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O dever de proteção ao portador de microcefalia à luz dos direitos humanos e o benefício de legislação especial

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22/12/2016 às 13:30
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4.       O direito dos portadores de microcefalia à percepção de pensão especial

4.1     Responsabilidade civil do Estado – breve análise

A Seguridade Social, conforme fundamentos estabelecidos na Constituição Federal de 1988, compõe, como substrato, o arcabouço dos direitos humanos universais. Os princípios que a norteiam e o sistema por ela integrado, articulam a garantia à saúde, como dever do Estado, o amparo assistencial àqueles que dele necessitem, mesmo sem contrapartida ou prévia filiação, além da previdência social aos trabalhadores. Para dar efetividade a seu conceito organizador, esse sistema de proteção social opera inúmeros serviços e benefícios monetários. Contudo, o avanço que se destaca na evolução desse sistema está no reconhecimento da proteção social como direito elementar da pessoa humana. Este entendimento impõe ao Governo a progressiva realização de políticas públicas a assegurar as garantias ditas universais.

Dentro desse contexto, a análise da responsabilidade civil do Estado é complexa, pois trata de reconhecer o dever de reparação a um ente com princípios próprios e aspectos singulares, em razão de sua natureza jurídica, que lhe permite a imposição de seus atos imperativamente, e suas ações estão acobertadas pelo manto da presunção de legitimidade. O contraponto a esses atributos é a limitação imposta pelos princípios que regem o Estado Democrático de Direito, submetendo a vontade da administração pública às normas institucionalizadas, que devem, numa república federativa, ser acatadas de maneira generalizada, pelos entes públicos, inclusive. Assim, havendo dano cujo nexo causal o relacione a uma ação ou omissão decorrente de conduta da Administração Pública, o Estado deve por ele responder.

Em regra, essa responsabilidade é objetiva e deita bases na teoria constitucional do risco administrativo, que assevera haver o dever atribuído ao Estado, de reparar, independentemente de aferição de culpa dos agentes públicos, por ação ou omissão, diante da ocorrência de dano a direito alheio decorrente do exercício da atividade administrativa. Fundeada nos artigos 37, § 6º da Constituição Federal e 43 do Código Civil Brasileiro, esta tese doutrinária, ensinada por Hely Lopes Meirelles, Yussef Said Cahali e Celso Ribeiro Bastos, assevera que o Estado deixa de responder apenas quando o nexo causal inexistir entre o dano e a conduta administrativa, e tem sido a tese para a qual os nossos tribunais se inclinam, embora sem unanimidade. Segundo o renomado autor, (...) “Tornaram-se, por isso, inaplicáveis em sua natureza os princípios subjetivos da culpa civil para a responsabilização da Administração pelos danos causados aos administrados” (MEIRELLES, 2009, pp. 656-657) e explica:

A teoria do risco administrativo faz surgir a obrigação de indenizar o dano só do  ato lesivo e injusto causado à vítima pela Administração. Não se exige qualquer falta do serviço público, nem culpa de seus agentes. Basta a lesão, sem o concurso do lesado. 

Há autores, capitaneados por Celso A. B. de Melo, José dos S. Carvalho Filho, Maria Sylvia Z. di Pietro, asseveram ser subjetiva a responsabilidade civil do Estado em razão de danos causados por condutas omissivas. A culpa, neste caso, é apurada não com o rigor da teoria do risco integral, o que, pela amplitude e natureza dos serviços prestados pela administração pública, a obrigaria responder por qualquer dano sofrido pelo nacional. A culpa, neste caso, é apurada pela inexistência, mau funcionamento ou retardamento do serviço público que venha a causar dano ao popular. É a culpa administrativa que faculta, ao Estado, alegar excludentes como caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima ou fato de terceiro. Segundo o autor (MELLO, 2007, pp: 976-977)

Deveras, caso o Poder Público não estivesse obrigado a impedir o acontecimento danoso, faltaria razão para impor-lhe o encargo de suportar patrimonialmente as consequências (sic) da lesão. Logo, a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade por comportamento ilícito. E sendo responsabilidade por ilícito é necessariamente responsabilidade subjetiva, pois não há conduta ilícita do Estado que não seja proveniente de negligência, imprudência ou imperícia (culpa) ou, então, deliberado propósito de violar a norma que o constituía em dada obrigação (dolo). Culpa e dolo são justamente modalidades de responsabilidade subjetiva.

