Capa da publicação Fundamentos teóricos para uma nova atuação do Poder Judiciário no pós-Segunda Guerra
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Fundamentos teóricos para uma nova atuação do Poder Judiciário no pós-Segunda Guerra.

Princípios da supremacia constitucional, do neoconstitucionalismo, do Estado democrático de direito e da separação dos poderes

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3. Estado Democrático de Direito

O conceito de Estado de Direito surgiu como a expressão jurídica da democracia liberal, que não sobreviveu sem ter sido objeto de debates de sua sintonia para com a sociedade democrática após a superação do liberalismo. Nesse período, também poder-se-ia falar de Estado Liberal de Direito, cujas características pairavam na submissão ao império da lei, a divisão de poderes e o enunciado e garantia dos direitos individuais, sendo essas, em verdade, grandes conquistas da civilização liberal (SILVA, 2001, p.116-117).

Porém, houve concepções deformadoras de seu conceito, em razão de sua plurissignificância, como também polissêmico é a própria idéia que se tem do Direito. Por essa razão Carl Schmidt foi levado a assinalar que a expressão “Estado de Direito” pode ter tantos significados distintos como a própria palavra “Direito” e designar tantas organizações quanto as que se aplica a palavra “Estado”:

Assim, acrescenta ele, há um Estado de Direito feudal, outro estamental, outro burguês, outro nacional, outro social, além de outros conformes com o Direito natural, com o Direito racional e com o Direito histórico. Disso deriva a ambiguidade da expressão Estado de Direito, sem mais qualificativo que lhe indique conteúdo material (SILVA, 2001, p.117).

Nestes casos, adotou-se comumente a concepção formal desposada também por Forsthoff, que leva à ideia de um Estado de Justiça, cuja matriz se encontra no conceito hegeliano do Estado Ético; porém que nada tem a ver com Estado submetido ao Poder Judiciário, que é um elemento importante do Estado de Direito (SILVA, 2011, p. 117). É também incompleto, e portanto incorreto, confundir o Estado de Direito com a idéia de Estado Legislativo ou de Legalidade, muito embora o princípio da legalidade constitua importante elemento do conceito de Estado de Direito, porém nele não se realizando completamente. Também Kelsen, num sincretismo entre Estado e Direito, fez parecer que todo Estado necessariamente seja Estado de Direito, concepção essa que vai mais ao encontro da idéia de mero Estado Legal. A seguir, muitos estados afirmaram se constituir em estados sociais de direito, cujo conceito também não é unívoco, abarcando estados tanto quanto diferentes entre si num mesmo rótulo, sendo lícito elencar a Alemanha nazista, a Itália facista, a Espanha franquista, Portugal salazarista, a Inglaterra de Churchill e Attlee, a Quarta República Francesa e o Brasil Varguista; o que fez Paulo Bonavides concluir “que o Estado social se compadece com regimes políticos antagônicos, como sejam a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo” (BONAVIDES, 1996, p. 205-206). Daí Forsthoff afirmar que Estado de Direito e Estado Social não podem fundir-se no plano constitucional. Exsurge, daí, que “o Estado de Direito, quer como Estado Liberal de Direito quer como Estado Social de Direito, nem sempre caracteriza Estado Democrático” (SILVA, 2001, p. 121), de vez que este se funda no princípio da soberania popular, visando a realizar o princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana. O Estado Democrático, conforme ensina Dalmo de Abreu Dallari, funda-se em torno de três pontos fundamentais: a) supremacia da vontade popular; b) preservação da liberdade; e c) igualdade de direitos (DALLARI, 1989, p. 128); isto é, vinculado à democracia, é informado pelos princípios da maioria, da igualdade e da liberdade.

Mas o Estado Democrático de Direito vai além da coadunação formal dos conceitos de Estado Democrático e de Estado de Direito, significando na verdade a criação de um novo conceito, que inclui os conceitos dos elementos componentes, indo, porém, mais além.

A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício. É um tipo de Estado que tende a realizar a síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para configurar um Estado promotor de justiça social que o personalismo e o monismo político das democracias populares sob o influxo do socialismo real não foram capazes de construir (...) O certo, contudo, é que a Constituição de 1988 não promete a transição para o socialismo com o Estado Democrático de Direito, apenas abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana (SILVA, 2001, p. 123-124).

Dirley da Cunha Jr. (2014, p. 420) entende o Estado Democrático de Direito como a síntese de um movimento tendente a orientar o Estado de Direito a realizar os postulados da Democracia, sendo portanto um Estado Constitucional submetido à Constituição e aos valores humanos nela consagrados.


