Capa da publicação A violência contra a mulher e suas várias nuances: linha histórica e contexto atual
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Violência contra a mulher x violência de gênero e os mecanismos internacionais de proteção aos direitos das mulheres

08/03/2017 às 16:50
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Mesmo com o avanço legislativo alcançado ao longo de anos, e a criação de mecanismos internacionais de prevenção e repressão, a violência contra a mulher ainda permanece como uma das nódoas discriminatórias que mais maculam a sociedade brasileira.

RESUMO: O presente artigo aborda a violência contra a mulher no âmbito doméstico, referindo os mecanismos de proteção dos direitos femininos nacionais e internacionais, a história da violência contra a mulher e as conquistas alcançadas na luta pela preservação e proteção aos direitos das mulheres. A metodologia observada na sua construção foi a realização de uma pesquisa bibliográfica qualitativa exploratória para prover o embasamento teórico ao estudo, em que foram consultadas obras de estudiosos da questão. Ao fim do trabalho, observou-se que, mesmo já se vivendo no século XXI, e com todas as conquistas já alcançadas, as mulheres ainda são objeto de discriminação em todos os campos de ação da humanidade, e os casos de violência doméstica ainda se verificam em quantidades alarmantes, ainda que os homens saibam que podem sofrer sanções legais, inclusive com a perda da liberdade, o que não os intimida nem faz recuar em seus intentos de agressão e até mesmo causando a morte das companheiras, havendo, portanto, muito a ser feito para eliminar essa chaga da sociedade.

Palavras-chave: Mulher. Violência. Direitos. Preservação.


INTRODUÇÃO

Ainda por ocasião da realização da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW – Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women), no ano de 1979, de iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONUU) – a que o Brasil aderiu somente em 1984 – confirmou-se, então, que a classe feminina continuava sendo objeto de grande discriminação, apesar dos amparos legais existentes, dentre os quais está a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Em 1994, efetivou-se, em Belém do Pará, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, que é, também, conhecida como "Convenção de Belém do Pará" e foi ratificada pelo Brasil em 1995, quando o Brasil declarou que a violência contra a mulher constitui uma violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais.

Em ambas as Convenções, os países membros assumiram o compromisso de adotar todas as medidas exigidas para eliminar a discriminação contra as mulheres, de maneira geral, tendo, além disso, se comprometido a prestar contas das providências para sua concretização. Esses eventos, apesar do período de tempo que os separa, representaram o esforço do movimento feminista internacional para que a violência contra a mulher fosse repudiada pelos Estados-membros das Organizações que as subscreveram.

No caso da Convenção de Belém do Pará, registre-se que acolheu e ampliou a Declaração e o Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizado em Viena, em 1993.

Quanto à Convenção da Mulher, como também é conhecida a Convenção da ONU, foi criado um Protocolo Facultativo à CEDAW, em 1999, em razão da necessidade de se dispor de um sistema mais eficiente de monitoramento, de forma que a comunidade internacional acompanhasse o cumprimento da Convenção de 1979. O Brasil só veio ratificar tal Protocolo três anos após a criação deste.

No entanto, mesmo aderindo e validando esses documentos, isso não foi suficiente para que as mulheres brasileiras fossem, de fato, protegidas e tivessem seus diretos respeitados. Dessa forma, foi sentida a necessidade de que novas leis viessem suprimir a inaplicabilidade das normas jurídicas já positivadas pelo Direito brasileiro.

Pretendendo suprir essa necessidade, foi sancionada a Lei nº 11.340/06, que entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006, que é mais conhecida como "Lei Maria da Penha" e caracteriza a violência doméstica como uma das formas de violação dos direitos humanos, tendo concorrido para a efetivação de alterações no Código Penal e ainda estabelecendo outras medidas inéditas.

As mulheres, e a sociedade em geral, devem conhecer – e sobretudo buscar, sempre que se fizer necessário - a lei que lhes protege os direitos e impõem os deveres. Só assim, através desse exercício de cidadania consciente, o grito erguido pela cearense Maria da Penha ecoará por todos os cantos do Brasil, e fará com que essa nova conquista legislativa não se transforme em mais um texto morto dentro de nosso ordenamento jurídico.