Como desfecho inferido das teses apresentadas conclui-se que a omissão dos agentes públicos na tomada de medidas que seriam exigíveis a fim de evitar danos a um indivíduo ou a uma coletividade, é causa bastante do dever de indenizar. Seja mediante comprovação de culpa administrativa, seja independentemente de qualquer culpa, aplicando-se a teoria do risco administrativo.

4.2     O dever de indenizar as vítimas de microcefalia e outras enfermidades relacionadas à infecção pelo vírus Zika

Os últimos dados oficiais sobre a disseminação da microcefalia em bebês cuja mãe foi infectada pelo vírus Zika durante ou pouco antes da gestação são de abril de 2016, e dão conta do alarmante número de 7.343 notificações feitas ao Ministério da Saúde, das quais 3.580 continuam em investigação, 2.492 foram descartados e 1.271 casos foram confirmados. Trata-se, inegavelmente, de uma epidemia – com potencial de tornar-se mundial –, disseminada por todo o país sendo o Nordeste a região mais atingida, bem como a população mais carente. Suspeita-se que a Zika tenha sido trazida para o Brasil em 2014, durante o evento Copa do Mundo e em razão do fluxo migratório de pessoas vindas do continente africano e da Polinésia Francesa, na Oceania, onde a doença já era conhecida.

No raiar do ano de 2015 foram notificados os primeiros casos dessa enfermidade infecciosa que apresenta manifestações cutâneas e um quadro clínico semelhante ao da Dengue e da Chikungunya, transmitidas pelo mesmo mosquito, aedes aegypti, embora, conforme relatos oficiais, cerca de 80% dos casos sejam assintomáticos (Brasil, 2015, p. 14). De disseminação rápida e eficiente, em pouco tempo vários Estados da Federação apresentaram números alarmantes de sua ocorrência sem que as autoridades públicas tomassem providências efetivas de combate ao mosquito. Casos de microcefalia começaram a se multiplicar e pesquisas passaram a ser feitas para explicar sua causa. Em novembro de 2015 foi identificada a presença do vírus Zika em líquido amniótico de mulheres, na Paraíba, com fetos portadores de microcefalia. Esta relação do vírus com a enfermidade congênita foi percebida em outros centros de pesquisas médicas no país, levando o Governo a considerar a hipótese de ralação entre a doença e o vírus. Atualmente não há dúvida da relação entre o vírus Zika e a ocorrência não apenas da microcefalia em fetos cujas mães foram contaminadas, mas de outras doenças neurológicas ou autoimunes, como a Síndrome de Guillain-Barré e o Lúpus, com prognósticos soturnos. Conforme definição do Ministério da Saúde, emprestada da Organização Mundial de Saúde, (BRASIL, 2015, p. 12):

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e literatura científica internacional, a microcefalia é uma anomalia em que o Perímetro Cefálico (PC) é menor que dois (2) ou mais desvios-padrão (DP) do que a referência para o sexo, a idade ou tempo de gestação.

A definição científica não dá a exata dimensão da gravidade dessa condição neurológica. O cérebro da criança com microcefalia não se desenvolveu da maneira esperada e isso causa uma gama de sequelas que podem levar desde a morte do recém-nascido, ao retardo mental, comprometimento visual e outros problemas, inclusive imprevisíveis, conforme o especialista Márcio Nehab:

É impossível dizer qual acometimento cerebral ela vai ter. Ela pode ter retardo mental, paralisia cerebral, epilepsia, atraso no desenvolvimento global. Existem diversas manifestações clínicas do acometimento cerebral, levando a diferenças em relação ao prognóstico dessas crianças.

