A origem do Tribunal de Contas

Uma análise sobre sua criação e o Estado Democrático de Direito

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11/11/2016 às 17:33
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Análise e explanação do surgimento da ideia de controle no Brasil, suas varias definições, além de notas sobre o Erário Régio e sobre a criação do Conselho da Fazenda, que tinham como atribuição principal acompanhar a execução da despesa pública.

O surgimento da ideia de controle no Brasil remonta ao período colonial. Em meados de 1680, foram criadas as Juntas das Fazendas das Capitanias e a Junta da Fazenda do Rio de Janeiro, ambas jurisdicionadas à Corte de Portugal.

Em 1808, na administração de D. João VI, foi instalado o Erário Régio e criado o Conselho da Fazenda, que tinha como atribuição principal acompanhar a execução da despesa pública.

Com a proclamação da independência do Brasil, em 1822, o Erário Régio foi transformado no Thesouro Nacional pela Constituição monárquica de 1824, prevendo-se, então, a possibilidade de registro e cobranças dos primeiros orçamentos e balanços gerais.


1.1. As Ideias de Locke e Montesquieu

LOCKE dizia que o homem ao entrar na sociedade tinha como maior objetivo o gozo da propriedade com paz e segurança. Responsável por elaborar as leis, o legislativo seria o encarregado a produzir normas que trouxessem essa tranqüilidade. Como assevera o jurista ROBERTO VICTOR RIBEIRO: “Locke também pode ser alçado à categoria dos grandes idealizadores do “Contrato Social”[1].

E complementa com esteira no pensamento de LOCKE:

Em síntese, podemos dizer que norma só possuirá juridicidade e efetividade se estiver arraigada na ordem da sociedade política, permitindo, assim, que o Estado exerça o papel de fator de unidade normativa dentro da sociedade. A sociedade colabora e o Estado executa. Na balança da vida, há de um lado o pluralismo de ordenações jurídicas e, de outro, a unidade da ordem normativa[2].

O povo sendo o titular do poder de legislar, por sua vontade delega esse poder ao legislativo, que está impedido de delegar a outros[3]. As leis devem ser gestadas dentro da capacidade e da discricionariedade de cada ente estatal, respeitada, em regra, a primazia do Poder Legislativo.

Também pertence a LOCKE a ideia de que o Poder Legislativo não poderia exercer o poder de forma arbitrária, pois seria um caso em que a sociedade estaria sendo representada por seus pares, e desta forma, os cidadãos não poderiam transferir seu poder de forma que os prejudicassem. Por observar o abuso que advinha do acumulo de poder nas mãos de um só detentor e toda a fragilidade que gerava na sociedade, começou-se a perceber que não poderia ser concentrado nas mãos de um só homem o poder de legislar e o poder de executar as leis, pois isso poderia insurgir em normas abusivas, as quais a qualquer momento poderiam ser adequadas à vontade de quem detinha o poder[4]. Infelizmente, como explica ROBERTO VICTOR RIBEIRO “essa hecatombe jurídica ocorre até os dias hodiernos, quando os chefes do Poder Executivo nomeiam representantes de poderes autônomos ou correlatos para liberalizar aquilo que querem e não podem fazer à luz do dia, sob o juízo do astro-rei”[5].

Em referência ao Poder Legislativo:

Esse poder legislativo não é somente o poder supremo da comunidade, mas sagrado e inalterável nas mãos em que a comunidade uma vez o colocou; nem pode qualquer edito de quem quer que seja, concebido por qualquer maneira ou apoiado por qualquer poder que seja, ter força e a obrigação da lei se não tiver sanção do legislativo escolhido e nomeado pelo público; porque sem isto a lei não teria o que é absolutamente necessário à sua natureza de lei; o consentimento da sociedade sobre a qual ninguém tem poder de fazer leis senão por seu próprio consentimento e pela autoridade dela recebida[6].

MONTESQUIEU assegurou que o homem ao deter poder estaria condicionado a abusar dele, e iria fazê-lo ate onde houvesse limites. Somente o poder pode frear o poder[7], assim, ha a necessidade de que o poder seja contido de alguma forma.

