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Ilegalidade da retenção integral do salário

Resumo:


  • O princípio da dignidade da pessoa humana assegura ao trabalhador o direito ao salário para a subsistência própria e de sua família, não havendo justificativa para que instituições financeiras retenham integralmente ou parte significativa dos valores depositados para pagamento de dívidas.

  • De acordo com o artigo 833, inciso IV, do Código de Processo Civil, salários e outros rendimentos do trabalho são absolutamente impenhoráveis, exceto para pagamento de prestações alimentícias, sendo ilícita a retenção pelo banco sem autorização para quitação de empréstimos ou dívidas.

  • A prática de retenção de salários pelas instituições financeiras pode configurar ato ilícito e gerar direito à indenização por danos morais, visto que impede o correntista de atender suas necessidades básicas e de sua família, violando dispositivos constitucionais e do Código de Defesa do Consumidor.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

É ilegal a prática da retenção integral do salário por instituições financeiras para o pagamento de empréstimos, cheque especial e demais formas de dívidas, podendo, inclusive, ensejar dano moral.

Tendo como base o princípio da dignidade da pessoa humana, na qual é assegurado ao trabalhador o recebimento de salário proveniente do seu esforço e manutenção da sua subsistência e da sua família, nada há que justifique a prática habitual e lesiva das instituições financeiras em reter a integralidade ou parte significativa do saldo depositado em conta do correntista, para pagamento de créditos rotativos, empréstimos ou limite de cheque especial.

Nos termos do inciso IV do artigo 833 do Código de Processo Civil:

São IMPENHORÁVEIS: os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2o; .”

Temos assim que comete ato ilícito a instituição financeira que, sem autorização, bloqueia a totalidade dos rendimentos mensais do correntista para pagamento de dívida. Nestes termos, o ato ilícito em questão poderá ser apto a gerar indenização por danos morais, tendo em vista que a correntista/consumidora está sendo injustamente privada do seu único meio de subsistência, sendo impossibilitado de suprir as suas necessidades básicas e as de sua família, como moradia, alimentação e saúde.

Nesse sentido, também leciona Nehemias Domingos de Melo:

dano moral é toda agressão injusta aqueles bens imateriais, tanto de pessoa física quanto de pessoa jurídica”. (MELO, 2004, p. 9)

Como bem explicado pelo Doutrinador Gonçalves, “Dano moral é o que atinge o ofendido como pessoa, não lesando seu patrimônio. É lesão de bem que integra os direitos da personalidade, como a honra, a dignidade, intimidade, a imagem, o bom nome, etc., como se infere dos art. 1º, III, e 5º, V e X, da Constituição Federal, e que acarreta ao lesado dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação”

A angústia, a preocupação e os sentimentos proporcionados por situação de injustiça, ilegalidade e impotência são inegáveis. Tudo isto traz alterações de ânimo que devem ser entendidas como dano moral.

No entendimento do referido Tribunal, mesmo que haja permissão para débito de uma parcela, resta caracterizado o dano moral decorrente da apropriação do salário pela instituição bancária

Sendo o salário indispensável para a manutenção da família, temos ainda que é abusiva cláusula em contrato de abertura de crédito em conta corrente que permite sua retenção para amortização da dívida decorrente do uso do saldo devedor. Assim, mesmo com cláusula contratual permissiva, a apropriação do salário do correntista pelo banco-credor para pagamento de empréstimos é ilícita, quer seja em relação à desproporcionalidade do valor em relação ao salário, quer seja pelo fato da instituição bancária não informar em tempo hábil sobre o desconto, pois viola os artigos 1º, inciso III, e 7º, inciso X, da Constituição Federal, o artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor, bem como o artigo 833, inciso IV, do CPC e art. 46 do CDC.

CDC Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;

CDC Art 6°: São direitos básicos do consumidor:

V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionaisou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

VI- a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

CDC Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

Reportando-nos ao Código de Defesa do Consumidor constata-se cristalinamente a relação jurídica existente entre autora e Réu, que submete-se amplamente e sem nenhuma restrição às normas e condições elencadas no referido códice.

A caracterização das instituições financeiras, como fornecedoras, está positivada no art 3°,caput do CDC e especialmente em seu §2°

Art. 2° “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Art.3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestações de serviços.

§2° Serviço é qualquer atividade forne cida no mercado de consumo, mediante remuneração,inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”

Quanto a ilegalidade, o Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento. Em decisão proferida no REsp 831.774, o ministro Humberto Gomes de Barros ponderou a ilicitude da ação do banco que, ao valer-se do salário do correntista, que lhe é confiado em depósito pelo empregador, retém o pagamento para cobrir saldo devedor de conta-corrente. Tal medida, como bem destaca o julgado, mostra o exercício arbitrário das próprias razões, eis que os bancos devem se valer das medidas legais cabíveis para recebimento dos créditos.