As experiências relatadas por mães de crianças com microcefalia dão um fragmento da ideia das dificuldades que ambos, pais e filhos, têm desde o nascimento do bebê. Há abandono pelos maridos, que não têm estrutura financeira e/ou emocional para suportar a convivência com uma pessoa que apresenta inúmeras limitações, ou mesmo o abandono por ambos os pais, pelos mesmos motivos. O dia-a-dia daqueles que cuidam da criança é dedicado exclusivamente a ela, pois há necessidade de acompanhamento multidisciplinar e muitas vezes o cuidador – na maioria das vezes, a mãe – é obrigado a deixar o emprego para cuidar da criança. Miriam, mãe de Maria Eduarda, que nasceu com microcefalia em novembro de 2015, na cidade do Olinda/PE, e foi abandonada pelos pais biológicos, relata:

Eu adotei a bebê porque os pais biológicos a rejeitaram quando descobriram a micro. (...). Eu trabalho como diarista e a nossa rotina está super puxada. Temos médicos e terapias de segunda a sexta. A Maria Eduarda faz tratamento em três lugares diferentes. Ela perdeu a audição e a visão por causa da microcefalia. Os médicos disseram que ela vai usar um óculos e um aparelho auditivo pra ver se tem algum resultado.

Associado ao surto de microcefalia está, ainda, o aumento de casos de aborto. Segundo textos midiáticos, trazem relatos de médicos informando que gestantes com diagnóstico da infecção por Zika estão recorrendo a abortos clandestinos com receio de terem filhos com microcefalia. O pavor causado pela hipótese de conceber uma criança cujas limitações afetarão substancialmente sua qualidade de vida explica a decisão desesperada de interromper uma gravidez mesmo pendente de diagnóstico de microcefalia no feto. Isso parece acontecer mais expressivamente entre mulheres de alto nível econômico e social e revela outro desastre associado à epidemia.

Pois bem, diante da tragédia tardiamente constatada, causada pelo aumento de casos de infecção pelo vírus da Zika, decorrente da disseminação do mosquito que o transmite, afetando inúmeras gestantes e seus bebês no Brasil, o Governo passou a promover campanhas de combate emergencial. Colocou o Exército nas ruas e conclamou a população a esvaziar recipientes com água parada. Entretanto, medidas paliativas e exortações à população não resolvem o problema e os casos de microcefalia não param de surgir. Se por um lado o Governo perde a guerra para o mosquito, por outro, não dispõe de infraestrutura ambulatorial para atender às múltiplas demandas da criança com microcefalia. Sem tratamento e estímulos adequados, essas crianças deixarão de se desenvolver minimamente e, a depender da área afetada no cérebro, as sequelas produzidas tornarão sua inserção na vida em comum totalmente comprometida. A omissão da Administração Pública, tanto no combate ao mosquito que inicia o ciclo da Zika e resulta na má formação neurológica, quanto em disponibilizar meios adequados de tratamento multidisciplinar para suas vítimas, ou em prestar o auxílio necessário para que a família mantenha uma mínima infraestrutura para atender às necessidades da criança afetada, impõe a responsabilidade civil pelo dano causado.

Os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana do Estado estão presentes na não inobservância do dever de agir, quando estava obrigado a fazê-lo, ou na ausência de prática de ato que deveria ser por ele realizado para evitar o evento danoso, a microcefalia, que assola milhares de famílias, em todo o território nacional. No dizer de Maria Helena Diniz (2007, p. 622), citando Celso Antônio Bandeira de Melo, a Administração Pública responde por omissão “quando, devendo agir, não o fez, incorrendo no ilícito de deixar obstar aquilo que podia impedir e estava obrigado a fazê-lo”, e prossegue, “O fato danoso podia consistir em fato da natureza cuja lesividade o poder público não impediu, embora devesse obstá-lo”. Essa responsabilidade deriva do princípio administrativo da legalidade.

