1. INTRODUÇÃO
Montar o próprio negócio e ser chefe de si mesmo, segundo pesquisa realizada pelo IBOPE e pela Endeavor Brasil, é o sonho de 3 em cada 4 brasileiros. Contudo, o autoempresariamento (DINIZ, 2013, v. 4, p. 74) não é tarefa fácil. Lançar uma nova empresa no mercado requer mais do que uma boa ideia e capital. Exige-se um conhecimento específico que não se adquire somente em livros, revistas e palestras, mas, principalmente, na prática: a habilidade de tomar decisões certas.
Diante da desvantagem da juventude (MIZUMOTO et al., 2010), que fazem com que muitas empresas nascentes não sobrevivam aos seus primeiros anos, o franchising desponta como uma prática empresarial satisfatória àqueles que querem empreender, mas não sabem como. Trata-se da união do capital de um ao desejo de expansão de outro, dono de um negócio já estabelecido, mediante a transferência de conhecimentos e assessoria técnica, dando ensejo a uma relação que, a princípio, só traz benefícios para ambos.
Todavia, a teoria e a prática do franchising guardam especificidades que merecem ser analisadas criteriosamente, pois, como pontuado por José Cretella Neto (2002,p.5), na mesma medida em que esse sistema de impulsionamento de vendas proporcionou o desenvolvimento de diversos segmentos mercadológicos, também abre algumas margens sensíveis para conflitos.
Um dos aspectos mais relevantes, porém de pouca reflexão, diz respeito à proteção da propriedade intelectual, especialmente a marca e o know-how. A crescente importância da propriedade intelectual desperta a necessidade de atentar para a sua proteção no contrato de franchising. A lei específica muito pouco trata a respeito das suas implicações da propriedade intelectual durante a vigência contratual e, sobretudo, pós-contratual, viabilizando ampla margem para a autonomia privada.
Neste cenário, faz-se necessário, antes de mais nada, esmiuçar a tratativa conferida pelo legislador pátrio a esse contrato mercantil, desmistificando suas características e requisitos de validade, para adentrar especificamente na seara da propriedade intelectual, principalmente no que tange a marca e o know-how. Depois de ultrapassadas esses estudos iniciais, pretende-se, então, analisar um possível mecanismo de prevenção de conflitos da propriedade intelectual em contratos de franchising.
2. CONTRATO DE FRANCHISING
A revolução industrial estadunidense serviu de cenário para o desenvolvimento do contrato de franchising. Em meados do século XIX, esse negócio jurídico passou a ser vislumbrado pelas empresas como um mecanismo eficaz para a sua disseminação ante a crescente mobilidade urbana. O desenvolvimento dos meios de transporte, especialmente as ferrovias, facilitou o atendimento a demandas espalhadas geograficamente.
Foi nesse contexto que os primeiros acordos de franchising foram celebrados para a instalação de restaurantes Harvey House em estações de trem e a comercialização de máquinas de costura Singer por pequenos vendedores. No entanto, o estouro dessa prática comercial somente ocorreu com o fim da segunda guerra mundial, despertado pelos veteranos que, ao retornarem da guerra, buscavam alternativas ao emprego formal.
No Brasil, o contrato de franchising começou a ser praticado em meados do século XX, por volta dos anos de 1970, capitaneado por franquias estrangeiras de escolas de idiomas1, engarrafadoras de bebidas2, concessionárias de veículos e revendedoras de gasolina. A partir da década de 80, as empresas brasileiras passaram a adotar o sistema de franquias como estratégia mercadológica, baseado na “concessão de marca ou produto para ser explorada por terceiros” (DINIZ, 2013, p. 72).
Segundo especialistas, os principais fatores para a popularização desse sistema no mercado brasileiro nas décadas de 1980 e 1990 incluíram: a chegada ao país de marcas internacionais; o crescimento do setor de shopping centers; a mobilização de um grupo de interesse (que incluía franqueadores, advogados e consultores) para a regulamentação e a organização do setor; e o capital disponível de profissionais que aderiram aos planos de demissão voluntária de empresas privatizadas. (VANCE; AZEVEDO; SILVA, 2012, 24)
Enquanto que, nos Estados Unidos, a aprovação da Trademark Act, em 1946, colaborou para a expansão e desenvolvimento de novas gerações e formatos de franquia; no Brasil, a Lei de Franchising somente foi editada em 1994, prevendo requisitos mínimos para a celebração do negócio jurídico.
