2. DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO APÓS A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/2004
2.1. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO EM RELAÇÃO À MATÉRIA
A Reforma do Poder Judiciário, ocorrida por meio da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, busca a viabilização, de forma concreta, do acesso à justiça, o que leva em conta o direito a um resultado efetivamente justo e a celeridade da demanda ajuizada. É o que se extrai já do primeiro parágrafo da sua exposição de motivos:
Poucos problemas nacionais possuem tanto consenso no tocante aos diagnósticos quanto à questão judiciária. A morosidade dos processos judiciais e a baixa eficácia de suas decisões retardam o desenvolvimento nacional, desestimulam investimentos, propiciam a inadimplência, geram impunidade e solapam a crença dos cidadãos no regime democrático.[45]
Desde a Constituição de 1934 até a nossa atual Carta Magna – com redação anterior à Emenda Constitucional nº 45/2004, tínhamos a previsão de que a Justiça do Trabalho era a justiça especializada apta a dirimir conflitos entre empregados e empregadores.
É consabido que a competência da Justiça do Trabalho foi significativamente ampliada com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, passando a contemplar todas as controvérsias oriundas da relação de trabalho. A competência foi estendida aos dissídios envolvendo os entes da Administração Pública Direta e Indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sem estabelecer qualquer ressalva.
Após a referida Emenda Constitucional, a qual alterou a redação do artigo 114, da Constituição Federal, temos um texto mais amplo, desde o primeiro inciso – sendo este o mais controverso. Transcreve-se o teor do mencionado artigo após a alteração por meio da importante Emenda nº 45/2004:
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;
IV os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
V os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;
VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;
VII as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
VIII a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a , e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir;
IX outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei. (grifo nosso)
Desse modo, alguns passaram a entender que a Justiça Especializada do Trabalho teria competência para processar e julgar ações envolvendo servidores públicos, fossem estes regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ou por Estatuto próprio (Lei).
Quanto ao conceito de relação de trabalho, gênero da relação de emprego, segundo Maurício Godinho Delgado, engloba:
todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível. A expressão relação de trabalho englobaria, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de pactuação de prestação de labor (como trabalho de estágio, etc.). Traduz, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes o mundo jurídico atual.[46]
Assim, a Constituição de 1988 tornou mais abrangente a competência material da Justiça do Trabalho ao prever que é a Justiça Especializada do Trabalho competente para solucionar controvérsias entre trabalhadores e empregadores, e não apenas entre empregados e empregadores. Sabe-se que a diferença não é apenas de nomenclatura, tendo agora a competência de julgar outras relações além da relação de emprego (espécie do gênero trabalho).
Nesse sentido, elucidou o brilhante professor Amauri Mascaro Nascimento:
Relação de trabalho é um gênero, do qual a relação de emprego ou contato de trabalho é uma das modalidades, aspecto de fácil compreensão diante das múltiplas formas de atividade humana e que o Direito procura regulamentar em setorizações diferentes. Pode-se, mesmo, falar em divisão jurídica do trabalho com implicações no problema da competência dos órgãos jurisdicionais.[47]
Tal ampliação de atuação da Justiça do Trabalho gerou inconformismo pelos órgãos de classe dos juízes federais, especialmente a AJUFE – Associação dos Juízes Federais, que em 2005 ajuizou Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI) perante o Supremo Tribunal Federal, tendo como objeto a redação alterada pela supracitada Emenda Constitucional do inciso I, do artigo 114, da Constituição Federal. A análise desta ADI será feita mais adiante.
Segundo a melhor doutrina, a competência da Justiça do Trabalho pode ser dividida em relação à matéria, às pessoas, ao lugar e funcional. As duas primeiras estão previstas no supramencionado artigo 114 da Carta da República.
Em relação à competência para julgar as ações relativas ao meio ambiente de trabalho, temos tal atribuição concedida em razão da matéria, ainda quando tais ações versem sobre o meio ambiente laboral dos estatutários – tema já sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, por meio da edição da Súmula 736, a qual passaremos a analisar mais detidamente no tópico subsequente.
