Audiência de custódia: previsão normativa e aplicabilidade no regime jurídico brasileiro

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16/05/2017 às 12:23
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Pontos relevantes sobre o instituto da audiência de custódia e sua respectiva disciplina frente à persecução penal brasileira da atualidade.

Introdução.

O Código de Processo Penal vem passando por sucessivas modificações nos últimos anos, com o objetivo de adequar a persecução penal aos padrões estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. A tarefa tem sido árdua, notadamente porque o nosso Código de Processo Penal de 1941 foi concebido dentro de uma atmosfera autoritarista.

Com efeito, o Decreto-lei nº 3.689, de 3.10.1941[1] (CPP), nasceu sob a égide da Constituição Federal de 1937, que fora outorgada pelo então Presidente Getúlio Vargas em plena ditadura e teve forte influência da Constituição polonesa fascista de 1932, o que chegou a lhe render o apelido pejorativo de “Constituição Polaca”. Foi um período conturbado da nossa recente história, no qual os direitos e garantias individuais não receberam a devida atenção.

Como se não bastasse o regime de exceção do Estado Novo instalado por Getúlio Vargas, o nosso Código ainda teve como fonte de inspiração o Código Rocco italiano de 1930, também influenciado pelo regime fascista de Benedito Mussolini, conforme anotou Francisco Campos na exposição de motivos do Código de Processo Penal pátrio.

O Título IX do Código de Processo Penal, p. ex., cuja denominação original era “da prisão e da liberdade provisória”, em sua redação inicial evidenciava bem o perfil autoritário do Processo Penal brasileiro, uma vez que disciplinava um sistema cautelar bipolar, ou seja, tendo como extremos a prisão e a liberdade que seria sempre provisória.

Pela sistemática originária, a pessoa autuada em flagrante delito permaneceria presa, em regra, com fundamento nessa modalidade de prisão, mesmo durante a fase processual. O delegado de polícia, após a lavratura do auto de prisão em flagrante, encaminhava os documentos para que o juiz, no prazo de 24h, decidisse sobre a legalidade da prisão (homologação da prisão legal ou relaxamento da prisão ilegal). O juiz somente poderia conceder liberdade provisória se o crime fosse afiançável ou se a conduta do increpado estivesse amparada por alguma causa excludente da ilicitude.

Ainda que fosse proferida uma sentença absolutória, nos termos da antiga redação do art. 596 do CPP, dependendo do grau de apenação da infração penal, não seria suficiente para se restituir a liberdade do réu.

Percebe-se, portanto, que a liberdade era a exceção daquele sistema concebido em bases notoriamente autoritárias, revelando total falta de sintonia com os direitos e deveres individuais consagrados pela Constituição Federal 1988 e pelos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos incorporados ao sistema jurídico pátrio. Como bem lembra Eugêncio Pacelli, o princípio fundamental que norteava o Código de Processo Penal era o da presunção de culpabilidade[2].

O resultado não poderia ter sido outro: o precário sistema carcerário brasileiro passou a abrigar ao longo dos anos a terceira maior população carcerária do mundo, conforme dados contabilizados pelo Conselho Nacional de Justiça em 2014. Para piorar a situação, os índices de criminalidade aumentaram vertiginosamente ao longo dos anos.

A adequação do Código de Processo Penal aos ditames constitucionais era, portanto, imperiosa.

Nesse sentido, a iniciativa de regulamentar a audiência de custódia no Brasil segue o espírito de adequação do direito processual penal brasileiro aos preceitos consagrados pela Constituição Federal de 1988 e documentos internacionais sobre direitos humanos incorporados ao sistema jurídico pátrio.


Definição de audiência de custódia.

Segundo Aury Lopes Jr. e Caio Paiva, a audiência de custódia:

“consiste, basicamente, no direito de (todo) cidadão preso ser conduzido, sem demora, à presença de um juiz para que, nesta ocasião, (i) se faça cessar eventuais atos de maus tratos ou de tortura e, também, (ii) para que se promova um espaço democrático de discussão acerca da legalidade e da necessidade da prisão”[3].

Embora a nomenclatura mais utilizada seja “audiência de custódia”, há quem prefira a denominação “audiência de apresentação”, como, p. ex., o Min. Luiz Fux do STF, para evitar a ideia de que a finalidade da audiência seja custodiar alguém.


Previsão normativa da audiência de custódia.

A audiência de custódia encontra guarida em dois importantes documentos internacionais sobre direitos humanos, a saber:

a) Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos - PIDCP, adotado na XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidade, em 16 de dezembro de 1966, que estabelece em seu art. 9º, §3º, que:

“qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência e a todos os atos do processo, se necessário for, para a execução da sentença”.

b) Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH, adotada no âmbito das Organizações dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, que prevê em seu art. 7º, §5º, que:

“toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.