A Lei nº 8.955/94 conceitua o contrato de franchising a partir de uma ótica negocial, e não meramente jurídica, evidenciando tratar-se de um contrato complexo. Contudo, da leitura do dispositivo vislumbra-se uma redação criticável do ponto de vista jurídico, ante a sua prolixidade. Por essa razão, adota-se, como conceito para esse contrato mercantil, aquele trazido pela doutrina, ante a sua lucidez e ausência de rodeios.
Arnaldo Rizzardo, valendo-se dos ensinamentos de Nélson Abrão, conceitua o contrato de franquia como “operação através da qual um empresário permite ou autoriza a outrem o direito de usar a marca de produto ou serviço seu, oferecendo-lhe assistência técnica para sua implantação e comercialização, recebendo, em troca, determinada remuneração” (RIZZARDO, 2011, p.1384).
Já Fran Martins (2010, p. 439) conceituava o contrato de franchising atentando para as suas diversas gerações:
Consiste a franquia na concessão de uma determinada pessoa, que se constitui em empresa, de marcas de produtos, devidamente registradas, já perfeitamente conhecidas do público e aceitas por sua qualidade, seu preço etc. O franqueador (franchissor), além de oferecer a distribuição dos produtos, também assegura assistência técnica e informações continuadas sobre o modo de comercializá-los. Muitas vezes o franqueador concede, também, assistência financeira, já fazendo adiantamento para a instalação do franqueado (franchisee), já lhe garantindo certas operações para a obtenção de crédito bancário.
Inicialmente, o franchising era marcado apenas pela concessão de direitos de uso de marca e de comercialização de produtos ou serviços. “O suporte do franqueador a seus franqueados é bastante limitado, podendo incluir – ou não – algum apoio técnico ou financeiro. Em geral, apenas são definidos normas ou padrões de imagem e de comunicação” (VANCE; AZEVEDO; SILVA, 2012, p. 30). Nesta fase inicial, o franqueado tinha uma grande autonomia no timor do negócio e não havia uma cobrança de royaltes. A remuneração do franqueador era embutida nos produtos adquiridos pelo franqueado.
Contudo, não tardou muito para perceberem que mais do que uma cessão de uso da marca, a receita do sucesso envolvia também a transmissão da “fórmula”, ou seja, uma assistência técnica sobre as práticas comerciais e relacionamentos com diversos membros da cadeia de consumo, desde os fornecedores aos consumidores. Houve então uma redução dos riscos, pois, nesse novo modelo, ingressa-se verdadeiramente num sistema já testado e consolidado. Trata-se do business format franchising ou terceira geração.
Além de marca exclusiva, a franquia de formato de negócio requer que a empresa franqueadora forneça, ao menos, (1) um programa formal de treinamento, (2) um manual operacional, incluindo a descrição dos processos, das especificações técnicas e padrões de qualidade e (3) uma estrutura que dê apoio operacional ao franqueado e que monitore os padrões de imagem e de serviços da rede. (VANCE; AZEVEDO; SILVA, 2012, p. 32)
Trata-se do modelo de franchising mais comum, onde franqueador, que detém a marca e o know-how consolidados, licencia-os ao franqueado, viabilizando que esse implante o seu próprio negócio com assistência técnica e orientações dadas por aquele, que será remunerado através de royaltes.
É importante advertir que, apesar deste último modelo ou terceira geração contratual ser mais comum na prática de franchising; os anteriores, marcados pela concessão apenas do uso da marca e o know-how, com ou sem total exclusividade em determinada região, ainda são utilizados atualmente. Ademais, há novas gerações com sistemas mais avançados que contam, por exemplo, com um Conselho de Franqueados e disposições contratuais de recompra da unidade franqueada, na hipótese de não renovação do negócio jurídico3.
Delineadas suas características fáticas, é possível concluir pela sua classificação como um contrato bilateral, envolvendo o franqueador e o franqueado; consensual, uma vez que o negócio jurídico se consolida com a simples manifestação de vontade das partes, dispensando qualquer entrega efetiva de coisa; oneroso, devido à cobrança de taxa de filiação pelo franqueador para a concessão da franquia, e de execução continuada no tempo. Maria Helena Diniz (2013, p. 74) e Fábio Ulhoa Coelho (2013, vol. 1, p. 128) afirmam tratar-se de um contrato atípico.
