para só então apresentar suas razões recursais.[9]

Doutra parte, compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; der à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.

Do exposto, conclui-se que compete ao Supremo Tribunal Federal a proteção da Lei Maior, por meio de controle difuso, apreciar recurso extraordinário que ataca apenas ofensa direta à CF, se não vejamos:

Os princípios da legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, da motivação das decisões judiciais, dos limites da coisa julgada e da prestação jurisdicional, quando a verificação de sua ofensa dependa do reexame prévio de normas infraconstitucionais, revelam ofensa indireta ou reflexa à Constituição Federal, o que, por si só, não desafia a abertura da instância extraordinária.[10] (grifamos)

Noutras palavras, se a violação aos princípios do devido processo legal, dentre os quais se inclui o da motivação, depender do reexame de normas infraconstitucionais analisadas pela decisão recorrida, fica afastada a via do recurso extraordinário, já que sua interposição encontra fundamento apenas na demonstração de ofensa indireta à Constituição Federal.

Nessa linha, tem-se a Súmula 636 da Suprema Corte: “Não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade, quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida.”[11]

Além disso, são recorríveis apenas questões de direito, ou seja, não cabe recurso extraordinário para reexame de fatos ou de provas (Súmula 279/STF), de modo que não será possível apreciar as razões recursais sempre que se fizer necessário reabrir a instrução probatória para reexaminar todos e cada um dos lançamentos tributários existentes por ocasião do ajuizamento da ação, com o escopo de rever a motivação de cada ato administrativo.[12]

Doutro lado, compete ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a função de uniformizar a interpretação da legislação federal, por meio do recurso especial, sempre que tribunais diferentes derem interpretações divergentes à mesma lei ou ato normativo federal, como fundamento de suas decisões. Noutro giro, não compete ao STJ, em Recurso Especial, uniformizar interpretação jurisprudencial baseada em norma da Constituição da República, tampouco revisar motivação de índole constitucional.[13]

De conseguinte, pautando-se a decisão impugnada em fundamento constitucional, aplica-se o entendimento jurisprudencial segundo o qual, “não compete ao Superior Tribunal de Justiça, no recurso especial, analisar eventual contrariedade a preceito contido na CF/88, tampouco uniformizar a interpretação de matéria constitucional” (AgRg no REsp n.1337903/ MG).

Tecidas essas considerações, vejamos alguns julgados em que se discute o ônus da prova em face do princípio da motivação.

4. CDA e a presunção de certeza e liquidez

Vale lembrar que a presunção geral de legitimidade e veracidade que paira sobre os atos jurídicos não dispensa o dever constitucional de fundamentar inerente a todos os atos jurídicos passíveis de alterar a esfera jurídica alheia, como o lançamento tributário, razão pela qual o fisco não se encontra dispensado de providenciar as provas necessárias a comprovar a existência da obrigação tributária em concreto. A esse respeito, esclarece Misabel Derzi:[14]

É elementar que os atos jurídicos somente são legítimos e consequentemente válidos, se estiverem conformes à ordem jurídica, ao ordenamento jurídico. O ato jurídico administrativo deve obedecer a requisitos formais e materiais, que são previstos quer na Constituição, quer nas leis. Os princípios da legalidade, da finalidade, da motivação, da razoabilidade, da pessoalidade, da moralidade e da proibição de excesso, por exemplo, são alguns desses princípios fundamentais a que devem obedecer os atos administrativos.

De seu turno, a Certidão de Dívida Ativa (CDA) constitui ato administrativo de controle de legalidade e goza, no entanto, de expressa presunção relativa de certeza e liquidez,[15] presunção essa que transfere o ônus da prova para o sujeito passivo ou terceiro a quem aproveite.

Sobre o disposto no parágrafo único do artigo 204, exemplifica Misabel Derzi:

O CTN exige prova inequívoca do contribuinte para ilidir a presunção de certeza e liquidez do título, quando, inexistindo dúvida sobre a ocorrência dos fatos, ou sua dimensão, baseia-se a Fazenda na verdade formal extraída da própria escrita dos livros contábeis do sujeito passivo, verdade que ele mesmo formou contra si, retratando uma realidade equivocada que ele quer refutar ou contrariar.