Se nem mesmo ao Judiciário é lícito o bloqueio de salários, seria a instituição financeira autorizada a fazê-lo? Pelo que observamos da maioria dos julgados analisados, temos que a resposta é negativa.

Vejamos o que dispõe o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema:

BANCO - RETENÇÃO DE SALÁRIO PARA COBRIR SALDO DEVEDOR – IMPOSSIBILIDADE. Não é lícito ao banco valer-se do salário do correntista, que lhe é confiado em depósito, pelo empregador, para cobrir saldo devedor de conta corrente. Cabe-lhe obter o pagamento da dívida em ação judicial. Se nem mesmo ao Judiciário é lícito penhorar salários, não será instituição privada autorizada a fazê-lo. (STJ - REsp. 831.774-RS – Acórdão COAD 123590 - Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – Publ. em 29-10-2007)

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANO MORAL - RETENÇÃO DE SALÁRIO PARA PAGAMENTO DE CHEQUE ESPECIAL VENCIDO – ILICITUDE. Mesmo com cláusula contratual permissiva, a apropriação do salário do correntista pelo banco credor para pagamento de cheque especial é ilícita e dá margem a reparação por dano moral. (STJ - REsp. 507.044-AC – Acórdão COAD 110353 - Rel. Min. Humberto Gomes de Barros - Publ. em 3-5-2004)

Do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, temos os seguintes julgados:

CONTA SALÁRIO - CANCELAMENTO DE CONTRATO DE CHEQUE ESPECIAL - UTILIZAÇÃO DO SALÁRIO DO CORRENTISTA PELO BANCO PARA QUITAÇÃO DE DÉBITO EM BENEFÍCIO PRÓPRIO - IMPOSSIBILIDADE - AFRONTA À PROTEÇÃO SALARIAL PREVISTA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO - RESTITUIÇÃO DE VALORES QUE SE IMPÕE. O salário se constitui em verba intocável. À entidade bancária não é dado o direito de realizar qualquer débito na conta-salário do correntista, ainda que por decorrência do cancelamento do contrato de cheque especial, por se constituir em ato praticado pelo credor e em seu próprio benefício, como forma de saldar seus créditos sem o devido processo legal. Tendo se apossado de toda a verba salarial do correntista, impõe-se a condenação da entidade bancária em danos morais e restituição dos valores anteriormente apropriados. (TJ-MG – Ap. Civ. 1.0024.08.195640-1/001 – Rel. Des. Luiz Carlos Gomes da Mata – Publ. em 16-6-2009)

CONTRATO BANCÁRIO - CONTRATO DE EMPRÉSTIMO PESSOAL - SALÁRIO - DÉBITO EM CONTA CORRENTE PARA PAGAMENTO DE EMPRÉSTIMO. (...) A cláusula contratual que autoriza o banco a se apropriar de dinheiro de salário, mediante débito em conta corrente, em pagamento de empréstimo contraído pelo correntista, viola o princípio da impenhorabilidade absoluta dos recursos oriundos do trabalho, aplicável a qualquer espécie de expropriação. (TJ-MG – Ap. Civ. 1.0024.07.459604-0/005 – Rel. Des. Fábio Maia Viani – Publ. em 17-3-2009)

DÉBITO EM CONTA CORRENTE PROVENIENTE DE SALÁRIO - IMPOSSIBILIDADE - ART. 7º, X, CF/88 C/C ART 649, IV, CPC - SOMENTE POSSÍVEL MEDIANTE AUTORIZAÇÃO DO CLIENTE - MULTA PELO DESCUMPRIMENTO. Autoriza o art. 7º, inciso X da CF, a proteção ao salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa. Determina o art. 649, inciso IV do CPC, a impenhorabilidade do salário, salvo para pagamento de prestação alimentícia. Sendo o salário impenhorável, só se considera lícito o débito em conta salário, se o banco for autorizado pelo cliente. (TJ-MG – AI 1.0377.07.009713-6/001 – Rel. Des. Nicolau Masselli – Publ. em 15-11-2007)

REVISÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS - CHEQUE ESPECIAL - MUTUÁRIO EM MORA - BLOQUEIO DE SALÁRIO. Consoante a proibição contida no art. 649, inciso IV, do Código de Processo Civil, é absolutamente impenhorável toda verba decorrente da relação de emprego, seja aquela paga regularmente pelo empregador ou decorrente de prestação de serviços autônomos por profissional liberal, ressalvada a hipótese de pagamento de pensão alimentícia, mormente quando o apontado devedor de cheque especial não tenha autorizado, previamente, o desconto em sua folha de pagamento. (TJ-MG – AI 2.0000.00.474578-8/000 – Rel. Des. Guilherme Luciano Baeta Nunes – Publ. em 26-7-2006)

