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Violência de gênero, feminicídio e direitos humanos das mulheres

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29/04/2017 às 09:23
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4  TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Normalmente, todo ser humano busca ser respeitado e considerado pelos demais, e pela sociedade em que vive. Os valores morais, como forma de designar o bem e o mal, é requerido pela sociedade. Naturalmente, de acordo com as diferentes culturas, as noções de moral podem ser diferentes, porém, alguns conceitos são fundamentais a todos os homens.

A liberdade pessoal é indispensável, fundamental e necessária para todos e em tudo o que é moralmente lícito.

O Estado tem o direito de vigiar, de exercer o poder de polícia, e o dever de promoção, garantindo a liberdade de pensamento e por conseqüência da própria liberdade pessoal.

Por força constitucional, a pessoa humana tem que conviver, com liberdade e autonomia de organização, como pressuposto e garantia da liberdade de expressão, de cátedra, de pluralismo de ideias, de liberdade das artes e ciências, dentro de padrões morais e éticos que respeitem a dignidade do homem e, como diz João Paulo II, na Encíclica Centesimus Annus, “que respeitem o seu direito de amadurecer a sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade.” Só assim se poderão preparar homens para construir uma sociedade mais justa.

Devido à indivisibilidade dos direitos humanos, a violação aos direitos econômicos, sociais e culturais propicia a violação aos direitos civis e políticos, uma vez que vulnerabilidade econômica-social leva à vulnerabilidade dos direitos civis e políticos. Acrescente-se ainda que este processo de violação dos direitos humanos alcança prioritariamente os grupos sociais mais vulneráveis.

Para a consolidação da Democracia, torna imprescindível a construção de um novo sistema político-econômico, que seja capaz de assegurar um desenvolvimento sustentável, mais igualitário e democrático, nos planos local, regional e global.

Interessante observar a lição de Hanna Arendt, citada por Flávia Piovesan (2000, p. 90), que definiu a “cidadania como o pertencimento a uma comunidade disposta e capaz de lutar pelos direitos de seus integrantes, como o “direito de ter direitos”.

Infelizmente, devido a não existência de uma cidadania internacional, os direitos humanos não encontram amparo no mundo globalizado, que dita suas próprias regras, aumentando a população excluída, com o aumento crescente da pobreza.

Vivenciamos tempos cada vez mais marcados pela relação entre Estados, regiões e instituições internacionais, havendo, então, a urgente necessidade de se aperfeiçoar as normas vigentes nos Estados, a nível nacional e internacional, de forma a fazer valer os princípios fundamentais da dignidade humana, dentre os quais o respeito aos direitos humanos e a democracia se apresentam como única alternativa de justiça para que esse mundo cada vez mais globalizado, atenda às necessidades dos povos, incluindo e não marginalizando.

O primeiro passo parece que já está sendo dado: mediante o reconhecimento de que o processo de globalização trouxe diversos aspectos positivos, não se contava com tantos efeitos negativos. É necessário haver uma atenuação de tais efeitos em curto prazo, a fim de garantir que as gerações futuras não sofram ainda mais prejuízos com uma política econômica que não se sintoniza a direitos fundamentais há muito reconhecidos.

Ao proclamar os direitos humanos para todas as pessoas, estabelecendo-os como uma meta a ser atingida por todos os povos e todas as nações, a Declaração Universal dos Direitos Humanos se manifesta como um avanço no tratamento universalizante das questões relacionadas aos direitos humanos e às suas violações.

Através da Declaração o discurso dos direitos humanos toma forma e conteúdo mais precisos, passando a ser cada vez mais representativo nos âmbitos político e jurídico. Por discurso de direitos humanos entende-se todo o conjunto de instrumentos, técnicas, princípios e normas que, tanto na esfera política como na esfera jurídica, possibilitam modificar a realidade existente para a constituição de uma nova, possibilitando que as relações entre as pessoas e entre estas e os Estados ocorram racional e pacificamente.

A Declaração dos Direitos Humanos fundamenta-se no 'reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis' e tendo esse reconhecimento como 'fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo' (preâmbulo).