Vale ressaltar que o PIDCP foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, ao passo que a CADH foi incorporada no mesmo ano por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Ambos possuem eficácia jurídica supralegal dentro do ordenamento jurídico brasileiro[4].

Muito embora o Brasil tenha aderido voluntariamente aos termos dos citados documentos internacionais sobre direitos humanos, por mais de vinte anos se omitiu em relação à efetivação da audiência de apresentação no país, contentando-se com a mera análise documental da situação da pessoa presa em flagrante delito[5].

O Partido Socialismo e Liberdade – PSOL ajuizou perante o STF a Ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 347, com pedido de medida liminar, para que fosse reconhecida a figura do “estado de coisas inconstitucional” relativamente ao sistema penitenciário brasileiro e a adoção de providências estruturais em face de lesões a preceitos fundamentais dos presos, que alega decorrerem de ações e omissões dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal.

Em setembro de 2015, o STF analisou parcialmente a cautelar solicitada na ADPF nº 347 e votou, em síntese, no sentido de determinar aos juízes e tribunais a realização de audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão.

Em 15 de dezembro de 2015, o Conselho Nacional de Justiça - CNJ aprovou a Resolução 213, para dispor finalmente sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24h, bem como estipulou prazo de 90 dias para que todos os Tribunais se adequassem ao procedimento.

Muito se questionou sobre a possibilidade de se regulamentar um tema de tamanha importância por meio de resolução ou provimento. No Estado de São Paulo, p. ex., uma Resolução conjunta do TJ/SP e da Corregedoria Geral de Justiça de SP, que implantou de forma pioneira no Estado a realização das audiências de custódia, foi alvo da Ação direita de Inconstitucionalidade – ADI nº 5.240, ajuizada perante o STF pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil, sob o argumento, dentre outros, de que a audiência de custódia somente poderia ter sido criada por lei federal e jamais por intermédio de provimento autônomo do Tribunal, já que a competência para legislar sobre a matéria é da União, por meio do Congresso Nacional.

O STF, no entanto, julgou essa ação improcedente, porque, segundo entendimento dos Ministros, o procedimento apenas disciplinou normas vigentes, não tendo havido qualquer inovação no ordenamento jurídico, já que o direito fundamental do preso de ser levado sem demora à presença do juiz está previsto na Convenção Americana dos Direitos do Homem, internalizada no Brasil desde 1992, bem como em dispositivos do CPP[6].

Não obstante a regulamentação da audiência de custódia pelo Conselho Nacional de Justiça, por meio de resolução, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que objetiva positivá-la no Código de Processo Penal. Com efeito, em 30 de novembro de 2016 o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei do Senado - PLS 554/11 e o encaminhou para a Câmara dos Deputados, propondo a alteração dos artigos 304 e 306 do CPP, conforme noticiado no sítio do Senado Federal[7].

Percebe-se, portanto, que o Brasil está apenas regulamentando tardiamente um direito fundamental consagrado em documentos internacionais vigentes, sobretudo na Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH. Dessa forma, é importante salientar que as disposições da CADH, mormente na parte que dispõe sobre a audiência de custódia, devem ser interpretadas à luz do entendimento jurisprudencial da Corte Interamericana de Direitos Humanos, seu interprete originário, e não com base no direito interno, conforme ressaltado por Andrey Borges de Mendonça[8].

Com efeito, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já se debruçou sobre o tema da audiência de custódia diversas vezes, máxime quando instada a se manifestar diante das violações a direitos humanos que ocorreram nas ditaduras da América Latina, onde a prisão foi indubitavelmente um instrumento de expressão do autoritarismo. Em vários julgados, a Corte destacou a importância da realização da audiência de custódia, porque o momento da prisão é um momento de especial vulnerabilidade da pessoa em que diversos bens jurídicos se encontram em risco, razão pela qual merece um controle especial.

Dessa forma, a Corte Interamericana estabeleceu alguns parâmetros que devem ser observados no que tange ao momento da prisão, em especial para cumprir a garantia do art. 7º, §5º da CADH, sintetizados em quatro requisitos cumulativos, a saber:

  1. Que seja apresentada perante um juiz ou autoridade judiciária;
  2. Que esse controle seja efetivo;
  3. Que não haja demora no controle;
  4. Que o imputado seja apresentado pessoalmente e seja ouvido.


Finalidades da audiência de custódia.