A classificação dos poderes do Estado segundo Montesquieu é composta da seguinte forma: o poder legislativo seria representado pelos nobres e representantes do povo; o poder Executivo do Estado era exercido pelo Monarca ou Rei, e o poder de julgar, por Tribunais temporários do povo.

MONTESQUIEU expunha a possibilidade de um poder vir a evitar ou punir o abuso de outro, desta forma mantinha uma equiparação nas possibilidades de regulação, nenhum dos poderes detinha autonomia sobre os demais, formando assim, um círculo, onde o próximo poder estava em condições de frear os abusos, ou ter seus próprios abusos contidos.

Falava-se em liberdades individuas, quando se poderia fazer algo desde que não fosse proibido. Neste período ferviam os objetivos de compartilhar sobre o poder social, quando nas praças públicas os cidadãos deliberavam livremente sobre os negócios da cidade, esse poder social entre as pessoas, de manifestarem-se de forma cívica, operava-se na esfera pública. Eram formas de liberdade sem o objetivo de participar diretamente do governo, mas que lhes garantissem direitos, buscavam com isso poder representar suas vontades, poder trabalhar em suas propriedades; clamavam apenas por uma liberdade que lhes permitissem usufruir da propriedade sem que fossem expurgados.

Na Grécia antiga, mais precisamente na Ágora ateniense, nasceu o conceito de isegora:

Com o advento da democracia surgiu a isegoria, direito de todo cidadão expressar livremente o seu pensamento e expor suas queixas em público. Por sinal, a liberdade de expressão era chamada de Eleutheros stomos, duas palavras de raízes gregas que em nosso vernáculo são: livre e boca[8].

MONTESQUIEU deu a separação dos poderes o alicerce necessário, suas ideias de liberdade política, como sendo aquela prescrita em lei e capaz de garantir aos cidadãos a capacidade de fazer o que não tivesse proibição, aliada a garantia do gozo dos direitos de propriedade, estaria satisfeita em vista da necessidade desenfreada do homem de possuir tudo ao seu alcance quando dispunha de poder, determinando com isso que somente o poder possua força para frear o poder.

A separação traz consigo como cerne a prerrogativa funcional, ou caráter principal de cada poder, para estabelecer os poderes diferenciados e, com isso, criar a funcionalidade diferenciada a cada um deles, surgindo assim os instrumentos necessários para que cada poder disponha de características funcionais para a efetividade na função.

NORBERTO BOBBIO[9] ensina que:

O governo moderado de Montesquieu deriva, contudo, da disposição do poder soberano e da sua participação com base nas três funções fundamentais do Estado – a legislativa, a executiva e a judiciária.

SERGIO RESENDE DE BARROS[10] assevera:

Em sua origem histórica, um tal princípio de separação teve finalidade eminentemente política: pôs termo a concentração absoluta de poderes nas mãos do rei. O poder foi dividido em partes para subtrair ao rei a menor parte do seu poder, restando-lhe um poder executivo que depois foi diminuído ainda mais e, enfim, zerado pelo regime parlamentarista. Esse fim – o de anular o poder do rei – não estava previsto na proposta de Montesquieu. Apenas, o de controlar. O que – paradoxalmente – veio a ser mais necessário no presidencialismo em que o rei foi superado por um presidente que, apesar de ser republicano, tende a ser plenipotenciário por acumular a chefia do Estado com a do Governo.


1.2. O Estado Democrático de Direito e a Separação dos Poderes

O vocábulo Estado de Direito e todo o doutrinamento que dele se ramificou tem seu surgimento remetido ao estado Alemão, diz MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO[11]. Aperfeiçoado com o passar dos anos, a terminologia chega aos tempos modernos caracterizada com o acréscimo do termo Democrático, configurando o apogeu das civilizações modernas.

A concepção de que o homem é um ser livre, formulada no preceder dos campos de batalhas, deu a esses homens a esperança, e com isso, surgiram às ideias de liberdade das revoluções Americana e Francesa, pois somente a busca de uma razão de ser, faria com que o homem pensasse em liberdade. Através do pensamento de liberdade que permeou gerações, excedeu campos, fronteiras terrestres e marítimas, é que se firmou a ideia de que o homem é um ser livre.

