1.INTRODUÇÃO
É inegável o fato de que a internet e seus ciberespaços ampliaram o campo da comunicação e a velocidade das trocas de informações. “O ciberespaço é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores [...] o termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo”. (LEVY, 2000, p.17). Assim, a presente análise tem como contexto o recrudescimento das inter-relações ocorridas no ciberespaço e suas implicações jurídicas e sociais, tendo como um recorte mais estrito às relações de gênero e sexualidade e à ocorrência do fenômeno da porn revenge ou pornografia de vingança, tendo como pano de fundo as relações sociais que possibilitam a ampliação de tal fenômeno.
Neste contexto, as redes sociais e os aplicativos de compartilhamento de mensagens têm se tornado um terreno bastante fértil para a propagação de crimes virtuais, ou seja, ilícitos praticados por meio da Internet, causadores de danos do tipo material ou moral. Em razão do anonimato que a rede proporciona e coligado à falta de legislação pertinente ao assunto, esse delito tem aumentado consideravelmente no mundo e, assim, as discussões acerca da tipificação de delitos cibernéticos mostram-se urgentes. Dentre as mais destacadas ideias no cenário mundial sobre o tema, há o debate sobre a Seção 230 do Communications Decency Act, que garante imunidade aos intermediários na internet, desonerando-os do conteúdo exposto na rede. Ainda na esfera jurídica, outro ato regulatório de relevância para as discussões sobre porn revenge é o Digital Millenium Copyright Act (DMCA), o qual é utilizado como fundamento para sugestões para a criação de um mecanismo de proteção de vítimas de pornografia de vingança, a despeito do ato legal tratar de previsões específicas quanto à proteção de direitos autorais online.
No Brasil, as discussões ainda são incipientes, sendo que o início da preocupação com os crimes virtuais se deu apenas na última década, com o aumento e a popularização da Internet, impondo a necessidade de assegurar os direitos das vítimas de crimes cibernéticos. No contexto nacional, o diploma de maior relevo sobre o tema é a Lei nº 12.737/2012, conhecida popularmente como Lei Carolina Dieckmann, a qual tipifica alguns delitos no ambiente cibernético, tais como produção e disseminação de códigos maliciosos e a clonagem de cartões, trazendo alterações ao Código Penal brasileiro, ao definir certas condutas como crimes eletrônicos. A penalidade básica dos crimes prevê detenção de três meses a um ano e multa. Alguns crimes não se enquadram especificamente nesta lei por já estarem previstos na Constituição Federal, como, por exemplo, crimes de danos morais, falsa identidade, entre outros.
Nesta conjuntura, os materiais de teor sexual são responsáveis por uma grande parte do conteúdo disponibilizado na World Wide Web, tanto na Surface Web quanto na Deep Web, e a propagação de tais conteúdos, inevitavelmente, leva-nos às discussões sobre sexualidade, gênero e sua exploração pelo mundo virtual, bem como sobre a implicação da oferta livre de pornografia sobre a percepção da população brasileira quanto à temática da sexualidade, descortinando as relações de poder que permeiam tal campo, visto que, em um país marcado por contrastes, a abordagem da pornografia de vingança sinaliza o pano de fundo do nosso constructo sócio histórico.
A difusão desse tipo de material envolvendo pornografia de vingança tem sido frequente entre todas as faixas etárias. Contudo, percebe-se que, frente à construção das relações de gênero e os papéis tipicamente resguardados a cada gênero em nossa sociedade, meninas e mulheres têm se tornado as principais vítimas em situações de exposição da intimidade sexual. Uma vez que tal material é disponibilizado e difundido na rede, as consequências para as vítimas podem culminar em situações drásticas, como o emblemático suicídio da jovem piauiense Júlia Rebeca, frente ao ideário de que o sexo é algo degradante para a imagem, honra e reputação feminina, ao mesmo tempo em que glorifica e exalta o sexo quando este trata da reputação masculina.
2. A TIPIFICAÇÃO DOS CRIMES VIRTUAIS NO BRASIL
Há uma interessante história sobre a discussão de furtos de bens intangíveis, como a energia elétrica, na Alemanha. Diz-se que, ao final do século XIX, um cidadão alemão foi preso acusado de furto de energia elétrica. Contudo, os advogados do acusado observaram a inexistência, na legislação penal alemã, da tipificação de tal delito, pois a energia elétrica não tinha status de “coisa”, e somente coisa poderia ser passível de furto. Por fim, o tribunal absolveu o réu, tendo em vista que a lei penal não permite interpretação analógica. Após o emblemático caso, os legisladores alemães providenciaram um dispositivo legal para coibir o furto de energia elétrica. Tal caso elucida o fato das novas tecnologias surgem acompanhadas de novas demandas jurídicas, pois os avanços tecnológicos levam a novas conjunturas e, consequentemente, exigem a movimentação do aparato legislativo e jurídico de forma a coibir abusos.