4. Princípio da Separação dos Poderes

Ao Barão de Montesquieu se atribui a sofisticação do princípio da separação dos poderes, embora se reconheça a primazia a Aristóteles, em sua obra Política, que, ao construir sua teoria política a partir do exame de várias constituições concretas, distinguiu a assembleia geral (deliberação), o corpo de magistrados (mando) e o corpo judiciário (julgamento), propugnando por uma constituição mista como a melhor de todas, de vez que só ela tem em conta, ao mesmo tempo, as várias partes constitutivas da sociedade, isto é, os vários grupos ou classes sociais, os ricos e os pobres (CARVALHO, 2001, p. 105).

Ainda na História das Idéias Políticas, Locke e Bolingbroke formularam uma teoria da separação de poderes a partir da realidade constitucional inglesa, apontando Locke, em seu Segundo tratado do governo civil, para a existência de três poderes, o Legislativo, o Executivo e o Federativo, não se olvidando da existência de um quarto poder, que consiste na “Prerrogativa, que compete ao monarca, para a promoção do bem comum, onde houver omissão ou lacuna da lei (the Power of doing public good without a rule)” (CARVALHO, 2001, p. 105).

O que Locke e a Inglaterra ofertaram para o aprofundamento temático de Montesquieu foi a tripartição equilibrada do poder. Hoje, estamos convencidos – quanto mais lemos os autores modernos – de que, em matéria de Direito, pouco se acrescentou ao que os romanos criaram; e, em matéria de Filosofia, pouco se acrescentou ao que os gregos desvendaram. Qualquer filósofo posterior, como Poíbio, que era também historiador, passando por Hume, Hobbes, Locke, Bacon, Maquiavel – historiador, filósofo, político e sociólogo –, Rosseau e outros, traz pequena contribuição ao pensamento universal descortinado pelos gregos. Tenho a impressão de que depois dos gregos pouca coisa se pôde criar. Criaram-se variações inteligentes, mas o tema central de Filosofia se encontra na Grécia e o do Direito em Roma. Ora, com a tripartição equilibrada de poderes de Montesquieu, chega-se à discussão do sistema de governo, já a esta altura, após a Revolução Francesa, eliminando-se de vez a possibilidade de se discutir a permanência de monarquias absolutas. (MARTINS, 1990, p. 187).

Paulo Bonavides (1997) faz menção também a Marsílio de Pádua no Defensor Pacis, onde já percebera a natureza das distintas funções estatais; como também à Escola de Direito Natural e das Gentes, com Grotius, Wolf e Puffendorf, pela qual se fala em partes potentiales summi imperii, que se aproxima bastante da distinção estabelecida por Montesquieu. “Em Bodin, Swift e Bolingbroke a concepção de poderes que se contrabalançam no interior do ordenamento estatal já se acha presente, mostrando quão próximo estiveram de uma teorização definida a esse respeito” (BONAVIDES, 1997, p. 136).

No capítulo VI do Livro XI de seu O Espírito das leis, denominado “Da Constituição de Inglaterra”, o barão de Montesquieu et de La Bréde trata do princípio da separação dos poderes, no qual ele acrescenta a função judicial (sem, no entanto, mencionar o termo poder judiciário) às já conhecidas funções legislativa e executiva. Charles-Louis de Secondat ainda acrescenta a essencialidade de se garantir a edição das leis e sua execução, “de modo que fiquem orgânica e pessoalmente separadas, pois só assim será preservada a supremacia da lei ou um regime de legalidade, como condição de liberdade e de segurança do cidadão” (CARVALHO, 2001, p. 106).

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Montesquieu formulou ainda a técnica do equilíbrio dos três Poderes, distinguindo a faculdade de estatuir da faculdade de impedir, em razão da dinâmica dos Poderes, antecipando assim a noção da técnica dos freios e contrapesos (checks and balances): o veto utilizado pelo Executivo é um exemplo da faculdade de impedir ou frear proposta legislativa (CARVALHO, 2001, p. 106).

Benjamin Constant, por seu turno, também teorizará sobre a separação dos poderes, apregoando para uma quíntupla divisão, pela qual haveria o poder real, o poder executivo, o poder de representação da continuidade, o poder de representação da opinião e o poder de julgar.

Não sendo o princípio da separação dos poderes prévio à Constituição, senão uma construção a partir desta, este princípio ganhou consistência no século XVIII como contrabalanço ao absolutismo monárquico, que deu unificação política ao estado soberano do século anterior, sucedâneo que foi este à sociedade medieval dispersada. Porém, o advento da burguesia e da empresa capitalista não poderiam se compatibilizar com as práticas absolutistas de intervencionismo estatal, que deveria ceder lugar à liberdade nas ordens econômica, social e política. Daí o brado do Laissez-faire! Daí também a correlação do princípio da separação dos poderes com o estado liberal, que passou a executar tal princípio como um dogma seu, chegando os franceses a declararem, no artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que “Toda sociedade em que a garantia dos direitos não esteja assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição” (CARVALHO, 2001, p. 106).