Objetivamente, em relação à competência em relação à matéria, arremata Carlos Henrique Bezerra Leite: “A competência em razão da matéria no processo do trabalho é delimitada em virtude da natureza da relação jurídica material deduzida em juízo.” [48]
Acerca do tema, pondera João Oreste Dalazen:
o que dita a competência material da Justiça do Trabalho é a qualidade jurídica ostentada pelos sujeitos do conflito intersubjetivo de interesses: empregado e empregador. Se ambos comparecem a Juízo como tais, inafastável a competência dos órgãos desse ramo especializado do Poder Judiciário nacional, independentemente de perquirir-se a fonte formal do Direito que ampara a pretensão formulada. Vale dizer: a circunstância de o pedido alicerçar-se em norma do Direito Civil, em si e por si, não tem o condão de afastar a competência da Justiça do Trabalho se a lide assenta na relação de emprego, ou dela decorre. Do contrário, seria inteiramente inócuo o preceito contido no art. 8º, parágrafo único, da CLT, pelo qual a Justiça do Trabalho pode socorrer-se do ‘direito comum’ como ‘fonte subsidiária do Direito do Trabalho’. Se assim é, resulta evidente que a competência da Justiça do Trabalho não se cinge a dirimir dissídios envolvendo unicamente a aplicação do Direito do Trabalho, mas todos aqueles, não criminais, em que a disputa se dê entre um empregado e um empregador nesta qualidade jurídica.[49]
Portanto, se a causa de pedir e o pedido dizem respeito ao previsto como de competência da Justiça Especializada do Trabalho, obviamente, deve esta processar e julgar as respectivas ações.
Neste sentido, a Súmula nº 736 do Supremo Tribunal Federal sedimentou o entendimento que “Compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”.
2.2. A SÚMULA 736 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
É entendimento consolidado, esposado por meio da Súmula 736 do STF, que compete à Justiça do Trabalho julgar as ações acerca do meio ambiente de trabalho, vez que sua violação compromete a saúde, higiene e segurança do trabalhador. Transcreve-se a referida Súmula: “Compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”.
Como precedentes de tal súmula temos os julgamentos do Recurso Extraordinário 213015[50], a Petição 2260[51], o Recurso Extraordinário 206220[52] e o Conflito de Jurisdição 6.959-6[53].
Nesta discussão, muito se utilizará do recurso da jurisprudência, visto ser uma importante fonte para embasar as ações relativas ao meio ambiente de trabalho. Percebe-se que desde a Constituição de 1988, ainda sem os acréscimos da Emenda nº 45, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal lançou vários precedentes firmando a Justiça do Trabalho como competente para julgamento de ações relativas à saúde, medicina e segurança do trabalhador (componentes do meio ambiente de trabalho).
Em julgado da 2ª Turma do STF, publicado em 17/09/1999, nos autos do Recurso Extraordinário 206.220/MG – um dos precedentes da Súmula 736 deste mesmo Tribunal Superior, sob a relatoria do Min. Marco Aurélio, assim ficou disposto:
EMENTA: Competência. Ação civil pública. Condições de trabalho. Tendo a ação civil pública como causas de pedir disposições trabalhistas e pedidos voltados à preservação do meio ambiente de trabalho e, portanto, aos interesses dos empregados, a competência para julgá-la é da Justiça do Trabalho.
Recentemente, acerca de ações relativas ao meio ambiente de trabalho dos servidores públicos do Estado de Santa Catarina, o ilustre relator Maurício Godinho Delgado proferiu julgamento no Recurso de Revista nº 10236-94.2013.5.12.0034, à luz da Súmula 736 do STF, posicionando-se favoravelmente à competência da Justiça do Trabalho. Transcreve-se excerto da decisão, inclusive com referência a precedente no mesmo sentido:
RECURSO DE REVISTA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO EM FACE DO ESTADO DE SANTA CATARINA. TUTELA DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. ABRANGÊNCIA A TODOS OS TRABALHADORES, AINDA QUE OS SERVIDORES DO HOSPITAL PÚBLICO ENVOLVIDO SEJAM ADMINISTRATIVOS. MEIO AMBIENTE DO TRABALHO REGULADO POR NORMAS TRABALHISTAS ENVOLVENDO TAMBÉM OUTROS TRABALHADORES ALÉM DOS ADMINISTRATIVOS. MATÉRIA EMINENTEMENTE TRABALHISTA. SÚMULA 736 DO STF. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO.