No entanto, em atenção ao princípio da motivação, sem o qual não se pode exercer o direito ao contraditório e à ampla defesa, exige o Código Tributário Nacional (CTN) que a Certidão de Dívida Ativa contenha, sob pena de nulidade, as informações que se presumem apuradas e comprovadas pelo lançamento tributário, veja-se:

Art. 202. O termo de inscrição da dívida ativa, autenticado pela autoridade competente, indicará obrigatoriamente: I - o nome do devedor e, sendo caso, o dos co-responsáveis, bem como, sempre que possível, o domicílio ou a residência de um e de outros; II - a quantia devida e a maneira de calcular os juros de mora acrescidos; III - a origem e natureza do crédito, mencionada especificamente a disposição da lei em que seja fundado; IV - a data em que foi inscrita; V - sendo caso, o número do processo administrativo de que se originar o crédito. Parágrafo único. A certidão conterá, além dos requisitos deste artigo, a indicação do livro e da folha da inscrição.[16]

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Art. 203. A omissão de quaisquer dos requisitos previstos no artigo anterior, ou o erro a eles relativo, são causas de nulidade da inscrição e do processo de cobrança dela decorrente, mas a nulidade poderá ser sanada até a decisão de primeira instância, mediante substituição da certidão nula, devolvido ao sujeito passivo, acusado ou interessado o prazo para defesa, que somente poderá versar sobre a parte modificada.[17]

Nesses termos, goza de presunção legal de certeza e liquidez o crédito tributário inscrito em dívida ativa, que fora formalizado pelo lançamento, com efeito de prova pré-constituída.

É assente no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o entendimento no sentido de que a CDA possui presunção de liquidez e certeza, cabendo ao executado o ônus de demonstrar o contrário. No entanto, convém insistir, referida presunção supõe a observância dos pressupostos legais previstos no artigo 2º, § 5º, da Lei n. 6.830/80 (LEF)[18] e artigo 202 do CTN, de maneira a permitir ao contribuinte o direito de exercer seu direito ao contraditório e à ampla defesa. (REsp n. 873.267/RS)

A propósito, nesse sentido também já se manifestou nossa Suprema Corte:

A Constituição da República estabelece, em seu art. 5º, incisos LIV e LV, considerada a essencialidade da garantia constitucional da plenitude de defesa e do contraditório, que ninguém pode ser privado de sua liberdade, de seus bens ou de seus direitos sem o devido processo legal, notadamente naqueles casos em que se viabilize a possibilidade de imposição, a determinada pessoa ou entidade, seja ela pública ou privada, de medidas consubstanciadoras de limitação de direitos.

A jurisprudência dos Tribunais, especialmente a do Supremo Tribunal Federal, tem reafirmado o caráter fundamental do princípio da plenitude de defesa, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa ou no âmbito político-administrativo, sob pena de nulidade da própria medida restritiva de direitos, revestida, ou não, de caráter punitivo. Doutrina. Precedentes. (...)” (Referendo em Tutela Antecipada na Ação Cível Originária n. 1.576/MG, Relator o Ministro Celso de Mello, Plenário, DJe 20.8.2010).

Vale ainda salientar que o lançamento não se confunde com a CDA, de modo que a validade de um deles não pode suprir eventual vício do outro. Com efeito, assim já decidiu o STJ: “o auto de lançamento se presta para comunicar ao contribuinte a existência de crédito em aberto, sendo anterior à emissão da CDA e com esta não se confunde. Dessarte, a juntada desse auto não pode suprir falha da referida certidão” (REsp 920.640/RS).

5. O dever de fundamentar, tratando-se de sociedade de economia mista “anômala”

De plano, convém destacar a relevância do caráter normativo do princípio jurídico, de modo a assegurar uma maior efetividade na observância dos direitos fundamentais e humanos também no âmbito tributário:

Ressalte-se que vários direitos inerentes à pessoa podem ser extraídos na ordem jurídica por meio do conteúdo de princípios. A dignidade da pessoa humana, liberdade, solidariedade, propriedade, igualdade e democracia são apenas alguns Direitos Humanos que se encontram presentes no ordenamento jurídico por intermédio de um status principiológico.

