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Kelsen, Bourdieu e o ato (violento) de vontade

27/03/2017 às 15:15
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Um exame do capítulo VIII (A interpretação) da obra Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, a partir do conceito de poder e violência simbólica da obra Meditações Pascalianas de Pierre Bourdieu.

O que é o Direito? Na perspectiva de Hans Kelsen, o Direito pode ser compreendido como um plexo de atos de vontade que conferem autenticidade na interpretação da norma. É o sujeito eleito (por uma norma do superior escalão) como competente que cria o Direito, enunciando-o de forma a conduzir as relações sociais.

Nas palavras dele (2006, p. 394), “através deste ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretação, especialmente da interpretação levada a cabo pela ciência jurídica. A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria Direito.

Tendo em vista que a lógica figura-se como base para o conhecimento, cujo emprego funciona como uma represa no rompimento do Real para o Simbólico, no Direito, a lógica apresentada é a da imputação, em que a fórmula D(H->C) forja a moldura normativa de todos os comandos jurídicos.

Todavia, ainda que essa moldura imponha os limites lógicos de aplicação do Direito, isto é, a base sintática de sua manifestação (princípio da homogeneidade sintática da norma jurídica), não resolve o problema dos sentidos jurídicos que conduzirão as relações intersubjetivas (princípio da heterogeneidade semântica da norma jurídica).

Isso porque, claro, o Direito não se resume em formas estéreis ou tautológicas, vazias de sentido, eis que ele irradia um complexo sistema de comunicação, tecido mediante atos de vontade que constroem a linguagem jurídica. O Direito, pois, dirige-se a seres utentes da comunicação, ou seja, sujeitos-de-direito, cuja relação é dada sobre uma plataforma jurídica definidora dos significados da vida (jurídica) em sociedade, de forma a produzir segurança e consenso nas relações.

O sentido da norma é a própria interpretação da mesma dada pela vontade do agente competente, processo esse obscuro e labiríntico que, quanto mais se medita sobre, mais se revela uma desfaçatez de predominância do arbitrário.

Compreendido isso, Kelsen parece comedido ao abordar o problema da indeterminação do Direito, abrandando-o, penso eu, pelo argumento de autoridade, em que a interpretação autêntica, ainda que seja uma dentre uma miríade de outras possíveis, é aquela derivada de um órgão público competente (2006, p. 390-391). Vejamos:

"Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito - no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa - não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral"

De certa forma, parece-me que o parágrafo acima carrega certo resquício do conceito de justiça defendido por Trasímaco, na obra República de Platão, no qual “a justiça é a conveniência do mais forte”.

Portanto, o Direito não é Puro; sua Teoria que é. O Direito é mastigado no campo cognoscitivo do agente, permitindo inúmeras possibilidades na interpretação da norma. Aliás, pensando como Spinoza, o Direito é antes mediado por seres sencientes, cuja perseverança na existência contamina todos os signos que encontra (jurídicos ou não), projetando construir a interpretação que melhor lhe convir para o aumento de sua potência constituinte do seu ser.

Nesse mesmo sentido, o nominalismo científico defendido por Thomas Hobbes, aliado a sua concepção de indivíduo desejante – futura base teórica para a psicanálise –, autoriza que ele encontre nas sensações do corpo do agente as causas materiais de produção, tanto da linguagem, como do comportamento (2004, p. 57). Vejamos:

"A sensação é o movimento provocado nos órgãos e partes inferiores do corpo do homem pela ação das coisas que vemos, ouvimos, etc., e a imaginação é apenas o resíduo do mesmo movimento, que permanece depois da sensação, conforme já se disse no primeiro e segundo capítulos. E dado que andar, falar e os outros movimentos voluntários dependem sempre de um pensamento anterior de como, onde e o que, é evidente que a imaginação é a primeira origem interna de todos os movimentos voluntários. E embora os homens sem instrução não concebam que haja movimento quando a coisa movida é invisível, ou quando o espaço onde ela é movida (devido a sua pequenez) é insensível, não obstante esses movimentos existem"

Pode-se imaginar, pois, a hermenêutica a serviço da vontade de potência. Vale recordar a célebre passagem contida no §289, da obra Além do Bem e do Mal, quando Nietzsche, amargurando toda fruta colhida de árvores platônicas, diz que “toda filosofia esconde uma outra filosofia; toda opinião é um esconderijo, toda palavra uma nova máscara”.