Insere-se no âmbito da competência material da Justiça do Trabalho a apreciação e julgamento de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, mediante a qual se formulam pedidos relativos à adequação do meio ambiente de trabalho em face de ente público para todos os trabalhadores, independentemente do vínculo jurídico laboral, inclusive para os servidores estatutários (Súmula 736 do STF. Precedentes desta Corte). Agregue-se, ademais, a constatação de que a Constituição da República, em seu conceito estruturante de Estado Democrático de Direito, concentra na Justiça do Trabalho (art. 114, I) as ações que o Ministério Público do Trabalho proponha contra a União, Estados, DF ou Municípios – e suas entidades públicas – visando à concentração do princípio constitucional da valorização do trabalho e do emprego, com a efetivação dos direitos fundamentais da pessoa humana, seja com respeito ao meio ambiente, seja com respeito a outros temas e dimensões correlatos, em busca de medidas concretas para o cumprimento real da ordem jurídica. Nessa linha, há precedente judicial desta 3ª Turma, envolvendo o Poder Público Municipal (RR-75700-37.2010.5.16.0009, Relator Ministro Maurício Godinho Delgado, DEJT de 20/09/2013).[54] (grifo nosso)
Em nossa jurisprudência, temos inúmeros outros exemplos favoráveis à competência da Justiça do Trabalho. No próximo capítulo, veremos alguns casos em que Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas tem atuado partindo da premissa de que a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar as ações relativas ao meio ambiente laboral dos estatutários, à luz do entendimento sumulado pelo STF, bem como as decisões do Tribunal Regional do Trabalho da 19ª Região.
Desta feita, a Súmula 736 gerou maior segurança jurídica, tanto para o ajuizamento de Ações Civis Públicas pelo MPT, quanto para a manutenção das ações relativas a meio ambiente de trabalho na competência material da Justiça Especializada Laboral, por meio de decisões liminares e definitivas obrigando os Entes da Administração Direta (União, Estados e Municípios) a cumprirem as normas relativas à segurança e medicina do trabalho.
Registre-se, também, a orientação nº 07 da Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho do Ministério Público do Trabalho (CODEMAT), cuja referência serve como embasamento para o ajuizamento de Ações Civis Públicas que dizem respeito ao meio ambiente laboral (inclusive dos estatutários), transcreve-se abaixo:
7) ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.ATUAÇÃO NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. O Ministério Público do Trabalho possui legitimidade para exigir o cumprimento, pela Administração Pública direta e indireta, das normas laborais relativas à higiene, segurança e saúde, inclusive quando previstas nas normas regulamentadores do Ministério Público do Trabalho e Emprego, por se tratarem de direitos sociais dos servidores, ainda que exclusivamente estatutários”. (Redação alterada na 6ª reunião Nacional dos Membros da CODEMAT, ocorrida em agosto de 2008).
Importante posicionamento da Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público do Trabalho merece menção neste momento. Após analisar relatório de arquivamento feito pela Procuradora do Trabalho da 18ª Região, Maria das Graças Prado Fleury, em denúncia cujo objeto envolvia o descumprimento de normas relativas ao meio ambiente de trabalho pela Fundação Nacional de Saúde – FUNASA, Fundação Pública instituída pela União, assim ficou assentado:
MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. REGIME ESTATUTÁRIO. Competência da Justiça Laboral para processamento e julgamento de ações que tenham causa de pedir relacionada ao [des]cumprimento de normas de segurança, higiene e saúde do trabalhador. Conformidade com o disposto na Súmula 736 do Supremo Tribunal Federal. Inexistência de violação ao entendimento firmado nos autos da ADI 3395. Pelo prosseguimento das investigações e pela não homologação da promoção de arquivamento em análise.