2 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

A violência contra a mulher, conforme os registros levantados a respeito, é fator inerente à Historia da humanidade, estando presente em todas as épocas da evolução humana, conforme retrata Gregori (1993). No entanto, por se tratar de algo construído ao longo do tempo, da mesma forma pode sofrer alteração, modificando-se a situação até hoje existente.

Gregori (1993) entende que essa questão apresenta estreita conotação com as categorias de gênero, classe e raça/etnia e suas relações de poder. Nesse contexto, enquadra-se da mesma forma que toda e qualquer conduta que tem por base o gênero, que concorra para provocar, ou seja passível de, causar morte, dano ou sofrimento nos âmbitos: físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública quanto na privada.

Nesse sentido, entende-se não ser possível evitar abordar-se, pelo menos de forma breve, um pouco dos direitos humanos universais, haja vista que se busca estabelecer um liame entre os instrumentos de direitos humanos e os direitos da mulher, sem esquecer que ainda nos início dos tempos, em tempo anterior à era cristã, já havia tentativas no sentido de regular as relações dos particulares com o Estado. (SCHRAIBER e D'OLIVEIRA, 1999)

A História registra que os primeiros documentos formalizados cuja existência chegou ao conhecimento atual, que em seu conteúdo prognostica definição de direitos humanos, são constituídos pelo Código de Hamurabi (1694 a.C.), a Lei das XII Tábuas (450 a.C.) e o Alcorão (610 d.C.), conforme indicam os registros de Schraiber e D'Oliveira (1999). Como se pode notar, tratam-se de documentos de natureza religiosa, em cujo conteúdo estão ensinamentos que conclamam os povos a cultivarem uma convivência pacífica, definindo o cumprimento de penas caso não cumpram essas normas. As referências feitas às mulheres nesse instrumentos registram que elas se constituíam em meros objeto de desejo ou repulsa dos homens, sendo as responsáveis por atos libidinosos, ou mesmo desonestos, praticados pelos homens.

O advento do capitalismo no século XIX contribuiu para a efetivação de alterações consideráveis no seio da sociedade, as quais modificaram as características do processo produtivo, que, a partir de então, necessitou do concurso da mulher para atender as demandas do mercado, conforme se entende das pesquisas de Schraiiber e D'Oliveira (1999). Assim, a mulher, passa a integrar o ambiente das fábricas, o que enseja que ela abandone o locus que até então lhe era reservado e permitido — o espaço privado - e vai à esfera pública.

A partir de então, a luta feminina pelo reconhecimento de sua condição de igualdade ao homem fica mais acirrada, com a contestação a atribuição de inferioridade que os homens continuam a lhe inflingir, articulando-se para provar que podem fazer as mesmas coisas que eles, iniciando assim, a trajetória do movimento feminista, que pode ser assim definido:

Grosso modo, pode-se dizer que ele corresponde à preocupação de eliminar as discriminações sociais, econômicas, políticas e culturais de que a mulher é vítima. Não seria equivocado afirmar que feminismo é um conjunto de noções que define a relação entre os sexos como uma relação de assimetria, construída social e culturalmente, e na qual o feminismo é o lugar e o atributo da inferioridade. (GREGORI, 1993, p. 15)

Com sua atuação, as feministas questionaram a construção social da diferença entre os sexos e os campos de articulação de poder, criando o conceito de gênero, de sorte que, dessa forma, conseguiram abrir as portas para se analisar o binômio dominação-exploração construído ao longo dos tempos, segundo entendimento de Schraiiber e D'Oliveira (1999).

As categorias de gênero, classe e raça/etnia e suas relações de poder concorrem para gerar violência contra a mulher, e, no dizer de Schraiiber e D'Oliveira (1999), essas relações estão justificadas e facilitadas por uma ordem patriarcal proeminente na sociedade brasileira, que confere aos homens o direito a dominar e controlar suas mulheres, podendo em certos casos, atingir os limites da violência.

Ainda que as sociedades humanas tenham sido predominantemente machistas, em todas as épocas se registram manifestações em prol do reconhecimento dos direitos da mulher, especialmente a partir do século XVII, quando se constata o surgimento dos direitos humanos em forma laica, que, inicialmente, foi limitado às relações indivíduo-Estado, protegendo direitos tais como o de “petição” ou o “habeas corpus”, direitos esses, inseridos nos chamados direitos civis e políticos.