Então, quais as implicações de uma promiscuidade da potência do agente com o ato de vontade que concede sentido aos signos jurídicos? Penso que é a constatação do arbitrário que reside na gênese de toda lei e significado que dela decorra. A propósito, o arbitrário pode ser compreendido, num nível superficial de voluntariedade, como um ato político de vontade, no sentido revelado por Maquiavel das ações que intentam a manutenção do poder ou potência do ser, perseverante de suas ideologias de mundo.

Nas palavras de Pierre Bourdieu (2001, p. 203-204):

"Pascal tira uma conclusão tipicamente maquiavélica a partir da descoberta de que o arbítrio e a usurpação estão na origem da lei, de que e impossível fundar o direito na razão e no direito, de que a Constituição, sendo decerto o que mais se assemelha, na ordem política, a um primeiro fundamento cartesiano, não passa de uma ficção fundante destinada a dissimular o ato de violência fora da lei que está na raiz da instauração da lei: na impossibilidade de facultar ao povo o acesso a verdade libertadora sobre a ordem social (“veritatem qua liberetur”), pois isso apenas serviria para ameaçar ou arruinar essa ordem, e precise “trapaceá-Io”: dissimular-lhe a “verdade da usurpação” ou seja, a violência inaugural na qual se enraíza a lei, fazendo com que seja “vista como autentica, eterna”

Em outras palavras, a despeito do fetichismo platônico que o Direito guarda a sete chaves, em que os operadores legítimos desse campo são outorgados de competência escolástica para, garimpando o corpo normativo, construir a norma jurídica despida dos seus apetites ideológicos particulares, o Direito pode ser compreendido como um instrumento de conversão dos atos (políticos) de vontade de alguns para o campo de pretensa técnica e esterilidade lógica de condução das relações sociais dos demais. Aqui, justifica-se, tanto a concentração de poder, como a violência simbólica de que dele emerge, devidamente encalçados no Direito, mesmo sob um Estado Democrático de Direito.

A propósito, existem autores respeitados, sem dúvidas, apostando na autonomia conquistada pelo paradigma do Estado Democrático de Direito, em que, independente da motivação política do agente competente, os direitos conquistados e enunciados constitucionalmente deverão imperar sobre todas decisões solipsistas dos Tribunais[1] – razão essa que faz dos mecanismos de controle de constitucionalidade fundamentais.

Entretanto, mesmo que o Direito carregue consigo, no seu corpo de signos, a possibilidade dessa interpretação, é importante levar em consideração que os controles de constitucionalidades dependerão de: I) construir o significado jurídico que conceda ao caso concreto o predomínio constitucional; II) o reconhecimento desse sentido jurídico pelo Tribunal guardião da Constituição. Logo, retorna-se aos atos (políticos) de vontades de construção do Direito.

É a impossibilidade de acesso à Lei por todos, competentes ou não, denunciada tão vivamente por Kafka na obra O Processo. Aliás, as palavras do porteiro da Lei são igualmente reveladoras da esperança que nos cerca de um dia acessá-la, pois "É possível [acessar a Lei]", conforme o porteiro, "mas agora não" (2002, p. 152).

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O Direito revela-se o próprio exercício de poder, em que a margem de discricionariedade torna-se acachapante frente ao campo de vinculação ao mesmo. Meditando sobre, conclui-se que esse campo vinculado de legalidade é construído sobretudo por normas de competência, quando alguns autorizados mediante concursos públicos ingressam no ordenamento como operadores legítimos, cuja interpretação passa a ser a autêntica. Sendo assim, não é difícil constatar que a competência no Direito acaba por reproduzir e perpetuar o capital cultural tão mal distribuído nas sociedades, notadamente na brasileira.