Na medida em que se percebe que o princípio é dotado de força normativa e imperatividade, isto é, não é um programa ou elemento meramente informativo e orientador, mas, sim, um mecanismo que vincula a conduta do Estado e dos cidadãos, torna-se clara a obrigação de seu cumprimento por todos os integrantes da sociedade, inclusive a Administração Tributária.

Nesse sentido, o reconhecimento da normatividade dos princípios implica o reconhecimento da normatividade de diversos Direitos Humanos, os quais passam a informar e a vincular a atuação do Fisco. Em outras palavras, o respeito aos direitos inerentes ao contribuinte traduz uma obrigação para a Administração Tributária.[19]

Não é por outa razão que, com o advento do Direito Processual das Constituições, que viabiliza uma maior garantia no âmbito processual e procedimental para a concretização da cidadania e, de conseguinte, do Estado Democrático de Direito. Afinal, como bem explicita Fernando Hoffman: [20]

Para além de garantir a normatividade constitucional e os direitos fundamentais ali albergados, bem como, de trazer à disciplina processual uma nova gama de instrumentos processuais de garantia, o direito processual constitucional que toma forma deve garantir direitos e concretizar garantias de cidadania e possibilidade de participação do “homem comum” na arena político-jurídica afim de garantir-lhe a condição de cidadão, sujeito de direitos e, sobremodo, ser-humano.

Nessa esteira, revela-se inquestionável a “necessidade e a possibilidade pulsante de se pensar um direito processual das constituições como alargamento natural do direito processual constitucional, produzindo uma dimensão ‘única’ e ampliada de proteção constitucional e internacional dos direitos humanos e das humanidades em convergência.” [21]

Não se pode perder de vista, ademais, que a Constituição Federal de 1988, pioneiramente, “revela a eleição de determinados valores necessários para permitir ao sujeito do direito subjetivo à educação (em sentido amplo) se constituir em cidadão, partilhando de forma coletiva a igualdade possível sob a égide de um Estado democrático constitucional de direito”,[22] onde o cumprimento da nova normatividade do novo Direito Processual das Constituições possa ser observado por todos os integrantes da sociedade.

Infere-se desse contexto, a crescente importância do princípio da motivação com o advento do Direito Processual das Constituições, uma vez que esta confere maior efetividade à garantia processual-procedimental consagrada pela nossa Constituição Cidadã[23] para a resolução de conflito, afinal, a “disciplina do direito processual constitucional forja-se a partir da Carta Constitucional e para garanti-la, bem como, a partir de uma nova mirada sobre o direito processual que eclode na construção desse novo ramo do Direito.” [24]

Com fulcro nessas lições, impende reconhecer que compete ao fisco constituir regularmente o crédito tributário, com plena observância do devido processo legal, o qual pressupõe a efetiva fundamentação dos atos da Administração Pública, de modo a assegurar o exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa. Nesse caso, convém frisar, o ônus da prova incumbe à Administração Pública e não ao pretenso sujeito passivo da obrigação tributária.

Doutra parte, cumpre salientar que a Sociedade de Economia Mista, nos termos do art. 37, inciso XIX da CF é constituída, mediante autorização legal, sob o tipo empresarial de sociedade anônima, de capital público e privado, onde o Poder Público detém a maioria do capital votante, e tem por objeto a prestação de serviço público ou exploração de atividade econômica.

Como é cediço, as pessoas políticas de direito público são imunes a incidência de impostos (imunidade recíproca, art. 150, VI, a da CF). Vale lembrar, a propósito, que as Sociedades de Economia Mista são pessoas jurídicas de direito privado, razão pela qual não fazem jus à imunidade dos impostos.[25]

Nesse passo, convém destacar os casos em que, a despeito de expressa disposição constitucional (art. 173, §2º e art. 150, §3º, ambos da CF/88), a Sociedade de Economia Mista, excepcionalmente, terá direito à imunidade dos impostos, donde a denominação Sociedade de Economia Mista Anômala.