Contudo, a característica da tipicidade ou atipicidade do contrato de franchising é um aspecto controverso. Há quem defenda a atipicidade ante a sua não exaustão na regulação da matéria. Segundo Coelho (2013, vol. 1, p. 128), trata-se de disclosure statute, que não regulamenta propriamente a relação jurídica, mas impõe o dever de transparência entre as partes. Para ele, o contrato de franchising não seria típico “porque a lei não define direitos e deveres dos contratantes, mas apenas obriga os empresários que pretendem franquear seu negócio a expor, anteriormente à conclusão do acordo, aos interessados algumas informações essenciais” (COELHO, 2013, vol. 1, p.129).
A Lei 8.955/94 apresenta, em seu artigo 3º, requisitos mínimos a serem observados na Circular de Oferta de Franquia, bem como o artigo 6º impõe alguns requisitos de validade para a celebração do contrato.
Malgrado o princípio da liberdade de formas, estampado no artigo 425 do Código Civil, que preceitua que as declarações de vontade podem ser feita dos mais variados modos, desde que “manifeste ao destinatário, de modo adequado e por ele inteligível, a vontade de concluir o contrato e o conteúdo que a este se tenciona dar” (ROPPO, 2009, p.96), Fran Martins (2010, p. 445) e Arnoldo Wald (2012, v. 3, p. 410) entendem tratar-se o franchising, de um contrato típico4, pois excepcionam o referido princípio ante a exigência de uma formalidade para a manifestação de vontade.
Antes de posicionar-se a respeito dessa controvertida questão da tipicidade ou atipicidade do franchising, faz-se necessária a imersão na formalidade mínima presente na lei especial e análise dos documentos elementares à celebração do contrato para, então, adotarmos um dos referidos posicionamentos.
2.1. OS DOCUMENTOS INDISPENSÁVEIS
Diversos sítios eletrônicos veiculam ofertas de franchising. Há inúmeros e para os mais diversos orçamentos: as que necessitam de mais de R$ 5 mil (cinco mil reais) (ZUINI, 2015) de investimento, outras apontadas como tendência (LAM, 2014) e até mesmo as que prometem um faturamento mensal superior a R$50mil (cinquenta mil reais) (ZUINI, 2014). Contudo, a celebração do negócio jurídico é plurifásico, envolvendo um período pré-contratual e a celebração do contrato, sem descuidar das implicações do pós-contrato.
O contrato de franchising é marcado por uma sucessão de atos, inaugurado pela Circular de Oferta de Franquia (COF). Não há uma fase preliminar especifica para as tratativas. Costumeiramente, os franqueadores tem um modelo pronto de COF5 que deverá atender os requisitos mínimos estampados no artigo 3º da Lei 8.955/94. Como em todas as negociações preliminares, o COF não vincula, sendo possível a negativa da contratação sem que isso implique num dever de indenizar a outra parte.
A ausência da obrigatoriedade da contratação não ilide a COF dos deveres de conduta emanados da boa-fé objetiva. Apesar do artigo 422 do Código Civil não versar sobre a probidade e a boa-fé na fase pré-contratual e na pós-contratual, o Enunciado nº 170 do Conselho da Justiça Federal amplia essa interpretação para abraçar as referidas etapas contratuais. A boa prática, atenta a essa omissão legislativa, aconselha a celebração de um termo anexo à COF que ponha a salvo dados confidenciais e exclusivos do franqueador eventualmente conhecidos pelo interessado em ser franqueado:
Ainda é uma fase sem compromisso, não se criando qualquer tipo de vínculo entre as partes. Contudo, o eventual franqueado terá acesso a dados exclusivos e confidenciais do franqueador, de forma que é aconselhável a assinatura de um anexo à COF (durante o processo de seleção), denominado Termo de Sigilo e Confidencialidade e Não Concorrência6 pelo Franqueado, na hipótese de não ser formalizado o Pré-Contrato ou o Contrato de Franquia. (VANCE; AZEVEDO; SILVA, 2012, p. 58)
Há que se advertir que o COF, apesar da sua natureza de contrato preliminar, não se confunde com o Pré-Contrato de Franquia. Esse sucede àquele em, pelo menos, 10 dias7 e é marcado pela estipulação de algumas obrigações pré-contratuais ao interessado em ser franqueado, a exemplo da “locação do ponto comercial, reformas, instalação, aquisição de estoque, a constituir uma pessoa jurídica para finalmente se firmar o Contrato de Franquia” (VANCE; AZEVEDO; SILVA, 2012, p. 58). Não é raro o franqueado exigir, ainda, cópia do contrato de locação ou do título de propriedade do ponto comercial a ser utilizado pelo futuro franqueador.