No entanto, os direitos humanos não alcançavam a plenitude dos direitos essenciais à satisfação das necessidades básicas das pessoas, como a saúde, a alimentação, a educação, a moradia entre outros que asseguram a dignidade pessoal e o desenvolvimento dos povos, haja vista que eram reconhecidos apenas nos direitos civis e políticos, segundo a concepção de Gregori (1993).

Posteriormente, foi sentida a necessidade de incorporar a esses direitos humanos os direitos sociais, culturais e econômicos. Atualmente, o direito ambiental também é considerado integrante dos direitos humanos básicos e, para as mulheres, está cada vez mais patente a necessidade de inclusão dos direitos sexuais e direitos reprodutivos como essenciais à plenitude desses direitos, de acordo com referência feita por Gregori (1993).

Os direitos humanos devem ser considerados como direitos universais, indivisíveis e interdependentes, e sua finalidade principal é proporcionar ao ser humano o reconhecimento de sua identidade individual como também social e, nesta bifurcação, possibilitar o acesso a todos os direitos básicos necessários a uma vida digna e de qualidade, sem discriminações ou exclusões de qualquer espécie, segundo entendem Schraiiber e D'Oliveira (1999).

Os direitos humanos não podem ser considerados estanques, haja vista se ter conhecimento de que, na medida em que surgem novas necessidades, surgem, também, novos desafios e, para enfrentá-los, novos direitos, conforme orienta Gregori (1993). Por outro lado, o conteúdo destes direitos também evolui de acordo com a transformação da realidade que se pretende regular e a conscientização de que o Estado e os indivíduos são os responsáveis pelas ações positivas para o cumprimento integralizado dos direitos humanos. É este o marco histórico da teoria dos direitos humanos e seu contexto, também teórico na atualidade.

Como instrumento internacional propriamente dito, entende-se como um dos mais importantes no campo dos direitos humanos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinado por quase 200 países junto à Organização das Nações Unidas – ONU, no dia 10 de dezembro de 1948, segundo orientam Schraiiber e D'Oliveira (1999). Esse documento histórico serviu como resposta à necessidade daquela época, estabelecendo os princípios básicos de respeito e convivência entre os povos e servindo como paradigma ético no relacionamento internacional, nas relações de violação no âmbito do público, especialmente perpetradas pelos Estados e enfatizando os direitos civis e políticos, em ocasião em que a humanidade ainda estava estarrecida pelas atrocidades da Segunda Guerra Mundial.

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Por ocasião da II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada na cidade de Viena, em junho de 1993, o movimento internacional de mulheres logrou incorporar ao Programa de Ação da Conferência, os direitos humanos da mulher e da menina. Estes foram declarados como parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais.

A Conferência de Viena também declarou que a violência contra a mulher e todas as formas de assédio e exploração sexual são incompatíveis com a dignidade da pessoa humana e necessitam ser eliminadas para que a mulher goze plena cidadania. É nesta ocasião que a humanidade supera o secular preconceito que persistia no plano teórico dos direitos humanos, sobre a impossibilidade de o Estado responder as violações ocorridas no âmbito do privado.

Reconheceu expressamente, pela primeira vez na história dos direitos humanos, os direitos das mulheres e estabeleceu em seu artigo 18:

Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais (...). A violência de gênero e todas as formas de assédio e exploração sexual (....) são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem ser eliminadas (...) Os direitos humanos das mulheres devem ser parte integrante das atividades das Nações Unidas (...), que devem incluir a promoção de todos os instrumentos de direitos humanos relacionados à mulher.

Assim, com base nos estudos de Schraiiber e D'Oliveira (1999), entende-se ter sido possível reverter a lacuna existente na Declaração dos Direitos Humanos, que, durante toda sua existência não considerou expressamente a violência familiar e sexual contra as mulheres como uma violação dos direitos humanos.

Como já referido anteriormente, tem-se que a luta para a inclusão dos direitos das mulheres nos instrumentos internacionais não é de agora. Nesse sentido, registra-se que, já no ano de 1789, a revolucionária francesa Olympe de Gouge, após participar ativamente das lutas pela tomada da Bastilha, foi guilhotinada pelo simples fato de ter querido inserir direitos específicos das mulheres na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Este exemplo demonstra como é difícil a inclusão do feminino em qualquer contexto de direitos, seja ele individual ou coletivo, local ou universal. (GREGORI, 1993).