Nesse sentido, tem-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal que reconhece às sociedades de economia mista anômalas o direito à imunidade tributária recíproca, de modo que não estarão sujeitas à incidência de impostos (i) quando, v.g., atuarem como instrumentos estatais, portanto, sem foco na obtenção de lucro, (ii) quando não ocorrer transferência de benefício a particular ilegítimo, e (iii ) quando não ocorrer lesão à livre iniciativa e às regras de concorrência.

Em tais casos, por igual razão, também incumbirá ao fisco comprovar a inexistência no caso concreto dos pressupostos para o gozo de imunidade eventualmente alegada. Vejamos:

No julgamento do RE 253.472 (rel. min. Marco Aurélio, red. p/ acórdão min. Joaquim Barbosa, Pleno, j. 25.08.2010), esta Corte reconheceu que a imunidade tributária recíproca aplica-se às sociedades de economia mista que caracterizem-se inequivocamente como instrumentalidades estatais (sociedades de economia mista “anômalas”). O foco na obtenção de lucro, a transferência do benefício a particular ilegítimo ou a lesão à livre iniciativa e às regras de concorrência podem, em tese, justificar o afastamento da imunidade. Sem o devido processo legal de constituição do crédito tributário, decorrente de atividade administrativa plenamente vinculada do lançamento a servir de motivação, é impossível concordar com as afirmações gerais e hipotéticas de que há “exploração econômica, inclusive por terceiros, os chamados arrendatários das instalações e áreas portuárias” e que ela se dá em regime de concorrência, devido à possibilidade de privatização. (AI 558682 AgR/SP)

Deveras, segundo nossa Suprema Corte, o ente tributante, como responsável pelo ato administrativo, “é a parte dotada dos melhores instrumentos para demonstrar ter seguido os preceitos que dão densidade ao devido processo legal formal e substantivo”. Assim, eventual recurso contra decisão judicial que reconhece o direito à imunidade recíproca não poderá se pautar apenas, v. g., em “afirmações gerais hipotéticas, de que há exploração econômica, inclusive por terceiros, os chamados arrendatários das instalações a áreas portuárias”. Veja-se ainda:

A imunidade tributária recíproca reconhecida à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT alcança o IPTU incidente sobre imóveis de sua propriedade, bem assim os por ela utilizados. No entanto, se houver dúvida acerca de quais imóveis estariam afetados ao serviço público, cabe à administração fazendária produzir prova em contrário, haja vista militar em favor do contribuinte a presunção de imunidade anteriormente conferida em benefício dele. Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, desproveu recurso extraordinário no qual se discutia o alcance da imunidade tributária recíproca relativa ao IPTU, incidente sobre imóveis de propriedade da ECT. O Tribunal salientou que, embora a interpretação literal da Constituição reconhecesse a imunidade recíproca apenas às pessoas políticas, autarquias e fundações, a jurisprudência do STF estendera o beneplácito às empresas públicas e às sociedades de economia mista, desde que prestadoras de serviço público. Assentou que essas entidades poderiam figurar como instrumentalidades das pessoas políticas, de modo a ocupar-se dos serviços públicos atribuídos aos entes federativos aos quais estariam vinculadas, franqueado o regime tributário próprio das autarquias e das fundações públicas. Frisou, no tocante aos tributos incidentes sobre o patrimônio das empresas públicas e das sociedades de economia mista, a necessidade de se analisar a capacidade contributiva, para fins de imunidade, a partir da materialidade do tributo. Distinguiu os institutos da isenção — que seria uma benesse decorrente da lei — e da imunidade — que decorreria diretamente do texto constitucional. Deduziu que, no primeiro caso, incumbiria ao contribuinte que pretendesse a fruição da benesse o ônus de demonstrar seu enquadramento na situação contemplada, enquanto, no segundo, as presunções sobre o enquadramento originalmente conferido deveriam militar a favor do contribuinte. Constatou, a partir desse cenário, que se a imunidade já houvesse sido deferida o seu afastamento só poderia ocorrer mediante a constituição de prova em contrário produzida pelo Fisco. Sublinhou que o oposto ocorreria com a isenção, que constituiria mero benefício fiscal concedido pelo legislador ordinário, presunção que militaria em favor da Fazenda Pública. RE 773992/BA, rel. Min. Dias Toffoli, 15.10.2014. (RE-773992) (Grifamos)