A relação jurídica entre o franqueador e o interessado em ser franqueado se perfectibiliza através do Contrato de Franquia que, segundo o artigo 6º8 da Lei de Franchising, deverá ser escrito e assinado na presença de 2 (duas) testemunhas, sendo válido independentemente do seu registro em cartório ou no órgão competente. Não há, na legislação brasileira, outra condicionante à celebração do contrato, devendo o instrumento ser registrado perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).
Ao revés do que acontece nos Estados Unidos e na França a lei brasileira é mais flexível, pois apresenta somente requisitos formais, nada versando sobre aspectos materiais do contrato de franquia. Segundo a Amended FTC Franchise Rule, nos Estados Unidos da América, para haver uma franchise, exige-se três elementos materiais: O direito do franqueado de operar um negócio identificado ou associado à marca do franqueador ou oferecer, vender e distribuir produtos, serviços e commodities identificadas ou associadas a este; a possibilidade do franqueador prestar assistência ou até mesmo exercer um controle sobre o método de operação do franqueado e, por fim, como condição para se tornar um franqueado e iniciar suas atividades, o interessado deverá se comprometer e pagar US$500,00 (quinhentos dólares) ou mais ao franqueador até seis meses antes do início das suas atividades (BAER, 2012).
A tipicidade mínima da lei brasileira de Franchising por um lado é positivo, pois confere maior autonomia contratual segundo os usos e costumes do ramo. Enquanto que o regime jurídico estadunidense somente admite duas formas contratuais específicas, trade and product franchising e business format franchising, e o francês restringe-se ao último, o ordenamento jurídico brasileiro viabiliza os quatro formatos ou gerações:
“as franquias de primeira e segunda geração se assemelham ao Trade and Product Franchising, com a ressalva de que nas franquias de primeira geração as unidades franqueadas representam canais alternativos de distribuição e não exclusivos como nas franquias de segunda geração. Por sua vez, da mesma natureza do Business Format Franchising, as franquias de terceira geração referem-se a um arranjo contratual mais complexo em que o franqueador tem por compromisso a transferência a seus franqueados do formato do negócio propriamente dito. Por fim, nas franquias de quarta geração (Learning Network Franchising), mais do que simples receptores de know-how, os franqueados passam a assumir uma posição de destaque na geração e inovação do conhecimento. Franqueador e franqueados compartilham entre si experiências e conhecimentos na operacionalização de suas respectivas unidades, atuando de forma conjunta no planejamento estratégico da rede, bem como nas atividades de tomada de decisão e de pesquisa e desenvolvimento”. (PRADO et al., 2012, p. 44)
Contudo, na mesma toada, o legislador pátrio deixou um largo espaço para abusos perpetrados por sujeitos inescrupulosos. Pontuou Baillieu, citado por Cretella Neto9, que o negócio jurídico de franchising pode ser extremamente bom aos seus interessados, porém é, infelizmente, terreno fértil para a prática de condutas desleais e fraudulentas.
A boa prática10 aconselha a adoção de uma série de cautelas na celebração de um contrato de franchising pelas partes envolvidas, seja através da análise da situação do franqueador, qualidade dos produtos, as imposições e o perímetro da exclusividade, como a investigação das aptidões do franqueado, capacidade em comercializar produtos e situação financeira (MARTINS, 2010, p.444), por exemplo.
Acrescente-se a esses a importância de maior atenção às regulamentações a respeito da propriedade intelectual envolvida no contrato de freanchising, bem como as suas consequências pós-contratuais, a fim de que o negócio jurídico não acabe construindo um monstro concorrencial para o franqueador nem vampiresco para os franqueados.
3. OS ATIVOS IMATERIAIS NO CONTRATO DE FRANCHISING
O contrato de franquia não é um simples instrumento. Trata-se de um contrato eclético, pois resultante de uma conjunção de pactos. O seu teor pode versar tanto sobre o uso de marca e transferência de tecnologia como exploração de patente, prestação de serviços de assistência técnica e científica, a depender da geração da franchising, sendo, por isso, registrável como contrato de transferência tecnológica perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).
Nos onze artigos da Lei 8.955/94, a marca e o know-how, importantes ativos imateriais envolvidos no contrato de franchising, recebem especial atenção no terceiro dispositivo, ao determinar quais as informações mínimas necessárias a serem fornecidas na Circular de Oferta de Franquia.