Nuances remotas da Declaração da ONU de 1948 são encontradas, de um lado, no direito internacional e no direto humanitário dos séculos XVIII e XIX e, de outro em dois documentos relacionados, um ao processo histórico de mudança de poder da França e o outro, à instituição de poder ligada à formação do Estado norte-americano, a saber, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776.

A Declaração Francesa veio afirmar como dado aspectos culturais que ainda deveriam ser construídos, qualificando como direitos naturais a liberdade, a propriedade e a igualdade em direitos. Tais direitos não eram, de fato, naturais, e eram acessíveis a uma minoria, posto que a estruturação da sociedade em estamentos apenas acabara de ser abolida.

Diferentemente da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se estende a todas as pessoas, mas sem originariamente caráter vinculante, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 integra o direito positivo francês - vigorando até a atualidade, ao lado da Constituição francesa.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, como observa Eric Hobsbawn (1996, p. 20): “é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios da nobreza, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária”.

Para Hobsbawn (1996), as intenções que nortearam a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão se diferenciam em sentido e extensão da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas, uma vez que o texto escrito se desprende de seu contexto, hoje vemos a Declaração Francesa de 1789 adequando-a ao nosso tempo.

A Declaração Francesa, a Declaração de Direitos da Virgínia e a Declaração de Independência Americana foram importantes para o desenvolvimento dessas idéias especialmente dentro dos Estados, porém o mesmo não ocorre de maneira direta para o direito internacional dos direitos humanos. A origem da proliferação dos documentos internacionais de proteção de direitos humanos está, principalmente, nos tratados internacionais bilaterais e multilaterais para a abolição da escravatura e do comércio de escravos, assim como nas normas de direito humanitário para o banimento de armas cruéis e para a salvaguarda de prisioneiros de guerra, de feridos e de civis. (Lewandowski, 1984)

Segundo Piovesan (2000), as normas de Direito Humanitário começam a surgir no século XIX, para disciplinar o tratamento das vítimas em conflitos armados, a proteção humanitária aos militares postos fora de combate (feridos, doentes, náufragos, prisioneiros) e às populações civis.

A Liga das Nações, materializada no Tratado de Versalhes, de 28 de junho de 1919, ao final da Primeira Guerra Mundial, abriu caminho para a proteção, de forma mais ampla, aos direitos de pessoas, prevendo, também, o direito de petição à Liga, reconhecido às populações dos Estados membros. (Truyol y Serra, 1977)

Este é o período a partir do qual o direito internacional deixa de ter por objeto, com poucas exceções, a relação somente entre Estados, passando a tratar, também, das pessoas e de seus direitos relacionados à dignidade humana. Observa-se, entretanto, que os tratados sobre minorias celebrados sob a égide da Liga das Nações eram impostos seletivamente, em especial sobre nações derrotadas em guerras e sobre Estados recém criados ou ampliados. Tais documentos não previam normas gerais impondo o respeito às minorias também por parte dos Estados com maior poder, assim como não asseguravam respeito às pessoas que não pertenciam às minorias especificadas ou maioria da população.

Com a criação da Organização das Nações Unidas — ONU, na Carta de São Francisco, em 1945, a proteção e promoção internacionais dos direitos humanos se converte em princípio jurídico de direito internacional. A Carta de São Francisco ou Carta das Nações Unidas consiste em tratado internacional, vinculando juridicamente, portanto, todos os Estados que fazem parte da ONU. Desse modo, todos os Estados membros devem dar cumprimento ao princípio do "respeito universal aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção por motivos de raça, sexo, idioma ou religião".

De fato, o artigo 1º da Carta coloca como propósitos das Nações Unidas, "conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais", sem qualquer distinção. Tratam da questão da proteção e promoção dos direitos humanos o artigo 1º, itens 2 e 3, artigos 13, 55 e 56.

A importância dada pela Carta à matéria é revelada com especial força no artigo 55, que vem vincular o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e liberdades fundamentais como necessário à criação de condições de estabilidade e bem-estar, que, por sua vez, são necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as nações, estando tais relações fundadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos.