Nesta linha, observa-se o recrudescimento dos debates envolvendo a produção legislativa reguladora das interações no mundo virtual, surgindo a necessidade de delimitar quais condutas devem ser coibidas no contexto da rede.
De início, há de ressaltar a relevância do Marco Civil da Internet, aprovado em 2014, foi uma iniciativa de grande destaque no país no âmbito da regulação das relações em rede, bem como em relação a distribuição da responsabilidade em caso de cometimento de ilícitos, terreno pouco explorado até então. Contudo, a despeito dos avanços alavancados pelo Marco Civil da Internet, o debate sobre a propagação não consensual de mídia íntima ainda é bastante incipiente em nosso país, apesar dos incontáveis casos ocorridos todos os anos e de suas drásticas consequências para a vida e intimidade de suas vítimas.
No ordenamento brasileiro, a proteção da privacidade encontra-se albergada por diversos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais. A Constituição, por exemplo, prevê, no inciso X, do artigo 5º que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Por sua vez, no âmbito do Código Civil, o artigo 12 dispõe que, em caso de ameaça ou lesão a direito da personalidade, o indivíduo afetado poderá exigir a cessação do ilícito, assim como reclamar perdas e danos. Tal dispositivo abriga tanto o caráter inibitório quanto reparatório.
Não obstante representar um ponto positivo para a vítima de pornografia de vingança, a tutela inibitória não constitui reparação suficientemente significativa frente a capacidade exposição das redes. A própria natureza do ambiente virtual possibilita a rápida replicação dos conteúdos disponibilizados, dificultando ou, por vezes, inviabilizando a não circulação do conteúdo ofensivo. Assim, como medida para evitar que o tempo de exposição do material na internet se prolongue, busca-se a celeridade no processo de retirada do conteúdo, de maneira que ao menos seja mitigada sua replicação. Com tal intento, o artigo 21 do Marco Civil da Internet determina que a própria vítima poderá notificar o provedor de aplicações e este ficará então obrigado a remover o material indicado o mais rapidamente, dentro de sua capacidade operacional para tal, sem que seja necessária a atuação do Poder Judiciário.
A previsão de retirada do conteúdo ofensivo sem a interferência do Poder Judiciário marca um avanço no que concerne a proteção às vítimas de porn revenge. Neste contexto, o Marco Civil prevê, ainda, a aplicação de responsabilização subsidiária pelo prejuízo, caso o provedor não cumpra a aplicação apresentada pelo sujeito vitimado. Tal responsabilização visa promover uma conduta diligente por parte dos provedores no que concerne ao atendimento das demandas de vítimas de exposições não autorizadas.
Apesar da previsão de responsabilização dos provedores em caso de inércia frente requerimento de sujeitos expostos indevidamente na rede, a regra para a imputação do dever de indenizar é a responsabilidade subjetiva, ou seja, o indivíduo que ato ilícito, gerando dano a outrem, estabelecido por um nexo de causalidade, deverá reparar o indivíduo pelo dano suportado. Para tanto, há de se configurar o nexo de causalidade entre a conduta antijurídica e o dano apurado
Por fim, cabe elucidar que, infelizmente, não existe no ordenamento jurídico pátrio a tipificação da prática da pornografia de vingança. Aqueles que desejarem buscar reparação pelas vias judicias podem alegar serem vítimas de crime contra a honra, conforme os artigos 138 a 145 do Código Penal.
3.RELAÇÕES DE GÊNERO – POR QUE A MAIORIA DAS VÍTIMAS DE PORN REVENGE SÃO MULHERES?
As violências de gênero na internet estão intimamente ligadas ao mundo real. Dessa forma, todas as relações sociais e morais constantes em uma, serão reproduzidas na outra. E, quando se fala em relações sociais e morais, estão aí inclusas as machistas e patriarcais, como o desrespeito às decisões das mulheres e a expectativa moral arcaica de um “comportamento feminino adequado”.
Dessa forma, o espaço virtual não somente reproduz as discriminações construídas socialmente, como também – no caso da pornografia de vingança – acaba por ser mais um componente para reforçar a violência de gênero.
Assim, a superioridade do masculino sobre o feminino é reafirmada também na internet. Segundo a antropóloga Maria Luiza Heilborn, em palestra dada na I Seminário Internacional Cultura da Violência Contra as Mulheres, “a necessidade de exercer esse controle moral e sexual sobre a vida da mulher e da menina é o que leva o jovem a divulgar fotos íntimas da ex-companheira ou colega, ou difamá-la nas redes sociais, porque ela quis terminar o relacionamento ou não quis iniciar um.”