Dispõe o referido artigo que o franqueador deverá fornecer ao interessado em tornar-se franqueado uma Circular de Oferta de Franquia (COF), por escrito e em linguagem clara e acessível, contendo informações a respeito da situação das marcas ou patentes cujo uso será cedido perante o INPI, bem como da situação do franqueado, após a expiração do contrato de franquia, em relação ao know how ou segredo de indústria a que venha a ter acesso em função da franquia e a implantação de atividade concorrente da atividade do franqueador, dentre outras.
As marcas, historicamente, eram utilizadas para definir a propriedade do bem. Com a evolução da sociedade, elas foram alcançando novos objetivos e hoje concentram relevante parcela no valor de mercado de uma empresa. A marca é o cartão de visitas do produto ou serviço ao consumidor. É um elemento de atração do franqueado, que procurará investir numa marca forte, símbolo de um negócio consolidado e testado, e um importante ativo de um franqueador.
O Brasil, por questões de política legislativa, apenas reconhece como marca os sinais visualmente perceptíveis. A Lei de Propriedade Industrial não elenca outros requisitos legais para o seu registro como marca. Valeu-se o legislador pátrio da técnica de exclusão ao apontar, no artigo 124, os sinais não registráveis. Coube à doutrina enumerar o rol de requisitos.
É uma atecnia confundir marca com sinal. Além de obedecer todos os requisitos de validade11, para que o signo transforme-se em marca é necessário o seu registro junto ao órgão competente. O registro conferirá publicidade à apropriação com presunção juris et de jure, ou seja, de tal forma que não é admissível a alegação por terceiros de desconhecimento da exclusividade do sinal.
A função principal da marca é distinguir um produto ou serviço de outro afim comercializado no mesmo seguimento empresarial. Negar a importância desse aspecto vai de encontro à própria legislação nacional e internacional sobre o assunto, pois tanto a Lei de Propriedade Industrial, em seu artigo 122, como o acordo TRIPS12 são de uma clareza cristalina ao erigir, como objetivo principal da marca, a distinção.
Porém, à medida que o signo diferencia o produto ou serviço ao qual se vincula dos demais comercializados, ele também orienta o consumidor. Quanto melhor a imagem da marca, mais consumidores serão atraídos por ela, comprando os produtos ou contratando serviços aos quais é vinculada e, com isso, ela atrairá valores à empresa. Uma boa marca não é só importante para diferenciar, mas também para atrair investidores, que não apostarão em empresas pouco expressivas. A marca tem, portanto, uma função econômica, pois também funciona como um atrativo a novos investimentos. A sua importância é inegável.
Ademais, o contrato de franchising pode envolver, além da comercialização de produtos marcados pelo franqueador, a transferência do formato do negócio, o know-how ou savoir faire, conceituável como “informações, conhecimentos técnicos, práticas, experiências e outros elementos de um processo especial de fabricação de produtos ou atividades especializadas, com vistas ao aproveitamento por outros industriais ou interessados” (RIZZARDO, 2011, p. 1377). Segundo Isabel Vianna Vaz:
Num outro sentido, além das práticas ligadas ao setor produtivo, podem-se incluir no conceito de know-how segredos industriais, tais como um sistema contábil, um modo de organizar a venda, uma lista de clientes, ou outras formas de procedimentos destinados à obtenção de resultados na comercialização de produtos. (1985, p. 108)
O know-how consiste em um bem imaterial, compostos por uma série de elementos, “até mesmo corpóreos, como no caso em que a transferência desse bem se faz através de desenhos e gráficos que configuram o modo de procedimento” (MARTINS, 2010, p. 453), cujo conhecimento não é facilmente acessado por qualquer indivíduo. A sua proteção, no ordenamento jurídico brasileiro, ocorre através da tipificação como crime de concorrência desleal13 de uma série de condutas que atentem contra uma de suas características elementares: o segredo. Não se registra o know-how, pois isso lhe conferiria publicidade. Conhecimento registrado não é know-how, mas, sim, invenção patenteada.
A necessidade de previsão no COF a respeito da situação do franqueado, depois de extinto o contrato, a respeito do know-how adquirido é uma das variantes decorrentes da preocupação do legislador com a concorrência desleal. Seria muito fácil adquirir todo o conhecimento necessário, extinguir o contrato e, logo em seguida, montar um negócio próprio em concorrência direta com o anterior. Segundo Arnaldo Rizzardo14, esse é um dos atos comuns de violação do segredo industrial.