No entanto, apesar de todas as dificuldades, as mulheres vêm conseguindo alguns avanços e hoje já se dispõe, no arcabouço teórico dos direitos humanos, de inúmeros instrumentos internacionais que declaram o combate à discriminação e a violência contra a mulher, estimulam a igualdade de oportunidade entre os gêneros e exigem seu cumprimento por parte do Estado e da sociedade.

Acompanhando as decisões tomadas em termos internacionais no âmbito da garantia dos direitos das mulheres, o Brasil assumiu vários compromissos internacionais que traduzem a vontade de eliminar a discriminação e alcançar a igualdade entre mulheres e homens. Estes compromissos, em forma de acordos, tratados, convenções, declarações, plataformas ou pactos, resultantes ou não de conferências internacionais, são respaldados pelo § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, que os considera instrumentos legais quando diz:

Art. 5º (...)

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (BRASIL, CF, 2006))

Portanto, a partir do momento que um instrumento internacional é assinado pelo Poder Executivo e ratificado pelo Poder Legislativo do nosso país, passa a ter força de lei e como tal deve ser observado. Apesar de entendermos desta forma, sabemos que o Poder Judiciário ainda não é unânime nesta afirmativa.

Foi a partir da década de 70 que a questão de gênero nos instrumentos internacionais mais sobressaiu. Os anos de 1975 a 1985 foram declarados pela Organização das Nações Unidas - ONU como a Década da Mulher. Foi neste período que o movimento feminista do Brasil teve um grande desenvolvimento e seguiu avançando nas décadas seguintes.

Ao completar dez anos da Década da Mulher (1975/1985), a ONU promoveu, entre os grandes eventos da década para os temas globais da agenda social internacional, a realização da IV Conferência Mundial sobre a Mulher com o tema Igualdade, Desenvolvimento e Paz e que foi realizada em Beijing – China, e teve a participação de quase cinqüenta mil mulheres, representando cerca de 170 países. Sua Plataforma tem sido um marco para a implementação de legislação e políticas públicas em vários países, inclusive no nosso.

Entre os diversos temas globais da agenda social internacional, destaca-se o combate à violência, afirmando que esta se constitui um obstáculo a que a mulher alcance os objetivos de igualdade, desenvolvimento e paz, além de violar, prejudicar e anular o desfrute dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Ainda com relação à violência, recomenda uma série de medidas, como a modernização da legislação, implementação de mecanismos de prevenção, proteção e reparação às vítimas, educação, eliminação de práticas consuetudinárias preconceituosas baseadas na idéia de superioridade ou inferioridade de qualquer dos sexos e reabilitação dos agressores, entre outras.

A Plataforma da Conferência de Beijing também aborda temas como a saúde, em seu aspecto integral, preventivo e curativo, incluindo aí a concepção e contracepção; o tema do aborto, condenando legislações que ainda discriminam mulheres por sua prática; trabalho digno e salário que responda a uma vida com qualidade; capacitação profissional e a não discriminação frente a função da maternidade e aleitamento que deve ser visto como função social; a educação, em seus diversos níveis; o poder, com a proposta de amplo acesso por parte das mulheres; a pobreza como obstáculo ao desenvolvimento.

Ainda especificamente sobre os direitos da mulher, aponta-se dois instrumentos jurídicos como dignos de serem destacados: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção da Mulher) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará).

2.1 CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER (CONVENÇÃO DA MULHER)

Esta Convenção de nome extenso, estabelecida para garantir efetividade aos direitos da mulher, mas também conhecida como Convenção da Mulher, ou, ainda, a Lei Internacional dos Direitos da Mulher, faz parte do sistema universal de proteção dos direitos humanos. Sua corporificação ocorreu no ano de 1979, por iniciativa da Assembléia Geral das Nações Unidas e sua ratificação pelo Brasil, se deu em 1984, oportunidade em que foram feitas algumas reservas, que foram suspensas em 1994. Em 2001, o Brasil assinou o Protocolo Facultativo à Convenção, assumindo, dessa forma, a responsabilidade pelo seu cumprimento.

Em termos de garantia dos direitos da mulher, esta Convenção pode ser considerada o documento de abrangência internacional de maior importância na preservação e garantia à mulher de igualdade com o homem no usufruto de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

A Convenção da Mulher tem a observação de seus dispositivos controlada pelo Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), cuja competência envolve, entre outros encargos, receber denúncias e petições de mulheres ou grupo de mulheres e, diante delas, instar o Estado-parte denunciado a adotar medidas para pôr fim à discriminação apontada.