Em seu voto, que concluiu pela não homologação do arquivamento, a Procuradora Vera Regina Della Pozza Reis, relatora do feito, afirmou que não havia como concordar com as razões do arquivamento. A uma, a Procuradora oficiante fundamentou o arquivamento do procedimento sob o argumento de que as relações que regem os trabalhadores atingidos pelos fatos veiculados na peça de ingresso seria de índole estatutária, razão pela qual estaria afastada a atuação do Ministério Público do Trabalho, em conformidade com a decisão emanada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI nº 3395. Ao discordar com a fundamentação do arquivamento, a Relatora assim proferiu seu edificante voto:
De fato, a Suprema Corte Brasileira decidiu nos autos da ADI nº 3395, em interpretação conforme a Constituição Federal de 1988, que as relações de natureza estatutária estariam excluídas da competência material ínsita à Justiça do Trabalho.
Todavia, tal decisão deve ser interpretada em harmonia com o disposto na Súmula 736 também do E. Supremo Tribunal Federal […]
Ora, ao decidir que não compete à Justiça do Trabalho o julgamento de ações envolvendo trabalhadores sob o regime jurídico-administrativo, buscou o Supremo Tribunal Federal afastar da Justiça Laboral a análise de processos em que debatidos conflitos funcionais, derivados da prestação de trabalho em regime estatutário, ente a Administração Pública e seus servidores, regidos por estatuto específico.
Desta forma, seu entendimento foi de que, por ser a matéria de meio ambiente de trabalho, direito de natureza difusa, portanto indeterminada e indivisível, nada foi alterado pelo advento do julgado proferido nos autos da ADI nº 3395. Dessa forma, em conformidade com o disposto na Súmula 736 do Supremo Tribunal Federal, permanece na Justiça do Trabalho a competência para julgamento de ações em que sejam discutidas questões sobre o descumprimento de normas de segurança, de saúde e de higiene do trabalho.
Frise-se, ademais, que não se pode suscitar o entendimento esposado no julgamento da ADI 3395/DF como se houvesse um conflito entre tal entendimento e a determinação da Súmula 736. Isto porque a competência anunciada pela referida Súmula diz respeito à matéria – causa de pedir e pedido postos em juízo, enquanto que o assentado na ADI diz respeito à pessoa do servidor público, estrito senso, e sua relação jurídico-administrativa com o Ente a qual serve. A seguir, analisaremos com maior profundidade o disposto na decisão da ADI 3395/DF.
2.3. ANÁLISE DAS DECISÕES DO STF NA ADI 3395/DF E NA RECLAMAÇÃO Nº 3303/PI
Não se pode olvidar que a jurisprudência consolidada pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal fixa a competência da Justiça Comum, estadual ou federal, para dirimir conflitos entre entidades da Administração Pública, direta e indireta, e os servidores a ela vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo.