Por oportuno, convém transcrever os fundamentos da decisão que reconhece a necessidade de se observar o princípio da motivação quando da constituição do crédito tributário (AI 748.027 Agr/SP), verbis:

A questão não é “como decretar todos os [imóveis da ECT] sistematicamente imunes ao IPTU, considerando-a, para esses fins, prestadora de serviços públicos, pura e simplesmente” (fls. 444), mas saber-se, neste caso em análise, se a administração tributária desincumbiu-se do dever de motivar o ato plenamente vinculado de constituição do crédito tributário.

Como não há nos autos qualquer elemento que indique ter o lançamento se pautado em eventual prática de ato econômico de inequívoco interesse lucrativo ou concorrencial, para que fosse possível dar provimento ao recurso nos moldes pretendidos pela atacante, seria necessário reabrir a instrução probatória, providência inadmissível (Súmula 279/STF).

Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental. (Grifamos)

Em breve síntese, é atribuição do ente tributante constituir o crédito tributário e, em respeito ao princípio constitucional da motivação, deverá embasar-se num conjunto probatório acerca do qual poderá o suposto sujeito passivo exercer seu direito ao contraditório e à ampla defesa.

Tratando-se de sociedade de economia mista, anômala ou não, entende o Supremo Tribunal Federal que compete ao ente tributante, ao constituir o crédito tributário, comprovar que, no caso sub judice, existem elementos concretos a revelar que se trata de sociedade exploradora de atividade econômica sob o regime de direito privado e, desse modo, sujeita à incidência do imposto.

6. O dever de motivar, tratando-se de entidades sem fins lucrativos

Estão imunes aos impostos os templos de qualquer culto, bem como os partidos políticos, inclusive suas fundações, as entidades sindicais dos trabalhadores, as instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos e atendidos os requisitos da lei, nos termos do art. 150, “b” e “c” da CF/88.

Cite-se, a respeito, a Súmula 724 do Supremo Tribunal Federal de igual teor: “Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, vi, "c", da Constituição, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades essenciais de tais entidades.”

Observe-se ainda que há matéria com repercussão geral e reafirmação de jurisprudência, segundo a qual a “imunidade tributária, prevista no art. 150, VI, c, da CF/88, aplica-se aos bens imóveis, temporariamente ociosos, de propriedade das instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos que atendam os requisitos legais.” (RE 767332 RG/MG)

Tornando ao nosso rumo, resta saber quem arcará com o ônus da prova em tais casos.

Em tese, prevalece a regra geral de que o afastamento da imunidade só pode ocorrer mediante a constituição de prova em contrário produzida pela administração tributária, ou seja, compete à autoridade tributária motivar o lançamento, por ser este um ato administrativo plenamente vinculado. (STF, AI 852.604 AGR / DF)

Noutras palavras, em se tratando de entidade religiosa, há presunção relativa de que o imóvel da entidade está vinculado às suas finalidades essenciais, ensejando a presunção de que continua sob o manto da referida imunidade. Neste caso, a descaracterização dessa presunção para que incida ITBI sobre imóvel de entidade religiosa constitui ônus da Fazenda Pública municipal, nos termos do art. 333, II, do CPC. (STJ, AgRg no AREsp 444.193-RS)

Por outro lado, infere-se das palavras do Min. Joaquim Barbosa, que a imunidade em tela (art. 150, “a” e “c” da CF) implica presunção relativa, jamais absoluta, quanto à existência de vinculação do patrimônio, bens e serviços às finalidades essenciais da entidade. Vejamos:

Não se pode presumir de forma absoluta linear que todos os “bens [da entidade imune] estão relacionados à sua finalidade essencial (pregação da palavra de Deus). Bastasse a propriedade do bem para caracterizar a proteção constitucional, seria desnecessária qualquer ligação normativa expressa com as finalidades essenciais da entidade. De fato, não se discute nestes autos a aplicabilidade da imunidade tributária a todo o patrimônio, renda ou serviços da entidade imune, pois inexiste controvérsia sobre o alcance da norma constitucional. A questão de fundo é se saber a quem compete, no estágio do fluxo de positivação em que se encontrava o crédito tributário, provar a destinação correta ou inadequada do bem.