CONTA CORRENTE - DÉBITO ORIUNDO DE OPERAÇÃO DE CRÉDITO - RETENÇÃO DE VERBA SALARIAL - ILEGALIDADE. A retenção, por parte do banco, de valores da conta corrente do autor referentes à verba salarial para pagamento de operações de crédito realizadas entre ambos é ilegal, e esbarra no comando do art. 7º, X, da CF/88, bem como do art. 649, IV, do CPC. (TJ-MG – AI 2.0000.00.459450-9/000 – Rel. Des. Pedro Bernardes – Publ. em 23-10-2004)

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O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também protege o consumidor:

BANCO - DESCONTO INDEVIDO EM CONTA SALÁRIO - CONDUTA IMPRÓPRIA - DANO MORAL. A jurisprudência pátria é uníssona ao reconhecer a ilegalidade do desconto de valores provenientes de remuneração existentes nas contas-salário dos consumidores, pois tal ato é considerado abusivo e as cláusulas contratuais que o autorizam são consideradas nulas de pleno direito, conforme preceituado no artigo 51, IV, do CDC. Dano moral in re ipsa. A privação do valor correspondente ao salário importa em violação ao direito à disponibilidade do vencimento por parte da autora. (TJ-RJ - Ap. Cív. 2009.001.01354 – Acórdão COAD 128241 - Relª Desª Renata Machado Cotta - Publ. em 2-2-2009)

BLOQUEIO DE SALÁRIO EM CONTA-CORRENTE - IMPENHORABILIDADE - CONTRATO DE ADESÃO - CLÁUSULA ABUSIVA - RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO BANCO (ART. 14 DO CDC). A conduta de instituição financeira que desconta o SALÁRIO de servidor para fins de quitação de débito, contraria o art. 7º, X, da Constituição Federal e o art. 649, IV, do CPC, pois estes dispositivos visam a proteção do SALÁRIO do trabalhador, seja ele servidor público ou não, contra qualquer atitude de penhora, retenção, ou qualquer outra conduta de restrição praticada pelos credores, salvo no caso de prestações alimentícias. Ademais, impõe-se considerar que a cláusula autorizativa de retenção do saldo em conta corrente, para liquidação ou amortização de dívida, é considerada nula, consoante a regência do art. 51 do Código de Defesa do Consumidor. (TJ-SE – Ap. Cív. 3907/2007 – Relª. Desª. Josefa Paixão de Santana - Julg. em 12-11-2007)

Esta prática é vedada pela Constituição Federal, Código de Processo Civil e Código de Consumidor, pois existem outros meios legais e judiciais disponíveis para evitar uma situação de crise financeira ao correntista.

A legislação brasileira assegura ao trabalhador o recebimento de salário proveniente do seu esforço e manutenção da sua subsistência e da sua família, e é exatamente aí que gostaríamos de indagar: o que justifica a prática habitual e lesiva das instituições financeiras em reter a integralidade do saldo depositado em conta do correntista, para pagamento de créditos rotativos, empréstimos ou limite de cheque especial?

Nos termos do inciso IV do artigo 833 do Código de Processo Civil, são absolutamente impenhoráveis os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal.

Não se pode imaginar que a lei vedou ao próprio judiciário a possibilidade de penhorar o salário de um trabalhador, e a instituição realizar diretamente, e na maioria dos casos, sem mesmo um aviso prévio, para que o cliente pudesse se precaver.

A própria Constituição Federal, em seu artigo 7º, inciso X, garante a proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa.

A escusa utilizada pelas instituições bancárias é sempre a mesma, alegando que com o objetivo de justificar a retenção de qualquer crédito existente em conta-corrente, os bancos afirmam que quando efetivado o depósito, tal verba deixa de ser caracterizada como salário, sendo, portanto, suscetível de ser utilizada para pagamento de dívidas. Sendo inadmissível a retenção integral de conta-corrente do consumidor.

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Sobre a autora
Yngrid Hellen Gonçalves de Oliveira

Advogada correspondente em Brasília e toda região do Distrito Federal. Formada pela Faculdade Icesp/Promove; Atuação em todas as instâncias da Justiça Estadual, Federal e Tribunais Superiores. Cópias de processos, ajuizamento, distribuição e protocolo de petições em geral; pedido de certidões forenses e cartorárias e audiências. Atuação com consultoria e assessoria jurídica, acompanhamento processual jurídico e/ou administrativo. Atuação área Criminal, Cível e Consumidor. Contato: 61 993341720 [email protected] Facebook: Yngrid Gonçalves advocacia & consultoria jurídica

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Yngrid Hellen Gonçalves. Ilegalidade da retenção integral do salário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4831, 22 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52209. Acesso em: 22 dez. 2024.

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