A interpretação da norma jurídica é, portanto, concebida como autêntica em razão de dispositivos sociais que reproduzem o poder dominante, relegando violentamente os significados jurídicos que poderiam, no campo das possibilidades, ser construídos, a partir de uma cumplicidade que o próprio Direito impõe para os sujeitos-de-direito como condição de segurança nas relações intersubjetivas. Assim sendo, introjeta-se desde a tenra infância a docilização do corpo que será administrado, por intermédio daquilo que Foucault alcunhará de biopolítica, desembocando neste delírio coletivo, no qual só uma concepção de justiça existe: aquela decorrente dos atos (políticos) de vontade dos Tribunais (Supremos ou Superiores).

Sobre essa submissão inconsciente ao poder simbólico, Bourdieu explica (2001, p. 207-208):

"O poder simbólico só se exerce com a colaboração dos que lhe estão sujeitos porque contribuem para construí-lo como tal. Contudo, seria bem perigoso deter-se nessa constatação (com o construtivismo idealista, etnometodológico ou qualquer outra abordagem): essa submissão tem muito pouco a ver com uma relação de “servidão voluntaria” e essa cumplicidade não é concedida por um ato consciente e deliberado; ela própria é o efeito de um poder que se inscreve duravelmente no corpo dos dominados, sob a forma de esquemas de percepção e de disposições (para respeitar, admirar, amar etc), ou seja, de crenças que tornam sensível a certas manifestações simbólicas, tais como as representações públicas do poder"

Então, a legitimidade não é consciente, nos termos em que Weber defende, mas está enraizada no corpo social mediante engrenagens apresentadas como legítimas para definir os significados jurídicos que modalizam as relações intersubjetivas. Sob esse viés, o Direito é conservador por excelência.

Mas, nada disso significa que seja impossível o Direito projetar reais mudanças sociais, ainda que nos incomode a possibilidade de o Estado Democrático de Direito não passar da necessidade de azeitamento das relações sociais presentes e, por corolário, perpetuação do modelo de exploração vigente. Uma forma mais sutil e elegante de exercer a dominação. Afinal, atentemos para o fato de que, mesmo sob esse paradigma social-democrático, conforme as últimas estatísticas (2016), a concentração de riqueza atingiu proporções quiméricas, quando 1% da população mundial possui a mesma riqueza dos 99% restantes[2]. No Brasil, segundo os dados divulgados pela Receita Federal, 27 mil de contribuintes, num universo de 27 milhões de declarantes, concentram a riqueza de 44 bilhões[3].

O Direito deve conceder abertura para uma maior participação social na construção de seus significados jurídicos, concedendo autenticidade para interpretações que não se encerrem na jurisdição do Estado-juiz. Por mais absurdo que isso pareça, e ainda que digam que a democracia é expressada pelo voto (do que discordo peremptoriamente), decerto seriam novos eixos estruturantes que confeririam a condição de uma real democracia, que é a participação de todos naquela luta que subjaz todas as outras lutas: a luta pelo significado dos fenômenos.  


Referência

BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Nova Cultural, 2004.

KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.


Notas

[1] Vide Lenio Streck: http://www.faccg.com.br/img/professor/une/0002452_2308-4897-1-PB.pdf

[2] http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo_oxfam_fn

[3] http://www.fazenda.gov.br/noticias/2016/maio/200bspe-divulga-relatorio-sobre-a-distribuicao-da-renda-no-brasil

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Sobre o autor
Bruce Bastos Martins

Advogado inscrito na OAB/SC 32.471 e sócio da Lobo & Vaz Advogados Associados. Nascido em Florianópolis/SC, Brasil. Mestrando em Direito Tributário na Pontifícia Universidade Católica de Sao Paulo - PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Especialista em Direito da Aduana e do Comércio Exterior pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Professor Seminarista pelo IBET. Autor de artigos em publicações especializadas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Bruce Bastos. Kelsen, Bourdieu e o ato (violento) de vontade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5017, 27 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52686. Acesso em: 22 dez. 2024.

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