Deve-se registrar que, ainda que o Comitê não disponha de poderes para estabelecer punições para serem cumpridas pelo Estado infrator, ele goza de força política e moral com abrangência considerável, a tal ponto que suas recomendações têm um peso significativo frente às Nações Unidas. Um de seus mecanismos de controle se constitui na obrigação periódica de todo Estado-parte de apresentar relatórios acerca da situação das mulheres, que são criteriosamente analisados pelo Comitê, recebendo as críticas e recomendações necessárias para a eliminação da discriminação existente.

Em âmbito nacional, as primeiras iniciativas no sentido de se criar movimentos feministas se deram em meados da década de 1970, quando as mulheres se organizaram e se engajaram politicamente, visando prover suporte à defesa dos direitos da mulher em oposição ao machismo então reinante como sistema social opressor.

Nesse período de triste memória da história do Brasil, tem-se o registro de inúmeros assassinatos de mulheres por seus maridos, sob alegação de legítima defesa da honra, com o que, o matador era sempre inocentado, por uma sociedade de natureza acentuadamente machista. O exemplo mais significativo dessa época é o assassinato bárbaro da socialite nacionalmente conhecida Ângela Maria Fernandes Diniz pelo ex-marido, Raul Fernando do Amaral Street (Doca), em razão dele não haver se conformado com o rompimento da relação, resolvendo por fim à vida da ex-mulher, descarregando um revólver contra o rosto e crânio de Ângela, evento que teve enorme repercussão dentro e fora do país. Preso e definido que deveria enfrentar júri popular, foi absolvido sob o argumento de haver matado em ‘legítima defesa da honra’, o que contribuiu para reunir um número significativo de mulheres que protestaram contra essa decisão, argumentando que ‘quem ama não mata’.

O caso acima relatado é apenas um exemplo da grande impunidade à violência perpetrada contra as mulheres, violência que, com a mobilização do movimento feminista ganhou a seguinte definição:

A expressão refere-se a situações tão diversas como a violência física, sexual e psicológica cometida por parceiros íntimos, o estupro, o abuso sexual de meninas, o assédio sexual no local de trabalho, a violência contra a homossexualidade, o tráfico de mulheres, o turismo sexual, a violência étnica e racial, a violência cometida pelo Estado, por ação ou omissão, a mutilação genital feminina, a violência e os assassinatos ligados ao dote, o estupro em massa nas guerras e conflitos armados. (GREGORI, 1993, p. 18)

A partir do engajamento do movimento de mulheres e do movimento feminista contra essa forma de violência, surge em 1981, no Rio de Janeiro, o SOS Mulher; seu objetivo era construir um espaço de atendimento às mulheres vítimas de violência, além de ser um espaço de reflexão e mudanças das condições de vida destas mulheres.

O SOS Mulher não se restringiu apenas ao Rio de Janeiro, esta iniciativa também foi adotada em outras capitais, como: São Paulo e Porto Alegre. “A então forte e bem sucedida politização da temática da violência contra a mulher pelo SOS-Mulher e pelo movimento de mulheres em geral fez com que, em São Paulo, o Conselho Estadual da Condição Feminina, [...], priorizasse essa temática, entre outras.” (SANTOS, 2001, p. 33)

A busca destes dois movimentos — de mulheres e feministas — por parcerias com o Estado para a implementação de políticas públicas resultou na criação do Conselho Estadual da Condição Feminina em 1983; na ratificação pelo Brasil da CEDAW em 1984; ao que se seguiu, em 1985, a implantação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher; e, da primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM).

A criação das Delegacias de Defesa da Mulher foi uma iniciativa pioneira do Brasil que mais tarde foi adotada por outros países da América Latina. Pela última pesquisa realizada em 2003/2004, contavam-se 380 delegacias, tendo sua maior concentração na região sudeste (40%). Ao ratificar a CEDAW o Estado brasileiro se comprometeu perante o sistema global a coibir todas as formas de violência contra a mulher e a adotar políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência de gênero.

