RESUMO: Recepcionado pela Emenda Constitucional nº 64, o direito humano à alimentação encontra-se previsto na Constituição Federal de 1988 como direito social, com base no disposto pelo artigo 6º da Carta Política brasileira. Reconhecido igualmente pelo Pacto Internacional de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), protege este prerrogativa basilar, ratificada por 153 países, dentre os quais o Brasil. Trata-se, portanto, de preceito fundamental, protegido pelo ordenamento jurídico pátrio e, como tal, exigível por meio judicial. O presente, assentado sob tal perspectiva, faz necessária análise ao que estabelece a Lei nº 13.105/2015 concernente à execução de alimentos. Pretende-se evidenciar o tratamento diferenciado dispensado pelo legislador ao tema, explicitando a importância da qual se reveste o procedimento executivo para assegurar a efetivação de direito existente.
Palavras-chave: Execução de alimentos; direito processual civil; procedimentos.
1. COMENTÁRIOS INICIAIS
Distante das notórias controvérsias que ainda pairam sobre determinadas mudanças instituídas pelo vigente Código, torna-se necessário reconhecer que o diploma normatizado pela Lei nº 13.105/2015 alterou, de forma significativa, a execução de alimentos dentro do processo civil brasileiro. A começar, como bem lembra Bueno (2016), da adoção de normas específicas para o cumprimento da sentença relativa à matéria.
O CPC de 1973 continha também, como se sabe, regulação própria para implemento de decisão judicial que reconhecesse a exigibilidade da obrigação de prestar alimentos. Mas, como explica o próprio Bueno, a iniciativa do CPC de 2015 é pertinente, dentre outros motivos, porque tende a colocar fim a uma série de questões que, no diploma anterior, resultavam do contraste da Lei nº 11.232/2005 (responsável por reformá-lo) com “as regras genéricas dos alimentos constantes em seus arts. 732 a 735 (que, em rigor, só se referiam a títulos executivos extrajudiciais) e ainda com a Lei nº. 5.478/1968, modificada para se compatibilizar com o CPC de 1973 pela Lei nº. 6.014/1973” (2016, p.503).
Claro, contudo, que a contribuição do atual diploma à matéria é bem mais ampla do que mera mudança de nomenclatura do título, como defendem alguns. Ainda que evidente a preocupação com uma melhor adequação técnica, sobram elementos que permitem visualizar as evoluções que asseguram maior celeridade e efetividade na tutela jurisdicional. Passemos, portanto, a apreciação didática destes.
2. CONSIDERAÇÃO PROPEDÊUTICA AO CONCEITO DE ALIMENTOS
Prelecionam, com inegável maestria, Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 662), serem alimentos “valores que se destinam a fazer frente a toda e qualquer necessidade cotidiana da vida”. Essa concepção basilar para o direito processual civil emana do diploma civilista e permite estabelecer clara distinção entre alimentos considerados legítimos, voluntários ou indenizativos.
Os primeiros, por exemplo, como bem ensina o trio, são aqueles que, por força do disposto no Art. 1.694 do Código Civil, são devidos em virtude de parentesco, casamento ou união estável. Da mesma forma, pode-se dizer que o conceito de alimentos voluntários origina-se de interpretação doutrinária ao Art. 1.928, parágrafo único, da Lei nº 10.406/02, sendo aqueles que podem ser instituídos por ato espontâneo (já que a pessoa que os presta não está obrigada a fazê-lo), mas, na compreensão dos juristas, “oriundos de negócio jurídico” (2017, p. 662). Por fim, alimentos indenizativos (indenizatórios ou ressarcitórios) são os devidos em consequência da prática de ato ilícito, fixados em sentença judicial condenatória em ação de responsabilidade civil, a exemplo da previsão estabelecida no Arts. 948, II, e 950, do C.C..