Nesse sentido, o Plenário da Suprema Corte, por maioria, referendou cautelar deferida pelo Exmo. Ministro Nelson Jobin nos autos da ADI 3395/DF, nos seguintes termos:
INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Competência. Justiça do Trabalho. Incompetência reconhecida. Causas entre o Poder Público e seus servidores estatutários. Ações que não se reputam oriundas de relação de trabalho. Conceito estrito desta relação. Feitos da competência da Justiça Comum. Interpretação do art.114, inc. I, da CF, introduzido pela EC 45/2004. Precedentes. Liminar deferida para excluir outra interpretação. O disposto no art.114, I, da Constituição da República, não abrange as causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação jurídico-estatutária”.[55]
No entanto, ainda que se trate de questão afeta a servidores estatutários, remanesce a legitimidade do parquet trabalhista para atuar na defesa do meio ambiente de trabalho. Aliás, este foi o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Reclamação nº 3303/PI. Vejamos:
CONSTITUCIONAL. RECLAMAÇÃO. ADI 3.395-MC. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROPOSTA NA JUSTIÇA DO TRABALHO, PARA IMPOR AO PODER PÚBLICO PIAUIENSE A OBSERVÂNCIA DAS NORMAS DE SAÚDE, HIGIENE E SEGURANÇA DO TRABALHO NO ÂMBITO DO INSTITUTO MÉDICO LEGAL. IMPROCEDÊNCIA. 1. Alegação de desrespeito ao decidido na ADI 3.395-MC não verificada, porquanto a ação civil pública em foco tem por objeto exigir o cumprimento, pelo Poder Público piauiense, das normas trabalhistas relativas à higiene, segurança e saúde dos trabalhadores. 2. Reclamação improcedente. Prejudicado o agravo regimental interposto. [56]
No caso concreto que resultou na decisão acima transcrita, o Estado do Piauí ingressou com Reclamação Constitucional sob a alegação de Ação Civil Pública ajuizada pela Procuradoria Regional do Trabalho da 22ª Região que pretendia melhores condições de trabalho para os servidores do Instituto Médico Legal de Teresina ia de encontro com o entendimento proferido pelo mesmo Tribunal Superior quando do julgamento da ADI 3395/DF. Por unanimidade, a Corte Suprema rejeitou tal argumento, decidindo pela improcedência da Reclamação.
Neste aspecto, ao apreciar a referida Reclamação, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os efeitos da decisão proferida na ADI 3395 são inaplicáveis às demandas coletivas destinadas à tutela do meio ambiente de trabalho. Com efeito, a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores, independentemente do regime sob o qual o vínculo se estabelece com o tomador de serviço.
Importa registrar que a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público do Trabalho, em análise de arquivamento (Processo PGT/CCR/PP/N 8738/2014) de procedimento preparatório instaurado contra o Município de Porto Alegre, no qual se noticia a prática de assédio moral no âmbito desta Administração, decidiu que ações que versem sobre meio ambiente de trabalho atraem a atuação do Parquet Laboral, uma vez que devem ser julgadas pela Justiça Especializada do Trabalho.
De acordo com a procuradoria oficiante, Dra. Adriane Perini Artifon, da Procuradoria Regional do Trabalho da 4ª Região, os conflitos entre o Poder Público e seus servidores estatutários estariam excluídos da competência material da Justiça do Trabalho, com base na famigerada decisão proferida pelo STF na ADI 3.395/DF, restando afastada a atribuição do MPT para atuar no caso concreto.
Novamente, tal argumento foi afastado pela Procuradoria-Geral do Trabalho. Neste caso, o relator do feito, o Procurador Fábio Leal Cardoso, afirmou que tal decisão não está em sintonia com as recentes decisões proferidas pelo E. STF sob o objeto em debate. Cita-se suas esclarecedoras palavras:
Nesse sentido, a ADI 3395 afasta da competência da Justiça do Trabalho apenas e tão somente as pretensões deduzidas por servidores públicos estatutários em face do Poder Público, objetivando a satisfação de direitos laborais não adimplidos por seu “empregador” (administração pública).
As referidas decisões do E. STF, definitivamente, não declaram a incompetência material da Justiça do Trabalho para as causas em que o Parquet Laboral, ou qualquer dos colegitimados pela LACP para o exercício da tutela coletiva de interesses metaindividuais, ajuíze ações coletivas para a defesa do meio ambiente laboral de servidores públicos, entendimento que inclusive, foi sumulado no verbete 736 do E. STF.[57]
Portanto, conclui-se que não se sustenta a tese de que a competência da Justiça do Trabalho para apreciar as ações relativas ao meio ambiente laboral dos estatutários afrontaria o entendimento do E. STF emanado na decisão da ADI 3395, isto porque o cumprimento de normas trabalhistas relativas à higiene, segurança e saúde não tem pertinência com o que foi decidido pelo Supremo na ADI 3395.