A Constituição Federal Brasileira de 1988 incorpora aos direitos e garantias do seu texto original, os estabelecidos em decorrência de acordos e tratados internacionais. Desta forma, as Resoluções da Convenção de Belém do Pará e da CEDAW são também garantias constitucionais, como expressa o artigo 5º parágrafo 2º, da Constituição Federal: ‘Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’. (BRASIL, 2006, p. 15-16)

Desta forma, a criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) vêem efetivar o compromisso assumido perante os sistemas internacionais. Tal iniciativa contribuiu para dar maior visibilidade a problemática da violência contra a mulher, especialmente a doméstica; favorecendo a discussão da natureza criminosa da violência perpetrada sob questões de gênero, além de criar uma via de enfrentamento e erradicação da violência contra a mulher no Brasil.

2.2 CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER (CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ)

Esta Convenção, também chamada Convenção de Belém do Pará, em razão de se configurar resultado do encontro realizado em Belém do Pará, foi instituída pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em junho de 1994 e ratificada pelo Brasil em novembro de 1995.

Trata-se de um importante instrumento criado com a finalidade de prover proteção legal às mulheres, no bojo do qual, os tipos de violência perpetradas comumente contra as mulheres estão definidos de forma clara e explícita; considera a violência contra a mulher como uma violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais; reconhece que a discriminação pode ser baseada na perspectiva de gênero; dá visibilidade à violência sexual e psicológica, reconhecendo que um ato de violência contra a mulher pode ser perpetrado tanto nos espaços privados quanto nos públicos.

Os Estados-parte que ratificaram a Convenção de Belém do Pará se comprometeram a adotar várias ações visando a prevenção, a punição e a erradicação da violência contra a mulher, em todos os seus níveis de poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Estas ações devem ser implementadas através de políticas públicas abrangentes.

O monitoramento da Convenção de Belém do Pará difere do monitoramento da Convenção da Mulher. Enquanto o Comitê da Mulher, integrante do sistema global da ONU, não tem competência jurisdicional, a Convenção de Belém do Pará, que integra o sistema interamericano, dispõe de órgão jurisdicional – a Corte Interamericana de Direitos Humanos – que possui força jurídica vinculante e obrigatória.

Apesar de o Brasil ter assinado e ratificado esses instrumentos internacionais de direitos humanos das mulheres, sua efetivação ainda necessita de grandes esforços. A desigualdade real existente na realidade brasileira vem sendo perpetuada através das dificuldades encontradas para exercer direitos, inclusive aqueles já legalmente alcançados. Além disso, apesar de nossa Constituição declarar a igualdade entre mulheres e homens, muitos de seus dispositivos carecem de regulamentação.

A maternidade e a reprodução são muitas vezes utilizadas para definir a função da mulher e para lhe negar o desempenho de outros tipos de papéis na sociedade. Neste sentido, é indispensável o reconhecimento dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, cujo desfrute está estreitamente vinculado à liberdade e desenvolvimento da personalidade. Muitos dos direitos sexuais e direitos reprodutivos foram elencados em uma outra conferência – a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada na cidade do Cairo – Egito, em 1994 cujo Plano de Ação, como o das anteriormente apresentadas, também é bastante abrangente.

Diante da constatação de que existem mecanismos jurídicos suficientes para garantir o respeito aos direitos femininos, espera-se que haja uma maior divulgação dos instrumentos internacionais assumidos pelo Brasil, uma maior educação em direitos humanos, para que nossa população consiga alcançar um maior grau de respeito e responsabilidade pelos temas das mulheres.

Finalizando, reforça-se a teoria de que os direitos humanos não devem ser vistos apenas como direitos que protegem violações de caráter penal e sim que devem ser ampliados a todas as necessidades da natureza humana, ao desenvolvimento, à paz, à soberania sobre os recursos naturais e o meio ambiente saudável, à autodeterminação dos povos com preservação de sua cultura, suas crenças e suas pessoas de forma individual e coletiva. Para isto reapresenta-se o lema da Conferência Internacional da Mulher, em 1995, Igualdade, Desenvolvimento e Paz, acrescentando Respeito às Diferenças, Tolerância e Amor.

CONCLUSÃO

As intensas lutas travadas no Brasil pelas mulheres na conquista de seus direitos possibilitaram importantes avanços em termos do reconhecimento jurídico de suas reivindicações, através das diversas legislações.