Esse ônus não é necessariamente do contribuinte (cf., e.g., AI 579.096-AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, DJ e de 03.06.2011; AI 526.787- AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJe de 07.05.2010).

Ademais, a circunstância de o imóvel estar vago também pode não ser determinante (cf. o AI 579.096-AgR).

Ocorre que eventuais falhas do processo administrativo fiscal (ausência de motivação idônea e imposição de dever probatório inexequível) não foram prequestionadas. De forma semelhante, também não foi prequestionada qualquer justificativa para a desocupação eventualmente transitória do imóvel. O único argumento utilizado pela parte-agravante foi a presunção absoluta e irretorquível de boa aplicação do bem, tão-somente em função da idoneidade de seu proprietário.

Para que fosse possível reverter o acórdão-recorrido, de forma a indicar que a desocupação do terreno é temporária e ocasional, seria necessário reabrir a instrução probatória (Súmula 279/STF). (AgRg no AI 758.316/PR)

Em suma, quanto à imunidade prevista no art. 150, inciso VI, alínea c, da Lei Maior, o ônus de elidir a presunção de vinculação às atividades essenciais é do Fisco, mediante o devido processo legal de constituição do crédito tributário, decorrente de atividade administrativa plenamente vinculada do lançamento a servir de motivação.

Esse entendimento, vale gizar, não favorece quem formula pedido amplo, por exemplo, quando o pretenso titular das mencionadas imunidades postula, em grau recursal, a desconstituição de créditos tributários em sua generalidade, sem especificar o quadro fático-jurídico de cada um (art. 333, II, CPC).

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo procuramos direcionar nossa atenção sobre ônus da prova na esfera processual tributária, com o escopo de ressaltar a importância do princípio constitucional da motivação como instrumento hábil a assegurar a efetivação dos direitos e garantias fundamentais do contribuinte.

Assim, no que concerne às decisões proferidas em sede de recurso especial e extraordinário tendo, como pano de fundo, o tema da imunidade genérica dos impostos, enfatizou-se que é atribuição do ente tributante constituir o crédito tributário e, em respeito ao princípio constitucional da motivação, embasar-se num conjunto probatório acerca do qual poderá o suposto sujeito passivo exercer seu direito ao contraditório e à ampla defesa.

Ressaltou-se, ademais, que a tendência jurisprudencial prestigia a sociedade de economia mista anômala, os templos de qualquer culto, bem como os partidos políticos, inclusive suas fundações, as entidades sindicais dos trabalhadores e as instituições de educação e de assistência social, haja vista que, em tais hipóteses, caberá ao ente tributante, quando da constituição do crédito tributário, comprovar a presença de elementos concretos que autorizem a exigência de impostos.

Em breve síntese, é atribuição do ente tributante constituir o crédito tributário e, em respeito ao princípio constitucional da motivação, deverá embasar-se num conjunto probatório acerca do qual poderá o suposto sujeito passivo exercer seu direito ao contraditório e à ampla defesa. Doutro lado, também com o escopo de proporcionar maior efetividade à imunidade, o ônus da prova somente caberá às referidas entidades para o fim de desconstituir a presunção relativa do crédito tributário regularmente formalizado pelo fisco.

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Sobre a autora
Valéria Furlan

Professora Titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Doutora e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP, com pós-doutorado pela Universidade de Bologna/Itália.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURLAN, Valéria. Princípio da motivação e ônus da prova no processo tributário nas imunidades genéricas dos impostos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7404, 9 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51553. Acesso em: 21 nov. 2024.

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