A lei de Franchising não impede de forma explícita a ocorrência desse fenômeno, tampouco estipula um prazo mínimo entre o encerramento das atividades do franqueado para início, no mesmo ponto comercial, de uma atividade própria similar à da franquia anteriormente desempenhada. No entanto, não é porque a lei é silente nesse aspecto que o franqueador e o franqueado não devam atentar para isso.
O contrato de franchising é um contrato comercial e como tal, segundo os ensinos de Carlos Alberto Bittar, seu regime jurídico compõem-se de normas de ordem pública, disposições codificadas e de diplomas apartados do código, normas de cunho administrativo e ético, orientações jurisprudenciais e doutrinária, bem como “prescrições ditadas pela vontade das partes, dentro do poder reconhecido às pessoas para a auto-regulação de suas relações negociais, respeitados sempre os limites próprios” (BITTAR, 1990, p.05).
Malgrado o franchising desponte como uma prática facilitadora do empreendedorismo, não é interessante ao franqueador nem ao grupo de franqueados que ocorra a autofagia, ou, em outras palavras, que um franqueado comece um processo de concorrência direta interna. Nesse sentido, vislumbra-se como necessária a disciplina contratual da concorrência.
Em geral, o COF ou o contrato de franchising envolve uma previsão a respeito da vedação à concorrência na fase pós-contratual, impedindo o franqueado de exercer a mesma atividade em concorrência direta ao antigo franqueador. Trata-se de um dispositivo semelhante ao utilizado em alienação de estabelecimento empresarial, nessa hipótese chamada de cláusula de não restabelecimento, bem como em contratos de locação de loja em shopping center.
Contudo, a validade dessa vedação à concorrência antinegocial é condicionada principalmente à preservação da ordem econômica e da livre concorrência. Fábio Ulhôa Coelho (2013, vol. 1, p. 251-252) orienta a definição de limites materiais, temporais e espaciais de tal forma que não restrinjam o desempenho de qualquer atividade econômica ou do exercício da profissão, não eliminem completamente a competição e tampouco viabilizem condutas desleais ou infração à ordem econômica.
Apesar da autonomia negocial inerente aos negócios disponíveis, aconselha-se que a fixação do tempo seja condizente à prática do ramo mercadológico, dimensão e objeto do negócio, num espaço físico coerente ao estudo geográfico de mercado, para restringir a atividade empresarial dentro dos limites em que foi efetivamente desempenhada.
Ainda que a autonomia da vontade consista no “poder concedido ao sujeito para criar a norma individual nos limites deferidos pelo ordenamento jurídico” (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p.141-142), há que se interpretar a franchising à luz de um direito civil constitucionalizado. Não é porque o franqueador assim previu, na COF ou no contrato, que necessariamente se dará na prática. Repise-se que o contrato de franchising, em todas as suas fases, é de adesão, o que corrobora a necessidade de se perquirir a sua finalidade em detrimento da letra fria.
O querer, hoje, já não é o único elemento que vincula. A vontade não foi descartada do suporte fático contratual, porém, agora, ela é acrescida ao atendimento de interesses dignos de tutela, que não se restringem aos individuais. Nessa linha, defende-se como necessária a proteção à concorrência antinegocial na medida em que tenha havido efetiva transferência dos bens jurídicos tutelados.
Um negócio onde o franqueador se restringe a transferir a sua marca e decoração, sem, no entanto, conferir qualquer suporte técnico ou conhecimento específico, de administração e gerência, numa geração de franchising em que isso é necessário, deslegitima qualquer medida judicial em face do franqueador dissidente que eventualmente continue exercendo a mesma atividade posteriormente à extinção do contrato, ainda que exista vedação contratual ou previsão na COF nesse sentido.
Deve-se ter em mente que o contrato não pode mais ser interpretado somente como um instrumento de realização dos interesses dos contratantes isoladamente considerados, mas, sim, das finalidades traçadas pelo ordenamento jurídico (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p.144). Um contrato de franchising que não atende a sua real finalidade não merece proteção sob os auspícios da legislação específica, devendo ser interpretado como um contrato de licença de uso de marca ou até mesmo de licença de know-how, à luz da Lei 9.279/96. Do contrário, haveria a legitimação de um abuso contratual15.
Ademais, repise-se que a proteção à marca não diz respeito somente ao interesse do seu particular, mas de toda a comunidade, ante os seus escopos distintivo, publicitário, consumerista e econômico16. Assim, a proteção à propriedade intelectual envolvida no contrato de franchising mostra-se de assaz importância, apesar da usual leitura rasteira dos seus dispositivos e da pouca reflexão das suas implicações na fase pós-contratual.