Tal lição foi enunciada por um sem-número de pensadores, desde o século XVII pelo menos, como Hobbes e, sobretudo, Locke, e repetida por todo o século XVIII, inclusive no celebrado Contract social de Rousseau. Para todos eles, feita abstração das instituições existentes, abstração que é o cerne da hipótese chamada de ‘estado de natureza’, o homem é livre. É ademais, bom para uns, mau para outros, mas para todos, sem exceção, é livre. E livre por natureza. O que quer dizer que, de acordo com as leis, a liberdade é inerente à natureza humana[12].

ROBERTO VICTOR RIBEIRO comenta que:

Sem dúvidas o que o douto suíço [Rousseau] quis exclamar foi que é dado ao homem uma espécie de liberdade assistida, ou melhor, uma semi-liberdade. O homem é livre, mas é preso pelas convenções, pelas regras e normas, pelo convívio cultural entre sociedade etc., fazendo com que, dessa forma, a liberdade que lhe é devida por natureza, não seja uma liberdade integral ou pura, e sim uma condição livre até certo modo, e esse certo modo pode vir de vários aspectos[13].

E acrescenta: “Não se deve confundir, entretanto, liberdade com licenciosidade ou libertinagem”[14].

Com isso, pode-se extrair a concepção de que é impossível se imaginar uma liberdade absoluta, uma vez que a vida em sociedade exprime que as liberdades individuais terminam quando logo iniciam as liberdades coletivas.

Como em tese todo homem é livre, e necessariamente todos os homens são iguais, torna-se claro que em estado natural existia uma liberdade absoluta. Mas quando começaram as formações coletivas, passou a surgir à necessidade de impor uma limitação à liberdade individual frente à liberdade coletiva. Foi então que o homem se deparou com a necessidade de regular o seu convívio social. Possuidor de direitos intangíveis, inalienáveis, imprescritíveis, não abriu mão de forma alguma de sua liberdade, assim, como contingência, submeteu-se ao poder social.

Neste sentido, reforça a ilustre doutrinadora MARIA HELENA DINIZ.

Os etnólogos demonstram-nos que qualquer grupo social, por mais rudimentar que seja seu estágio de desenvolvimento, possui, para regulamentar sua vida grupal, um conjunto de normas que rege o comportamento de seus membros, estabelecendo as bases de coexistência entre indivíduos[15].

Foi então que surgiu o Estado de Direito, objetivado para regular a relação do homem em sociedade, promissor por anos, fundado na Teoria Pura do Direito, em que não há Estado Legal injusto na medida em que o Estado só estabelece o que é justo[16].

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Já no Estado Democrático, a terminologia exprime acepções onde se evocam a participação dos cidadãos, a existência de leis e o Estado como garantidor da liberdade. Ao falar-se em Estado Democrático, deve-se ter a mente um conglomerado de participantes, onde cada um afirma seus diretos, diferente de Estado de Direito, quando apenas se deve ler a submissão às leis. No Estado Democrático de Direito, é bom que se afirme que ninguém, nem mesmo o soberano está acima das leis. A lei é a majestade.

DAL POZZO[17] ensina:

Verifica-se com Canotilho, que Estado Democrático de Direito, acolhido pelo artigo 1º da Constituição da Federal de 1988, prevê certos princípios, dentre os quais o princípio da separação dos poderes, citado na Declaração de 1789, art. 16: Toda sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos nem determinada à separação de poderes, não tem Constituição.

De forma clara e precisa a Constituição Federal 1988 consagrou em seu Art. 1º a República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito, e no art. 2º trouxe a separação dos poderes da seguinte forma: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”[18].

Em interessante obra de PEDRO LENZA[19], o nobre doutrinador enseja:

As primeiras bases teóricas para a “tripartição dos Poderes” foram lançadas na antigüidade grega por Aristóteles, em sua obra Política, através da qual o pensador vislumbrava a existência de três funções distintas exercidas pelo poder soberano, quais seja, a função de editar normas gerais a serem observadas por todos, a de aplicar as referidas normas ao caso concreto (administrando) e a função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos da execução das normas gerias nos casos concretos.

Por muitos tendo sido apontado com o pai da “Tripartição dos Poderes”, Aristóteles, vislumbrou a tripartição, mas a concebia em uma só pessoa ou órgão.

