Capa da publicação Vaquejada: controle de constitucionalidade e diálogos institucionais
Capa: Dorivan Marinho/STF
Artigo Destaque dos editores

Controle de constitucionalidade e diálogos institucionais:

o caso da vaquejada

Leia nesta página:

As próximas etapas do embate sobre a vaquejada, que se desenha entre STF e Senado Federal, dirão muito sobre as possibilidades de desenvolvimento de um genuíno diálogo institucional relacionado ao controle de constitucionalidade.

No início de outubro de 2016, o Supremo Tribunal Federal julgou, por apertada maioria de seis votos a cinco, procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4983, por meio da qual a Procuradoria Geral da República questionava a validade da Lei Estadual nº 15.299/2013, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural no Estado do Ceará.

No julgamento, afirmou-se a “crueldade intrínseca” da prática, que estaria em suposta contradição com o dever de proteção ao meio ambiente encartado no texto constitucional, e mais especificamente com a incumbência do Poder Público de “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”, inserto no artigo 225, § 1º, da Constituição Federal (SUPREMO, 2016).

A minoria dos ministros, que votou pela improcedência da ação, considerou, em termos gerais, que a norma estadual cearense não atentava contra nenhum dispositivo constitucional, e ressaltou que a vaquejada configuraria uma manifestação de reconhecido cunho cultural.

No âmbito do Senado Federal, contudo, tramitam os projetos de lei ordinária 377/2016 e 378/2016, e também o projeto de lei complementar 24/2016, todos com o fito de promover o reconhecimento do caráter de patrimônio cultural da prática; e, ainda, o projeto de emenda constitucional 50/2016, que visaria a inclusão do § 7º ao artigo 225, da Constituição Federal, para “permitir a realização das manifestações culturais registradas como patrimônio cultural brasileiro que não atentem contra o bem-estar animal” – o que teria a intenção declarada de garantir a continuidade da vaquejada (SENADO, 2016).

Roach observa que, em circunstâncias assim, o exercício do controle de constitucionalidade, por parte do Poder Judiciário, “[...] pode servir de meio para levar à agenda legislativa questões importantes e incômodas” (apud DIXON, 2014, p. 75, tradução nossa).

Trata-se da dinâmica que vem sendo denominada internacionalmente de exercício dialógico da função jurisdicional, em que o Poder Judiciário atua como incentivador da deliberação democrática.

No caso em tela, o Senado Federal claramente tenta dialogar com o Supremo Tribunal Federal, em vista da discussão a respeito da constitucionalidade daquela lei estadual que promovia o reconhecimento da vaquejada como prática desportiva e cultural.

Algumas observações parecem pertinentes, contudo.

A discussão sobre a constitucionalidade da prática da vaquejada, parece, renova uma controvérsia já antiga no âmbito do Supremo Tribunal Federal, entre a suposta vedação geral de tratamento cruel de animais e o suposto caráter de patrimônio cultural de certas práticas.

Em outras oportunidades, como no julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade 1856, 2514 e 3776, o Supremo Tribunal Federal já havia afirmado a incompatibilidade de leis estaduais que regulamentavam práticas de “rinha de galos” e de “farra do boi” com o texto constitucional, invocando, no geral, suposto confronto com o artigo 225, § 1º, VII, da Constituição Federal – e, até mesmo, suposta ofensa à dignidade da pessoa humana, por conta da promoção de “estímulo às pulsões mais primitivas e irracionais do ser humano” (SUPREMO, 2011).

A este respeito, aliás, Neves havia afirmado, já, que se tratava de invocação esdrúxula e despropositada ao princípio da dignidade da pessoa humana, e destacava que: “Por um lado, a invocação aos princípios (morais e jurídicos) apresentava-se como panaceia para solucionar todos os males da nossa prática jurídica e constitucional. Por outro, a retórica principialista servia ao afastamento de regras claras e ‘completas’, para encobrir decisões orientadas à satisfação de interesses particularistas. Assim, tanto os advogados idealistas quanto os astutamente estratégicos souberam utilizar-se exitosamente da pompa dos princípios e da ponderação, cuja trivialização emprestava a qualquer tese, mesmo as mais absurdas, um tom de respeitabilidade. Isso tudo [...] em detrimento de uma concretização jurídica constitucionalmente consistente e socialmente adequada.” (2014, p. IX e X).

Ao deliberar sobre a questão, ao que tudo indica, todavia, o Supremo Tribunal Federal tem passado ao largo daquela que parece a principal questão sobre a matéria: a vedação constitucional de que animais sejam submetidos a crueldade limita-se à fauna nativa, ou é extensiva às espécies ditas “residentes”?

Destaque-se que o desafio, aqui, é identificar exatamente aquilo que o texto constitucional de fato veda – e não aquilo que o intérprete eventualmente gostaria que proibisse.

Saliente-se, de toda sorte, que a resposta a tal questão pode ter uma série de consequências práticas de extrema importância – sobre as possibilidades de utilização de animais ditos exóticos (porque não exatamente nativos ou migratórios) em testes de medicamentos, por exemplo.