A audiência de custódia objetiva, basicamente, atingir duas finalidades, a saber: a) promover um espaço democrático de discussão acerca da legalidade e da necessidade da prisão; b) coibir eventuais atos de tortura ou de maus tratos.

Nesse sentido, o PLS 554/11 prevê a inclusão de um §7º no art. 306 do CPP, aduzindo que a oitiva do preso apresentado na audiência de custódia “versará, exclusivamente, sobre a legalidade e a necessidade da prisão, a ocorrência de tortura ou de maus-tratos e os direitos assegurados ao preso e ao acusados”.

Assim, ao analisar a legalidade da prisão, o juiz deve garantir que o procedimento de privação da liberdade seja regular, isto é, com observância das disposições constitucionais, convencionais e legais, afastando qualquer tipo de ilegalidade ou arbitrariedade. Caso perceba que a prisão em flagrante seja ilegal, cabe ao juiz relaxá-la, consoante art. 310, I, do CPP.

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No que tange a necessidade da prisão, a audiência de custódia objetiva basicamente garantir a revisão jurisdicional do ato prisional, fazendo com que a “detenção policial” se transforme em “detenção judicial”. Em outras palavras, o juiz deverá aplicar o art. 310 do CPP, incisos II e III, ao realizar a audiência de custódia, para converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos dessa prisão cautelar e se revelarem inadequados ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão, ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Também caberá ao magistrado observar, quando entrevistar pessoalmente o preso, se houve respeito à sua integridade física e moral, em atenção ao art. 5º, XLIX, da CF. Havendo indícios da prática de tortura ou maus tratos contra o preso, deverá o magistrado determinar a apuração do ilícito.

Nesse ponto, a efetivação dessa garantia de apresentação do preso revela particularmente importância nos Estados em que há um específico perigo de brutalidade policial ou tortura.

A tendência é que, com o tempo, a implantação da audiência de custódia atinja, por via obliqua, outro anseio do Conselho Nacional de Justiça: a diminuição do número de presos provisórios no Brasil. Acredita-se que o contato pessoal estabelecido entre o juiz e o preso fatalmente enriquecerá essa relação com mais elementos concretos, possibilitando ao julgador tirar suas próprias impressões pessoais sobre o custodiado ao decidir sobre a necessidade da prisão, o que era prejudicado pela mera análise documental do auto de prisão em flagrante[9].


Pressuposto para a realização da audiência de custódia.

Somente haverá necessidade de se realizar a audiência de custódia se a prisão ainda estiver em vigor. Caso o delegado de polícia tenha concedido a liberdade provisória mediante fiança[10] ou tenha relaxado a prisão/captura, porque não restaram fundadas as suspeitas contra o capturado que foi conduzido à Delegacia (CPP, art. 304, §1º, a contrário senso), não haverá necessidade de se realizar a audiência de custódia.

Para quais espécies de prisão se aplica a audiência de custódia?

Em regra, aplica-se para a hipótese de prisão em flagrante delito[11], mormente porque nesse tipo de prisão não há uma ordem judicial prévia. Nesse sentido caminha a redação do art. 1º da Res. 213/15 do CNJ.

O artigo 13 da Res. 213/15 do CNJ, no entanto, ampliou a hipótese de realização da audiência de custódia para as pessoas presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva.

Nesse caso, Segundo Andrey Borges de Mendonça, a realização da audiência de custódia teria dupla importância: 1) verificar se houve o regular cumprimento do mandado e se o preso foi informado sobre os seus direitos; e 2) a depender do tipo de prisão: 2a) para o caso de prisão cautelar (temporária ou preventiva), assegurar o contraditório para essa prisão decretada, conforme prevê a nova redação do art. 282, §3º, do CPP (contraditório pós-medida), de forma que o preso possa exercer a autodefesa em forma de “contraditório argumentativo”; 2b) em hipótese de prisão definitiva, a audiência de custódia serviria para verificar a vigência do mandado de prisão e a identidade da pessoa presa[12].

É necessária a realização de audiência de custódia para outras espécies de prisão, como, p. ex., do devedor de pensão alimentícia ou para fins de extradição?

A doutrina é silente. O Prof. Andrey Borges de Mendonça entende que sim, conforme já decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos[13]. A audiência tem cabimento sempre que houver uma ordem de prisão, não devendo ficar restrita a prisão penal ou processual penal.

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Sobre o autor
Adriano Menechini

Pós-graduado em Direito Público em 2004, exerceu a advocacia por três anos, até assumir o cargo de delegado de polícia no Estado de São Paulo, em 2007, com atuações na Grande SP, DHPP e Capital.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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