Para além destes conceitos, entretanto, é preciso reiterar que a noção de direito humano à alimentação é muito mais ampla, sendo estabelecida na própria carta constitucional (art. 6º, modificado pela emenda constitucional nº 64), bem como pelo Pacto Internacional de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), do qual o Estado brasileiro é signatário. Neste sentido, observe como se posicionam os tribunais a respeito do tema:
RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014. ATRASO NO PAGAMENTO DE SALÁRIOS. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. CARÁTER ABSOLUTAMENTE INDISPENSÁVEL DA VERBA. DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS. ART. 6º DA CF. A conquista e a afirmação da dignidade da pessoa humana não mais podem se restringir à sua liberdade e intangibilidade física e psíquica, envolvendo, naturalmente, também a conquista e afirmação de sua individualidade no meio econômico e social, com repercussões positivas conexas no plano cultural - o que se faz, de maneira geral, considerado o conjunto mais amplo e diversificado das pessoas, mediante o trabalho e, particularmente, o emprego. O direito à indenização por dano moral encontra amparo no art. 5º, X, da CF, bem como nos princípios basilares da nova ordem constitucional, mormente naqueles que dizem respeito à proteção da dignidade humana e da valorização do trabalho humano (art. 1º da CF/88). No caso dos autos, em que houve reiterado atraso no pagamento dos salários mensais ao trabalhador, emerge manifesto dano ao patrimônio moral do ser humano que vive de sua força de trabalho, em face do caráter absolutamente indispensável que a verba tem para atender necessidades inerentes à própria dignidade da pessoa natural, tais como alimentação, moradia, saúde, educação, bem-estar - todos eles direitos sociais fundamentais na ordem jurídica do país (art. 6º, CF). Recurso de revista conhecido e provido.
(TST - RR: 1483620145120042, Relator: Mauricio Godinho Delgado, Data de Julgamento: 30/09/2015, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 02/10/2015)
Feita tal ressalva, resta ainda importante consideração a respeito do que a doutrina conceitua como alimentos definitivos, provisórios e provisionais. Os primeiros, decorrem de decisão definitiva (sentença judicial transitada em julgado) ou acordo homologado judicialmente. Já os dois remanescentes, referem-se aos alimentos antecipados.
Aliás, a distinção entre estes fazia sentido na vigência do código processual anterior, perdendo utilidade em decorrência da generalização da antecipação de tutela satisfativa estabelecida pelo CPC/2015, já que agora “todos os alimentos provisórios são também provisionais” (MARINONI, ARENHART E MITIDIERO, 2017, p. 662).
Vencida, portanto, esta necessária etapa, retornemos ao propósito de explicar a sistemática adotada pela Lei nº 13.105/2015 ao cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade da obrigação de prestar alimentos.
3. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS
Como é possível deduzir da explicação dada em momento anterior, alimentos encontram-se relacionados, para todos os efeitos, com princípios caros ao direito, como o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Destarte, trata-se a execução destes de execução especial de pagar quantia certa, em virtude da natureza diferenciada do direito tutelado. Esta importante lição, extraída de fragmento da obra de Neves (2016, p. 926), permite nortear o entendimento sobre o tema. Para o autor “a especialidade da execução de alimento dá-se principalmente em razão da previsão de atos materiais específicos a essa espécie de execução, sempre com o objetivo de facilitar a obtenção da satisfação pelo exequente” (NEVES, 2016, p. 926). Nesta perspectiva também assevera com maestria Câmara:
Quando se trate de cumprimento de decisão judicial que tenha reconhecido obrigação de prestar alimentos, observar-se-á um procedimento especial, regido pelos arts. 528 a 533. Este procedimento será adequado tanto no caso de alimentos definitivos, como na hipótese de se pretender executar alimentos provisórios (art. 531). Este procedimento, porém, só poderá ser empregado para execução das três prestações imediatamente anteriores ao requerimento executivo e das que se vencerem no curso do processo (art. 528, § 7o). Para prestações vencidas anteriormente, só o procedimento padrão do cumprimento de sentença será adequado, já que tais prestações, em razão do decurso do tempo, já terão perdido seu caráter alimentício, tendo assumido natureza meramente indenizatória (CÂMARA, 2017).
Assim sendo, compete esclarecer ainda que o vigente Código de Processo Civil estabeleceu três formas de cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos: “a convencional, prevista no art. 528, § 8º, do CPC; a especial, prevista no art. 528, caput e §§ 1º a 7º; e a por desconto em folha, prevista no art. 529” (GONÇALVES, 2017). Sobre cada uma destas dedicaremos impreterível apreciação.
3.1. Modalidades da execução de alimentos
Como antecipado, com o advento do atual CPC, existem três modos de promover a execução fundada na efetivação de decisão judicial que reconheça a exigibilidade do compromisso de prestar alimentos. Sobre estes aduz com singular precisão Gonçalves:
A convencional é a que se processa como cumprimento de sentença condenatória em quantia certa, observado o procedimento estabelecido pelo art. 523 e ss. A especial é aquela na qual o devedor será intimado pessoalmente para pagar em três dias, comprovar que já o fez ou provar a impossibilidade de fazê-lo, sob pena de ser decretada a sua prisão civil. E a por desconto é aquela em que o devedor, funcionário público, militar, diretor ou gerente de empresa, ou empregado, terá a prestação alimentícia descontada de sua folha de pagamento (GONÇALVES, 2017)
Importante ratificar que tal entendimento encontra correspondência nas mais recentes decisões judiciais. Senão, vejamos jurisprudência que embasa tal percepção:
EXECUÇÃO DE ALIMENTOS – Art. 528, § 8º, NCPC – Ordem de suspensão do feito por falta de indicação de bens penhoráveis e imposição de diligências pela credora – Descabimento – Elevados interesses envolvidos no feito que justificam a tomada de providências pelo juízo da causa na busca da satisfação do crédito alimentar – Agravo provido.