Por outro lado, as iniciativas no âmbito do Senado Federal também não conseguirão atingir o ponto nevrálgico da questão.

Ora, de nada adianta promover o reconhecimento de uma prática como suposto patrimônio cultural se essa mesma prática encontra-se supostamente vedada pela Constituição Federal – e vale aqui lembrar que, uma norma que nasce constitucional pode até tornar-se inconstitucional, no caso de alteração posterior da Constituição Federal que venha a implicar incompatibilidade; mas que uma norma que nasce inconstitucional não se torna posteriormente constitucional, mesmo havendo alteração posterior do texto constitucional, haja vista o fato de a doutrina majoritária considerar, no Brasil, que a inconstitucionalidade configura nulidade absoluta da norma, desde o início (MENDES, 2009, p. 326).

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Além do mais, a Proposta de Emenda Constitucional 50/2016, ao que parece, não conseguiria, de qualquer modo, atingir o intento declarado – haja vista que implicaria o reconhecimento de inexistência de crueldade apenas quando não se atentasse contra o bem-estar animal.

Ocorre que a simples ideia de crueldade que não atente contra o bem estar mostra-se, já, salvo engano, teratológica e, de qualquer forma, é necessário levar em conta que o Supremo Tribunal Federal, nos julgamentos a que já se fez referência, afirmou repetidamente que a prática da vaquejada – tanto quanto as rinhas de galo e a farra do boi –, ao menos potencialmente e mesmo quando praticada com cuidados profissionais, atenta contra o bem-estar dos animais a ela submetidos, e que é exatamente aí que se encontraria configurada a crueldade supostamente vedada pelo texto constitucional em relação a todo e qualquer animal.

Conforme observam Hogg e Bushell, “[...] quando uma decisão judicial está sujeita à revogação, modificação ou anulação legislativa, faz sentido considerar a relação entre a Corte e o órgão legislativo competente como um diálogo” (2014, p. 20, tradução nossa).

Waldron, contudo, adverte que “se a Corte nunca se mostra disposta a diferir suas sentenças [...] em nada ou apenas com referências a decisões anteriores das própria Corte, então existem poucas possibilidades de que participe de um diálogo genuíno” (apud DIXON, 2014, p. 81).

Por mais que o interesse sobre a questão da vaquejada, em si, possa parecer extremamente pontual, as próximas etapas do embate que se desenha entre Supremo Tribunal Federal e Senado Federal a este respeito dirão muito sobre as possibilidades de desenvolvimento de um genuíno diálogo institucional relacionado ao controle de constitucionalidade – a alternativa é cultivar um cenário em que o Poder Judiciário avoca-se a prerrogativa de dar sempre a última palavra, fazendo ouvidos moucos à opinião da sociedade, em geral, e de seus representantes eleitos, em particular.


REFERÊNCIAS

DIXON, Rosalind. Para Fomentar el Diálogo sobre los Derechos Socioeconómicos: uma nueva mirada acerca de las diferencias entre revisiones judiciales flertes y débiles. In: GARGARELLA, Roberto (comp.). Por uma Justicia Dialógica: el poder judicial como promotor de la deliberación democrática. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2014, p. 17 a 50.

HOGG, Peter W. e BUSSHEL, Allison A. El Diálogo de la Carta entre los Tribunales y las Legislaturas: o quizá la carta de derechos no sea algo tan malo después de todo. In: GARGARELLA, Roberto (comp.). Por uma Justicia Dialógica: el poder judicial como promotor de la deliberación democrática. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2014, p. 51 a 104.

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5 ed. 4 tir. São Paulo: Saraiva, 2009.

NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.

SENADO Federal. Legalização das Vaquejadas Divide Opiniões. 2016. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/11/01/legalizacao-das-vaquejadas-divide-opinioes>. Acesso em 11 nov. 2016.

SUPREMO Tribunal Federal. Lei Fluminense que Regula Briga de Galo é Inconstitucional. 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=180541>. Acesso em 11 nov. 2016.

SUPREMO Tribunal Federal. STF Julga Inconstitucional Lei Cearense que Regulamenta Vaquejada. 2016. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326838&caixaBusca=N>. Acesso em 9 nov. 2016.

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Sobre os autores
Thiago Caversan Antunes

Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Especialista em Direito Civil e Processo Civil (UEL) e Mestre em Direito Negocial (UEL). Doutor em Direito pela Universidade de Marília (UNIMAR). Professor do curso de graduação em Direito da Universidade Positivo (UP Londrina), e de diversos cursos de pós-graduação. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE). Autor de livros e artigos científicos. Atua como advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANTUNES, Thiago Caversan ; CONSTANTINO, Caio Madureira. Controle de constitucionalidade e diálogos institucionais:: o caso da vaquejada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4907, 7 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54165. Acesso em: 2 nov. 2024.

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Elaborado para o II Encontro Científico da UNILONDRINA.

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