O princípio da separação dos Poderes, como se verificou, tem raízes históricas, pois foi elaborado e alcançou expansão numa época em que se buscava preservar os direitos individuais, mediante a limitação do poder político, que, ao se abster, concorria para o exercício da liberdade: a um mínimo de Estado corresponderia um máximo de liberdade.

Se, contudo, aceitarmos a tese de que o poder do Estado é uno, não podemos falar em separação de Poderes. Devemos aceitar o fenômeno, isto sim, da separação ou distribuição de funções desse Poder uno.

É que, na realidade, a cada órgão ou complexo de órgãos corresponde uma função estatal materialmente definida. E tais funções são: função legislativa, função executiva e função jurisdicional. (CARVALHO, 2001, p. 106).

Montesquieu apontava para a inexistência de hierarquia entre os Poderes do Estado, o que diverge do pensamento de autores como Locke e Rousseau, para os quais haveria a supremacia do Poder Legislativo, tese que sustentou, por muito tempo, o princípio da supremacia do parlamento, muito presente no constitucionalismo moderno europeu, mais precisamente durante a sub-fase do constitucionalismo liberal, que sucedido pelo constitucionalismo social, viu perder a preponderância do poder legislativo para o poder executivo.

Também Loewenstein formulou sua divisão tripartite das funções estatais, denominando-as de policy determination, policy execution e policy control, nas quais se encontra o ponto principal do regime constitucional.

Um sistema de governo composto por uma pluralidade de órgãos requer necessariamente que os vários centros do poder seja pautado por normas de lealdade constitucional (Verfassungstreue, na terminologia alemã). A lealdade institucional compreende duas vertentes, uma positiva, outra negativa. A primeira consiste em que os diversos órgãos do poder devem cooperar na medida necessária para realizar os objetivos constitucionais e para permitir o funcionamento do sistema com o mínimo de atritos possíveis. A segunda determina que os titulares dos órgãos do poder devem respeitar-se mutuamente e renunciar a prática de guerrilha institucional, de abuso de poder, de retaliação gratuita ou de desconsideração grosseira. Na verdade, nenhuma cooperação constitucional será possível, sem uma deontologia política, fundada no respeito das pessoas e das instituições e num apurado sentido da responsabilidade de Estado (statesmanship). (CANOTILHO; MOREIRA, 1991, p. 71).

Trazendo para a Constituição brasileira de 1988, o professor José Afonso da Silva (2001) trará que o princípio da divisão de poderes é

Um princípio geral do Direito Constitucional que a Constituição inscreve como um dos princípios fundamentais que ela adota. Consta de seu art. 2º que são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário são expressões com duplo sentido.

Exprimem, a um tempo, as funções legislativa, executiva e jurisdicional e indicam os respectivos órgãos, conforme descrição e discriminação estabelecidas no título da organização dos poderes (respectivamente, nos arts. 44 a 75, 76 a 91 e 92 a 135). (SILVA, 2001, p. 110).

Por derradeiro, insta constar, conforme leciona Bonavides (1997, p. 140), que

estabeleceu Kant um silogismo da ordem estatal em que o legislativo se apresenta como a premissa maior, o executivo, a premissa menor e o judiciário, a conclusão.

Insistindo na “majestade” dos três poderes, sempre postos numa alta esfera de valoração ética, Kant afirma que o legislativo é “irrepreensível”, o executivo “irresistível” e o judiciário “inapelável”.

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Sobre os autores
Agathe Pompermayer Voumard

Acadêmica do 10º período de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES.

Yury Vieira Tupynambá de Lélis Mendes

Bacharel em Direito (2015) pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), atua como Advogado (OAB/MG 167.207) em Montes Claros (MG) e como Assessor Jurídico da Câmara Municipal de Patis (MG). Concluiu o Curso de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais pelo Ius Gentium Conimbrigae (Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e o MBA Executivo em Ciências Políticas pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). É Mestrando em História pela Unimontes. Cursa, ainda, Especialização em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Especialização em Gestão Pública Municipal pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e Especialização em Didática e Metodologia do Ensino Superior pela Unimontes. Faz segunda graduação em Ciências Econômicas pela Unimontes e é Sócio Efetivo (Cadeira n.º 96) do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros (IHGMC) e Imortal (Cadeira n.º 09) da Academia de Ciências, Letras e Artes de Coração de Jesus (ACLACJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VOUMARD, Agathe Pompermayer ; MENDES, Yury Vieira Tupynambá Lélis. Fundamentos teóricos para uma nova atuação do Poder Judiciário no pós-Segunda Guerra.: Princípios da supremacia constitucional, do neoconstitucionalismo, do Estado democrático de direito e da separação dos poderes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5444, 28 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57710. Acesso em: 2 nov. 2024.

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