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 Acerca do dano, requisito imprescindível para suscitar a responsabilidade civil aquiliana da Administração Pública, eis que não pode responder, indiscriminadamente, por todo e qualquer evento lesivo que ocorra ao administrado, diversas teses doutrinárias buscam classifica-lo. Entre tantas está a Teoria do Dano Patrimonial Indireto, da qual um dos critérios de aferição é a ocorrência de lesão aos direitos da personalidade. Segundo Maria H. Diniz, apud Goffredo Telles Jr. e Ruggiero e Maroi (2007, p. 72):

A personalidade consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa. A personalidade não é um direito, de modo que seria errôneo afirmar que o ser humano tem direito à personalidade. A personalidade é que apoia os direitos e deveres que dela irradiam, é objeto de direito, é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens.

Coube a R. Limongi França, citado por Maria Helena Diniz (2007, p. 73) discriminar, detalhadamente, o arcabouço dos direitos da personalidade, e o fez com maestria listando, entre os quais, “o direito à integridade física, à integridade intelectual e à integridade moral”. No centro dessa estrutura estão o direito ao trabalho, à educação, à segurança física, à identidade pessoal, e tantos outros destinados a assegurar a dignidade humana. À pessoa afetada pelas limitações da microcefalia causada pelo vírus da Zika, esses direitos podem não ter significado, eis que, em razão da deficiência neurológica, não raro lhe falta a essencial consciência de sua própria condição, a compreensão de sua identidade humana e das consequências jurídicas de sua existência. Um direito não reconhecido por seu titular é um direito inexistente porque dele não pode usufruir.

A par desse direito elementar, o portador de microcefalia resultante da contaminação intrauterina pelo vírus da Zika, tem também violado seu direito fundamental à saúde, traduzido na tutela do bem-estar físico, mental e social, e da prevenção e do tratamento de doenças e enfermidades, para que se assegure uma vida humana digna. Referindo-se à criança, os direitos são ainda mais específicos, pois garantidos em legislação especial, impõe ao Poder Público efetivar políticas públicas sociais, permitindo o nascimento e desenvolvimento sadio e harmonioso, e condições dignas de existência. O reconhecimento do direito à vida acolhe-a desde a concepção, impondo ao Estado o dever de lhe salvaguardar a inviolabilidade e de indenizar, em caso de lesões, como deformações que poderiam ter sido evitadas se não houvesse ausência ou má prestação do serviço público.

Assegurado constitucionalmente, o direito à saúde exibe robustez de garantia fundamental e é com esta mesma força que a República brasileira atribui ao Estado, em equivalência ao referido direito, o dever de assegura-lo. Não resta dúvida de que a desídia e a negligência do Governo, deixando de operar políticas públicas efetivas a zelar pela saúde de seus administrados, eliminando um mosquito que age como arma biológica, permitiram a proliferação do vírus da Zika e contaminação dessas crianças ainda no ventre materno, causando-lhes prejuízos irreversíveis, e revelando evidente relação causal entre o dano e seu produtor. 

Conclusão inevitável impõe reconhecer, às vítimas da microcefalia, causada pela contaminação da Zika em razão da má prestação do serviço público que, ao não combater eficazmente o mosquito transmissor do vírus, deixou de evitar-lhes o dano, o direito à reparação na modalidade de pagamento de pensão especial, vitalícia e intransferível, de natureza indenizatória, nos moldes do benefício concedido às vítimas do medicamento Talidomida, no valor de um a oito salários mínimos, conforme o grau da deficiência produzida. Essa pretensão encontra fundamento na reparação do sofrimento causado pelas adversidades físicas, psíquicas e sociais experimentadas pelos portadores da microcefalia, comprometendo severamente seu direito à uma vida plena, apresentando incapacidade para o trabalho, para a deambulação, para a higiene pessoal e para promover a própria alimentação. Esta pensão não é incompatível com o benefício assistencial de prestação continuada, podendo ser com ele associada. Mostra-se mais adequada em razão do caráter irreversível e incorrigível da má formação, que afetará o portador por toda a sua vida.  

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Sobre a autora
Elisabete Porto

mestra em ciências jurídicas pela UFPB, pós-graduada em direito previdenciário, professora, autora, palestrante, diretora do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário e advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTO, Elisabete. O dever de proteção ao portador de microcefalia à luz dos direitos humanos e o benefício de legislação especial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4922, 22 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54309. Acesso em: 21 nov. 2024.

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