Desse modo, o próprio Supremo Tribunal Federal afirmou que a ADI 3395 trata da competência material fundada na relação de trabalho, sendo o servidor regido por estatuto próprio e sob um regime jurídico-administrativo, a competência das ações recai para a Justiça Comum – Estadual ou Federal, a depender do órgão ao qual está vinculado. No entanto, a competência que aqui se discute diz respeito às ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas relativas à segurança e saúde do trabalho.
2.4. ANÁLISE DE DECISÃO JURISPRUDENCIAL DESFAVORÁVEL À COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO – 4ª TURMA DO TST
Não obstante as várias decisões da Suprema Corte Brasileira no sentido de atribuir à Justiça do Trabalho a competência para o julgamento de ações relativas ao meio ambiente laboral dos estatutários, o tema não é pacificado nos Tribunais. O julgamento realizado pela 4ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho prova que muitas decisões vão de encontro ao entendimento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal.
No julgamento do Recurso de Revista no processo nº 000993-14.2011.5.22.0004, sob a relatoria do Ministro Eizo Ono, a 4ª Turma alterou a sentença para declarar a incompetência material da Justiça do Trabalho e determinar o envio do processo à Justiça Comum do Piauí.[58]
No caso concreto, a Procuradoria Regional do Trabalho da 22ª Região ajuizou ação contra o Estado do Piauí, por ter verificado o cometimento de graves irregularidades nas condições de trabalho nas unidades do Corpo de Bombeiros. Na unidade de Teresina, capital do Estado, a higienização dos carros de resgate era feito no pátio da corporação, onde os fluentes escorrem sem qualquer proteção à saúde dos servidores. Nas unidades do interior, os alojamentos e o refeitório tinham infiltrações, a fiação elétrica estava exposta, água para consumo humano não era tratada e não havia banheiro.
O Ministério Público do Trabalho, por entender que as condições de trabalho violavam as normas trabalhistas e que o meio ambiente de trabalho era inseguro e insalubre requereu o cumprimento de medidas como a implantação de programas de prevenção de riscos ambientais, o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPIs), a reforma nas unidades e o monitoramento periódico da água.
O processo em primeiro grau foi julgado pela 4ª Vara do Trabalho do Piauí que, com base no julgamento da ADI 3395, o MM. Juiz Substituto Adriano Craveiro Neves, de ofício, declarou a incompetência da Justiça do Trabalho e determinou que os autos fossem remetidos para a Justiça Estadual.
Inconformado com tal decisão o MPT/PI interpôs recurso ordinário destacando que a ação tinha por objeto o cumprimento de normas de saúde, higiene e segurança do trabalho e que, ainda que os beneficiários estivessem submetidos a regime jurídico-administrativo, caberia à Justiça do Trabalho julgá-la.
O Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região deu razão ao MPT/PI e reconheceu a competência da Justiça do Trabalho para julgar a causa, independentemente do vínculo jurídico a que estavam subordinados os trabalhadores. Assim, com base na Súmula 736 do STF, determinou que o Estado do Piauí cumprisse as obrigações pleiteadas na ação civil pública.
No entanto, a 4ª Turma do TST restabeleceu a sentença primária, declarando a incompetência da Justiça do Trabalho para julgar o feito, em manifesta dissonância com a maioria da jurisprudência nacional, bem como com o entendimento da Suprema Corte Brasileira – Súmula 736 e Reclamação 3303/PI.
Em recente julgado do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, sob a relatoria da Desembargadora Camilla G. Pereira Zeidler, a Terceira Turma deste Regional decidiu pela incompetência absoluta da Justiça do Trabalho para julgar ação relativa ao meio ambiente do trabalho de servidores públicos estatutários, com fundamento, também, na decisão da ADI 3.395 pelo STF.[59]
O juízo primário de Unaí-MG havia declarado a incompetência da Justiça do Trabalho para julgar a Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho em face da Fundação Educacional Caio Martins (FUCAM), Pessoa Jurídica de Direito Público, em litisconsórcio passivo com o Estado de Minas Gerais.