Além do mais, a própria forma como a sexualidade da mulher é pensada ecoa também no ciberespaço. A sociedade ainda renega a sexualidade da mulher ao plano do privado, do escondido. Logo, quando ela tem exposta sua intimidade, principalmente seu momento sexual, exposto na internet, a condenação moral por ela sofrida e a sua culpabilização, mesmo sendo vítima, também irá adentrar o espaço virtual, visto que cabia a ela evitar o ocorrido, cabia a ela “se preservar” e “preservar sua intimidade”.
Portanto, toda a estrutura patriarcal machista e misógina arraigada na sociedade é também reproduzida no espaço cibernético e a mulher acaba por ser a maior vítima dessa cultura também nesse espaço.
4.A PORNOGRAFIA DE VINGANÇA E SUAS PROBLEMÁTICAS
BAMBAUER (2014, p. 2026) define pornografia de vingança como “[…] a prática de divulgar imagens e vídeos retratando nudez ou de conteúdo sexualmente explícito, frequentemente acompanhados de informações pessoais identificadoras de antigos parceiros românticos sem o consentimento deles” (Tradução nossa).
Como o próprio nome pressupõe, trata-se de meio de vingança, intencional e que objetiva causar danos morais e psicológicos à parte lesada. A divulgação desse material busca envergonhar, humilhar e causar pânico à vítima dele.
Assim, a disponibilidade desses conteúdos online afeta a vida social da vítima, prejudicando seus relacionamentos com familiares e amigos que não aprovem seu comportamento sexual, ou até mesmo a culpem por ter sido exposta na internet, como já dito.
A distribuição na internet desse conteúdo com claro objetivo de causar danos às mulheres demonstra a evidente violação da autonomia individual com a exposição não autorizada de conteúdo íntimo da pessoa na rede, tornando-o disponível para qualquer um com acesso à internet.
Apesar de a solução mais indicada para evitar que tal compartilhamento ocorra seja a abstenção da prática, não se pode negar a existência tanto da produção do material íntimo quanto da pornografia de vingança tampouco restringir o espectro de soluções à ideia da abstinência.
Faz-se necessário o desenvolvimento de mecanismos de proteção, a fim de que as pessoas que desejem produzir e trocar imagens e vídeos íntimos não estejam tão vulneráveis ao arbítrio do destinatário da mídia, ante os danos reais que podem ser causados na vida social e profissional da pessoa com a disponibilização involuntária desses conteúdos.
5. A PROTEÇÃO DA PRIVACIDADE ONLINE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A regulação das relações no ciberespaço é matéria relativamente recente no Brasil. Em 2012 houve a aprovação da Lei 12.737, mais conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, originada do Projeto de Lei 2.793/2011.
A aprovação do projeto de lei foi impulsionada com a publicação na internet de fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann, que teve a sua conta de e-mail hackeada. Assim, os invasores tiveram acesso a seus dados. As imagens foram publicadas em sites de pornografia, após recusa da atriz em ceder à chantagem.
Tal diploma legal alterou a redação dos artigos 266 e 298 do Código Penal, além de ter inserido os artigos 154-A e 154-B, abordando os crimes digitais de invasão de dispositivo informático, interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública e falsificação de documento particular e cartão.
Acrescentado por tal Lei, o artigo 154-A, do Código Penal, tipifica o ato de invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita. Percebe-se, portanto, que a proteção de dados e da privacidade no ambiente virtual começou a possuir normatização jurídica.
Prosseguindo na necessidade de normatizar as relações no ciberespaço, em 2014 foi aprovada a Lei 12.965, conhecida como Marco Civil da Internet ou Constituição da Internet. A aludida lei visa regulamentar as ações no mundo virtual brasileiro, já que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para usuários e provedores da internet, determinando, inclusive, diretrizes para a atuação do Estado.
Apesar de não abordar diretamente a questão do pornô de vingança, tal Lei, em sua Seção III, aborda a responsabilidade por danos decorrentes de conteúdo gerados por terceiros. Dispõe o artigo 21 do referido diploma legal que:
“Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.”
A despeito de não versar sobre a responsabilidade daquele que expôs o material que viola a intimidade da vítima, a Lei normatizou a responsabilidade do provedor caso, ao receber a notificação para não disponibilizar tal conteúdo, assim não o fizer.
Merece atenção também o artigo 15, que impõe aos provedores de aplicações de internet manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, podendo ainda este período ser aumentado caso autoridade policial ou Ministério Público solicite. Caso tal imposição não seja cumprida, haverá a aplicação de sanções.
Tanto a “Lei Carolina Dieckmann” quanto o Marco Civil da Internet possuíram e ainda possuem suma importância para regular as relações no espaço online, almejando não somente a proteção dos dados, mas também da privacidade tanto daqueles que o frequenta como também daqueles que podem ser afetados por ele.
Todavia, ainda há uma lacuna legal no que concerne à normatização do pornô de vingança, fruto talvez até mesmo da ideia aqui já apontada que a melhor solução seja a abstenção.