O objetivo idealizador da teoria de Montesquieu é a manutenção do Governo através do equilíbrio e harmonia, não concedendo em demasia poder a nenhuma das esferas governamentais, mantendo-se o controle, ou fugindo a regra, poderia estar se criando uma ditadura.

Torna-se perceptível nos organismos estatais atualmente existentes a “Tripartição dos Poderes” idealizada por Montesquieu. Há, portanto, o Poder Executivo, que constitui o Governo de fato; o Poder Legislativo, composto pelo sistema bicameral (Câmara de Deputados e Senado Federal), e ainda, o Poder Judiciário. São tais poderes independentes; pois não se submetem entre si, não se curvam à vontade um do outro; e são harmônicos, pois tem de verificar as “normas de cortesia e trato recíproco”[20]. Observa-se que todos esses poderes têm suas funções que lhe são típicas, e as funções atípicas, a fim de que seja objetivada a interdependência de um em relação aos outros.

Além de exercerem a função que lhe é precípua, como, resumidamente, ao Executivo cabe governar; ao Legislativo cabe legislar e ao Judiciário cabe julgar, exercem eles também funções atípicas, que correspondem à execução de funções inerentes à sua organização interna; como por exemplo, o Poder Legislativo tem a função principal de elaborar o regramento jurídico do Estado – é sua função típica – mas também é sua função administrar seus órgãos, momento em que exerce uma atividade típica do Executivo, podendo, ainda julgar seus membros, como é o caso do sistema brasileiro, assim como a edição de medidas provisórias pelo Presidente da República é uma função atípica do Poder Executivo.


1.3. Decreto Nº 966-A de 1890 Cria Formalmente a Instituição Tribunal de Contas

Nesse contexto, sempre existiu a necessidade de que as contas públicas fossem analisadas, que as finanças públicas fossem controladas, e sempre existiram órgãos no Brasil incumbidos dessa tarefa. Quando ainda colônia de Portugal, as contas no Brasil eram fiscalizadas conforme a legislação lusitana e as práticas adotadas assemelhavam-se com as aplicadas em Portugal[21].

Após a independência, a Constituição Política do Império do Brasil de 1824, previu um tribunal, nomeado de “Thesouro Nacional”, que tinha como função precípua fiscalizar, arrecadar e contabilizar receita e despesas da Fazenda Nacional.

COTIA E SILVA observa que:

Apesar do exame previsto na Carta não se revestir do caráter de julgamento da gestão, prestando-se somente a oferecer um quadro comparativo da receita e das despesas, a instituição daquele tribunal viria a ser, de fato, uma espécie de ponto de partida para a criação do Tribunal de Contas[22].

Somente após a Proclamação da República é que realmente nasceu uma Corte de Contas nos moldes das que hoje possuímos, e que é sinônimo de compromisso social. Surgido através do Decreto n. 966-A, de 7 de novembro de 1890, instituído pelo Marechal Deodoro da Fonseca, a época Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil, constituído pelo Exército e Armada, com empreendimentos de Rui Barbosa, Ministro Fazendário, vigorando como órgão Constitucional, previsto pela Constituição de 1891. Destarte, formalizou-se a criação do Tribunal de Contas.

Consta na exposição de Motivos, com assinatura de RUI BARBOSA que:

A medida que vem propor-vos é a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediária à administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil (...) Não basta julgar a administração, denunciar o excesso cometido, colher a exorbitância ou prevaricação, para as punir.

Circunscrita a esses limites, essa função tutelar dos dinheiros públicos Serpa muitas vezes inútil, por omissa, tardia ou impotente. Convém levantar, entre o poder que a autoriza periodicamente a despesa e o poder que quotidianamente a executa, um mediador independente, auxiliar de um outro, que, comunicando com a legislatura e intervindo na administração, seja não só o vigia como a mão forte da primeira sobre a segunda, obstando a perpetuação das infrações orçamentárias por um veto oportuno aos atos do Executivo, que, direta ou indiretamente, próxima ou remotamente, discrepem da linha rigorosa das leis de finanças[23].

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Sobre o autor
Lucas Riedel

Graduando em Direito pela Faculdade Farias Brito - FFB, concludente de MBA em Gestão Comercial Empreendedora e entusiasta das áreas de Direito Administrativo e Ambiental.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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