Novos direitos surgem, superando antigos valores. Porém, com base no debate inicial de gênero, vemos que muitas mulheres ainda não têm seus direitos efetivados, pois ainda se põe em dúvida a legitimidade de suas reivindicações, perpetuando assim as relações de poder justificadas pelas diferenças sexuais, que eleva o homem a um patamar superior.

Convivemos por um lado, com a emancipação das mulheres, que vão cada vez mais ocupando os espaços públicos, antes reservados somente aos homens e por outro, com a existência de mulheres aprisionadas em seus lares submetidas à violência, oprimidas e sem a perspectiva de conseguirem romper com os laços que as une aos seus agressores.

Sabemos que as desigualdades de gênero não serão as únicas determinações sobre as mulheres. Aspectos referentes à raça, classe social, etnia, geração, orientação sexual se somarão na hierarquização de mulheres e também de homens em nossa sociedade.

Temos que considerar ainda o contexto mais amplo em que tais direitos se inscrevem. A Constituição de 1988 garante direitos de grupos até então alijados da cidadania, ao mesmo tempo, que a crise econômica e a reforma do Estado impossibilitam que, principalmente, os direitos sociais saiam do papel. Afirmam-se os direitos civis e políticos, mas poucas são as mulheres que conseguem ocupar um cargo político.

Não podemos esquecer que a tendência histórica do capitalismo reside justamente no fato de ele explorar diferenças específicas (gênero, nacionalidade, raça) e transformá-las em coadjuvantes frutíferos para a sua reprodução e acumulação. Assim neste tempo de neoliberalismo, certos grupos são mais vulneráveis, por serem alvo de múltiplas exclusões, entre estes, as mulheres, ainda mais se ela for negra, pobre e lésbica.

Então como proteger os direitos das mulheres? Estratégias diferenciadas deverão ser pensadas pelas mulheres para além da luta no campo do reconhecimento legal dos direitos, pois as diferentes determinações (culturais, econômicas, sociais, políticas, ideológicas, afetivas) irão a todo o momento recolocar a necessidade de se reafirmar a igualdade entre homens e mulheres.


REFERÊNCIAS

BRASIL. (2002). Código Civil. 1916. 17 ed. SP: Saraiva. (Adendo especial o Novo Código Civil).

BRASIL. (2006). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988, 35.ed. ampliada. São Paulo: Saraiva.

_______. Lei. Lei nº. 11.340/de 07 de agosto de 2006. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 de agosto de 2006.

CONVENÇÕES: PROTOCOLO FACULTATIVO À CEDAW - http://www.agende.org.br/convencoes/cedaw/interna.php?area=4, acessado em 25.03.2014.

GREGORI, M. F. (1993). Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: ANPOCS.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSCA – IBGE.  (2009). Estimativa da população para 1º de julho de 2009.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2000). Relatório n° 54/01. Caso 12.051: Maria da Penha Maia Fernandes. 4.abr.2001.

_____________________. (1996). Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher: Convenção de Belém do Pará. São Paulo, CLADEM/IPÊ.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. CEDAW. Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women. Disponível em: <http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/text/econvention.htm> Acesso em: abril de 2014.

SANTOS, C. M. (2001). Delegacias da Mulher em São Paulo: percursos e percalços. Disponível em: <http://www.social.org.br/relatorio2001/relatorio023.htm>. Acesso em: 27 abr. 2014.

SCHRAIBER, L.; D'OLIVEIRA, A.P.L. (1999). Violência contra as mulheres: interfaces com a saúde. Interface - Comunicação, saúde e educação. Botucatu, UNI/UNESP, 3(5):11-27. 

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Sobre a autora
Amanda Cabral Fidalgo

A formação acadêmica :Bacharelado em Direito. Faci- Faculdade Ideal, conclusão em 2010, Especialista em Processo Civil, Trabalhista, Penal, Administrativo e Constitucional- Mauricio de Nassau, concluído em Junho de 2013., Mestranda em Direito Processual Constitucional- Universidad Nacional Lomas de Zamorra em Convênio ao Instituto Universitário Brasileito- IUNB, concluido em Dezembro de 2014, aguardando a defesa.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIDALGO, Amanda Cabral. Violência contra a mulher x violência de gênero e os mecanismos internacionais de proteção aos direitos das mulheres. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4998, 8 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55206. Acesso em: 19 mar. 2024.

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