 A Declaração dos Direitos Humanos trouxe a valiosa contribuição de tornar a promoção desses direitos um objetivo da ONU e, sobretudo, expande a relação entre os Estados e seus habitantes para esfera internacional.

O detalhamento de direitos humanos, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos traz, constitui a primeira iniciativa de enumeração de direitos humanos no âmbito do direito internacional e institui, sobretudo, como aponta Flávia Piovesan (2000, p. 156):

(...) extraordinária inovação, ao conter uma linguagem de direitos até então inédita .... Ao conjugar o valor da liberdade com o valor da igualdade, a Declaração demarca a concepção contemporânea de direitos humanos, pela qual esses direitos passam a ser concebidos como uma unidade interdependente e indivisível.

A Declaração expressa, a um só tempo, o discurso liberal dos direitos civis e políticos, nos artigos 3º a 21, com o discurso social dos direitos econômicos, sociais e culturais, nos artigos 22 a 28, que demonstram-se essencialmente necessários para que direitos civis e políticos possam ser realmente efetivos.

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Os direitos humanos, nos dizeres de José Afonso da Silva (1994, p. 166):

(...) são históricos, como qualquer direito. Nascem, modificam-se e desaparecem. Eles apareceram com a revolução burguesa e evoluem, ampliam-se com o correr dos tempos. Sua historicidade rechaça toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do homem ou na natureza das coisas.

A dimensão histórica dos direitos humanos relaciona-se à noção de pessoa, em sua concreção social e histórica.

Quanto à importância da cultura para a construção dos direitos humanos, Boaventura de Souza Santos (1997, p. 112) propõe uma concepção multicultural de direitos humanos. O autor observa que:

(...) concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado — uma forma de globalização de cima-para-baixo. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização de-baixo-para-cima ou contra-hegemônica, os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como multiculturais. ... O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem que ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como soma de indivíduos livres.

Sobre essa questão, Boaventura de Sousa Santos prossegue, alertando que:

(...) contra o universalismo uniformizante deve se proceder a ‘diálogos interculturais’ sobre ‘preocupações isomórficas’, de forma a se buscar por "valores ou exigências máximos” e não por valores ou exigências mínimos. A advertência freqüentemente ouvida hoje com novos direitos ou com concepções mais exigentes de direitos humanos é uma manifestação tardia da redução do potencial emancipatório da modernidade ocidental à emancipação de baixa intensidade, possibilitada ou tolerada pelo capitalismo mundial. Direitos humanos de baixa intensidade como o outro lado de democracia de baixa intensidade. (SANTOS, 1997, p. 114)

O estabelecimento de um verdadeiro diálogo intercultural voltado à conjunção dos valores máximos de cada cultura permitirá a construção de um discurso dos direitos humanos hábil a implementar a efetividade da dignidade humana, conferindo conteúdo material aos direitos previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Tecnicamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma recomendação, que a Assembleia Geral das Nações Unidas faz aos seus membros (Carta das Nações Unidas, artigo 10). Nesta condição, costuma-se sustentar que o documento não tem força vinculante. Por essa razão, a Comissão de Direitos Humanos concebeu-a, originalmente, como etapa preliminar à adoção de um pacto ou tratado internacional sobre o assunto.

Entretanto, hoje devemos reconhecer que a vigência dos direito humanos independe de sua declaração em constituições, leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não. A doutrina jurídica contemporânea distingue os direitos humanos fundamentais, na medida em que estes últimos são justamente os direitos humanos consagrados pelo Estado como regras constitucionais escritas, inclusive no âmbito do direito internacional.

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Sobre a autora
Karla Cuellar

bacharel em Direito Especialista em Direito Público e DPC Mestre em Direitos Fundamentais Doutora em Direito Público advogada e professora Universitária

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUELLAR, Karla. Violência de gênero, feminicídio e direitos humanos das mulheres. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5050, 29 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56827. Acesso em: 5 nov. 2024.

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