O E. Tribunal faz interpretação deveras restritiva do Enunciado nº 736 do STF ao afirmar que “tal verbete deve limitar seu alcance aos empregados públicos, com vínculo celetista, em conformidade com o art. 114, I, da CR/88 bem como com o teor do julgamento da ADIN 3.395”.
Percebe-se que o argumento que norteia a jurisprudência contrária à competência da Justiça do Trabalho é a interpretação equivocada da ADI 3395. Isto porque as normas relativas ao meio ambiente de trabalho vão além do vínculo jurídico, seja celetista ou jurídico-administrativo, visto que são tratados na Constituição Federal como direitos fundamentais do trabalhador e estão intimamente ligadas com a preservação da dignidade do mesmo.
Contudo, importa frisar que a maioria das decisões do Tribunal Superior do Trabalho é no sentido de que cabe à Justiça Especializada do Trabalho a apreciação de ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores.
A título de exemplo, dentre outros, citamos os processos nº 075700-37.2010.5.16.0009 (3ª Turma do TST) e o Processo nº 187000-19.2008.5.01.0000. Neste último, a SDI-2 do TST, em 23/04/2013, sob a relatoria do Ministro Hugo Carlos Scheuermann, firmou o seguinte entendimento:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA MOVIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO CONTRA O MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. TUTELA ANTECIPADA CONCEDIDA ANTES DA SENTENÇA. EXTENSÃO A TODOS OS SERVIDORES, INCLUSIVE OS ESTATUTÁRIOS. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE OU ABUSIVIDADE DO ATO JUDICIAL IMPUGNADO. No presente caso, o ato judicial impugnado é a decisão antecipatória dos efeitos da tutela que, em ação civil pública movida pelo Parquet Trabalhista, deferiu pedidos relativos à adequação do meio ambiente de trabalho em face de ente público para todos os trabalhadores, independentemente do vínculo jurídico laboral, inclusive dos servidores estatutários. Ato judicial que não se mostra ilegal, abusivo ou teratológico, em face do entendimento manifestado pela Suprema Corte na Rcl. 3.303/PI, no sentido de que não há desrespeito ao decidido na ADI 3.395 quando a ação tem por objeto exigir o cumprimento, pelo Poder Público, das normas trabalhistas relativas à higiene, segurança e saúde dos trabalhadores. Aplicação da Súmula 736 do STF, incólume mesmo diante da decisão na ADI 3.395. Precedente desta Corte. Aplicação analógica da Orientação Jurisprudencial nº 142 desta C. Subseção Especializada II.[60]
Destacamos, ainda, os argumentos expostos na decisão do Agravo de Instrumento em Recurso de Revista julgado pela 1ª Turma do TST em 12/08/2015, sobre a unidade do meio ambiente de trabalho, o que caracteriza sua natureza jurídica de direito difuso. Transcreve-se excertos da contundente decisão:
1. Trata-se de ação civil pública pela qual se busca “a interdição do edifício sede da Procuradoria Geral do Estado”, no qual laboram, além de servidores estatutários, dezenas de trabalhadores terceirizados, regidos pela CLT, os quais também se encontram diuturnamente expostos aos graves e iminentes riscos verificados nas dependências daquela edificação”. A demanda “visa a preservação da saúde e a segurança da coletividade dos trabalhadores que prestam serviço na edificação, sejam eles inseridos numa relação contratual trabalhista ou estatutária, bem como toda a sociedade que transita por aquele ambiente”. Diante do quadro, o e. TRT concluiu que “A natureza do vínculo existente entre as partes, se estatutária ou coletiva, não tem o condão de afastar a competência da Justiça do Trabalho, na medida em que a preservação do meio ambiente de trabalho afigura-se como um direito social (art. 7º, XXII, da Constituição Federal), e nessa condição, direito de todo e qualquer trabalhador”. Acrescentou que “o ambiente laboral em causa põe em risco não apenas os ocupantes de cargos públicos, mas todos os trabalhadores que ali prestam serviços – aí incluídos os terceirizados, cuja relação é estritamente celetista. Isto já seria suficiente para atrair a competência da Justiça do Trabalho”.
