Em 2005, a Lei 11.160 revogou os incisos VII e VIII do artigo 107 do Código Penal, que previam o casamento do estuprador com sua vítima como causa extintiva da punibilidade. A redação dos incisos revogados era a seguinte:
Art. 107 – Extingue-se a punibilidade:
[…]
VII – pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código;
VIII – pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração;
Os crimes contra os costumes, contemporaneamente denominados crimes contra a dignidade sexual, são, resumidamente, estupro, prostituição, tráfico de pessoas e outros relacionados com a violência sexual, que coloca a vítima em uma posição de não consentimento.
Considerando que os crimes contra a dignidade sexual sempre foram, historicamente, crimes cometidos por homens contra mulheres, como o estupro, a previsão da extinção de punibilidade pelo casamento legitimava a dominação masculina e o enquadramento da mulher como propriedade do homem. Da mulher era exigida pureza e virgindade, sem esses atributos ela não seria aceita para o casamento – e não se admitia que a mulher deixasse de casar, pois os papéis que ela poderia assumir na sociedade eram todos relacionados aos afazeres domésticos e cuidados com a família. Assim, uma mulher solteira era um fardo social.
Dessa forma, oferecia-se ao agressor sexual uma forma socialmente interessante de expiar sua pena: o casamento com a vítima. Esse casamento, no entanto, acontecia geralmente sem que o consentimento da vítima fosse levado em consideração, pois a mulher era compelida por sua própria família a contrair matrimônio com seu agressor para que a sua honra não ficasse maculada – e, consequentemente, nem a honra familiar.
Apenas em 2005, a norma penal deixou de admitir o casamento do agressor com sua vítima como uma forma de extinção de punibilidade, considerando a dignidade sexual como um direito fundamental de toda pessoa. Contribuiu para essa mudança a conquista de alguns direitos igualitários pelas mulheres e da atuação do movimento feminista para que as mulheres pudessem assumir papéis sociais que não se resumissem à função doméstica ou materna.
Porém, a Lei 11.160/2005 revogou tão somente os dispositivos do Código Penal, deixando de alterar o artigo 1.520 do Código Civil, que decorria exatamente da possibilidade de extinção de pena pelo casamento. A previsão normativa do diploma civil é ainda mais incômoda do que a admissão de que qualquer pena seja remida pelo casamento – ela trata da possibilidade de remissão de pena em caso de estupro de adolescentes, inclusive do estupro de vulnerável.
O texto civil permite o casamento voluntário apenas por maiores de 16 anos, com apenas duas exceções: em caso de gravidez da jovem menor de 16 e em casos que o casamento servirá para extinguir a pena de um dos nubentes. Como a proposta deste artigo foi alinhar a norma civil com a norma penal, o dispositivo tinha justificativa no ordenamento jurídico até 2005, quando da revogação dos incisos VII e VIII do artigo 107 do Código Penal. Sua manutenção depois disso, no entanto, requer a reflexão dos motivos que sustentam a permissão do casamento de adolescentes com seus agressores sexuais.
O permissivo do artigo 1.520 autoriza até mesmo o casamento de crianças com seus estupradores, haja vista a ausência de imposição de idade mínima para o enquadramento na exceção. Assim, mesmo em se tratando de estupro de vulnerável, quando o consentimento é considerado impossível pela legislação, o casamento entre vítima e agressor estaria autorizado – mesmo que o consentimento não fosse exarado, por ser inadmissível.
Existem projetos de lei que objetivam a revogação expressa desse disposto no artigo 1.520 do Código Civil. O Projeto de Lei 7.787 de 2010, originado do Projeto de Lei do Senado 516 de 2009, está aguardando parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, estando tramitando há aproximadamente sete anos sem sequer ter obtido parecer de todas as comissões para as quais será enviado. Assim, resta vigente o incômodo dispositivo do Código Civil, que, no entanto, precisa ser interpretado à luz do ordenamento jurídico como um todo.
Se o permissivo civil para o casamento de menores de 16 anos tem como amparo a extinção da punibilidade do agressor sexual, isso significa que ele só poderá ser autorizado por essa justificativa. A partir do momento em que o Código Penal veda tal extinção da punibilidade, não há sentido normativo lógico para permitir o casamento de adolescentes com seus estupradores, uma vez que o ato não mais servirá para os fins antes pensados pelo legislador civil.
É preciso refletir sobre os motivos que levam à permanência do artigo 1.520, com seu conteúdo original, no Código Civil. Em uma perspectiva de proteção à mulher, histórica vítima de crimes sexuais, sugerir o casamento entre agressor e vítima é manter essa última em uma esfera de culpabilização. A exigência da virgindade e da pureza para que mulheres sejam consideradas dignas é um tradicional traço heteronormativo de opressão e submissão que não mais podem ser admitidas na sociedade do século XXI. Considerar que a mulher possa ser responsabilizada pelo crime sexual é culpabilizar a vítima e imputar ao feminino a responsabilidade pela sedução, excusando o masculino pela ausência de controle de seus instintos. Admitir que o homem que cometa tal crime possa redimir-se com o casamento é objetificar a mulher a ponto de considerar que ela não possua liberdade sexual nem vontade definida, além de ratificar a regra heteronormativa de que a mulher, sem casar-se, não possui papel definido na sociedade (ou não cumpre seu papel mais relevante).
Também precisamos analisar a questão do ponto de vista da proteção à criança. A norma civil sugere que é tolerável autorizar o casamento entre uma criança e um adulto, nas condições especificadas no artigo 1.520 do Código Civil, ou seja, quando o adulto violentou sexualmente a criança ou a engravidou. Em uma análise extensiva e complexa do ordenamento jurídico brasileiro, principalmente em se considerando a proteção que o estado deve conferir à criança e ao adolescente, tal admissão beira ao absurdo.
Porém, a demora em se revogar o dispositivo do Código Civil leva à reflexão de que a sociedade contemporânea ainda mantém os valores patriarcais heteronormativos que submetem mulheres a uma vida de privações quanto à manifestação de suas vontades e de culpabilizações por qualquer conduta, inclusive quando vítimas de crimes sexuais, já que, para elas, não existe liberdade ou dignidade sexual.