2. Não há justificativa jurídica ou faticamente plausível para cindir o meio ambiente em setores – celetista ou estatutário. O ambiente de trabalho é um só e as diretrizes elementares e imperativas de segurança, saúde e higiene do trabalho aplicam-se a todos aqueles que laboram no recinto público, não guardando relevância a qualificação do vínculo jurídico que possuam com o ente público tomador dos serviços. O que se tutela na presente demanda é a higidez do local de trabalho e não o indivíduo trabalhador em si – e esta é a razão pela qual a qualificação ao vínculo jurídico que ostenta é irrelevante.
3. Dessarte, não há como conferir outra solução à lide, que não a de considerar a Justiça do Trabalho competente para as ações alusivas ao meio ambiente do trabalho. Inteligência da Súmula 736 do STF. Precedentes. Intacto o art. 114, I, da Constituição Federal. (grifo nosso)[61]
Assim, da análise de algumas decisões desfavoráveis à competência da Justiça do Trabalho para julgar as ações relativas ao meio ambiente laboral dos estatutários, percebe-se que os julgadores recorrem ao argumento da decisão do Supremo na ADI 3395, quando, em bem da verdade, o próprio STF, em sede de Reclamação, decidiu que quando a Ação tiver como causa de pedir o descumprimento de normas sobre segurança, higiene e saúde dos trabalhadores, a competência material cabe à referida Justiça Especializada, como declaram a maioria dos julgados com fundamentos em sintonia com o Enunciado 736 do STF e a Constituição Federal.
2.5. DA SUJEIÇÃO DO ESTADO ÀS NORMAS REGULAMENTARES EXPEDIDAS PELO MINISTÉRIO DE TRABALHO E EMPREGO
Conforme exposto no primeiro capítulo deste trabalho, o meio ambiente pode ser entendido sob dois prismas de proteção: mediata (art. 225, caput, CRFB) e imediata (art. 200, VIII, CRFB).
As Normas Regulamentares (NR’s) são instrumentos normativos que atuam na proteção do meio ambiente de trabalho, colaborando, assim, para a concretização do Direito Fundamental a um meio ambiente laboral equilibrado. Ademais, servem como base para o ajuizamento de diversas Ações Civis Públicas pelo Ministério Público do Trabalho, as quais têm como objeto a obrigação de cumprir as determinações emanadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego por meio das NR’s.
A Constituição Federal não faz distinção dos trabalhadores entre servidores e celetistas, assim as normas protetivas do meio ambiente de trabalho, inclusive as Normas Regulamentares do MTE, incidem também nas relações entre a Administração Pública e seus servidores, não obstante a natureza jurídico-administrativa.
Um bom exemplo desta aplicabilidade ocorre nos pedidos de enquadramento dos adicionais de insalubridade e de periculosidade, nós termos da NR 15 e NR 16, respectivamente.
Defende-se que tendo em norma estatutária previsão específica de proteção laboral para o servidor público, esta deverá ser aplicada com as NR’s do MTE. Contudo, infelizmente, os servidores públicos sofrem com a escassez normativa em relação à proteção do meio ambiente de trabalho. Com efeito, as Normas Regulamentares têm importante papel normativo.
Portanto, as Normas Regulamentares (NR’s) expedidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que versam acerca de medidas complementares no campo da prevenção de doenças e acidentes do trabalho, ou seja, que tratem acerca de normas de meio ambiente de trabalho, cumprem expressa delegação normativa estampada em nossa Carta Magna em seus artigos 7º, inciso XXII e 39, §3º, CRFB, bem como em Lei Federal (art. 200, I, da CLT) e devem ser aplicadas aos servidores públicos, no que couber.
O arcabouço de normas constitucionais e infraconstitucionais, bem como de entendimentos jurisprudenciais, norteiam a atuação do Ministério Público e embasam as Ações Civis Públicas eventualmente ajuizadas tendo como causa de pedir o descumprimento de normas relativas ao meio ambiente laboral.