(TJ-SP - AI: 21274226520168260000 SP 2127422-65.2016.8.26.0000, Relator: Galdino Toledo Júnior, Data de Julgamento: 31/01/2017, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 31/01/2017)
3.2. Procedimentos
Como é possível intuir, cada modalidade de cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos demanda procedimento específico. Pelo tradicional, por exemplo, o credor (não raro motivado pelo vínculo afetivo com o devedor, como os laços resultantes de casamento ou união estável) opta pela penhora e expropriação de bens, afastando a ameaça de prisão do penhorado.
Imperioso observar, contudo, que, por força do expresso no art. 528, § 7º, do CPC, bem como do entendimento sumulado do STJ (Súmula 309) o exequente que pretenda receber prestações anteriores às três últimas vencidas só poderá lançar mão do procedimento convencional (GONÇALVES, 2017). Cabe também oportuno comentário ao prazo prescricional, que, no caso da prestação de alimentos, está normatizado em dois anos como previsto no art. 206, § 2º, do Código Civil.
Já na execução especial de alimentos, emanada do caput e §§ 1º a 7º do art. 528, tem-se estabelecida possibilidade de prisão civil do executado que ignorar as três providências determinadas (tema que, antecipo, será tratado em tópico específico). Observe a literalidade do dispositivo citado:
Art. 528. No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo.
§ 1º Caso o executado, no prazo referido no caput, não efetue o pagamento, não prove que o efetuou ou não apresente justificativa da impossibilidade de efetuá-lo, o juiz mandará protestar o pronunciamento judicial, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 517.
§ 2º Somente a comprovação de fato que gere a impossibilidade absoluta de pagar justificará o inadimplemento.
§ 3º Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1o, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.
§ 4º A prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado dos presos comuns.
§ 5º O cumprimento da pena não exime o executado do pagamento das prestações vencidas e vincendas.
§ 6º Paga a prestação alimentícia, o juiz suspenderá o cumprimento da ordem de prisão.
§ 7º O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende até as 3 (três) prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo.
§ 8º O exequente pode optar por promover o cumprimento da sentença ou decisão desde logo, nos termos do disposto neste Livro, Título II, Capítulo III, caso em que não será admissível a prisão do executado, e, recaindo a penhora em dinheiro, a concessão de efeito suspensivo à impugnação não obsta a que o exequente levante mensalmente a importância da prestação.
§ 9º Além das opções previstas no art. 516, parágrafo único, o exequente pode promover o cumprimento da sentença ou decisão que condena ao pagamento de prestação alimentícia no juízo de seu domicílio.
Note-se que, em razão do expresso no caput do artigo e pela evidente consequência mais gravosa, cuidou o legislador de determinar que a intimação deva ser pessoal, ao contrário do cumprimento de sentença em geral que, como se sabe, pode ser feita na pessoa do advogado constituído pela parte.
Também se torna válido reforçar que o exequente não pode utilizar a execução especial para exigir todo o crédito alimentar, restringindo-se esta, como é possível deduzir, aos três últimos vencidos antes do ajuizamento da ação, bem como os que forem vencendo no seu decurso (CÂMARA, 2017).
Por fim, o desconto em folha do devedor de alimentos dá-se, quando este tem emprego fixo, com a comunicação da decisão judicial por ofício a empresa ou empregador. Sua previsão, como dito, encontra-se normatizada no art. 529. Trata-se, conforme defende a melhor doutrina, do expediente mais efetivo para executar a prestação alimentícia.
3.3. Da prisão civil do devedor de alimentos
Antes de entrar nas minúcias do tópico, cabe enfatizar que no Brasil só existe atualmente um meio de prisão civil por dívida: no caso, a prisão do devedor de alimentos. Esta reflexão é importante para situar o leitor em fato pertinente ao ordenamento pátrio. Até dezembro de 2008 admitia-se também a prisão do depositário infiel, por força do inciso LXVII, do artigo 5º, da Constituição Federal. Sua revogação deu-se por adequação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, com a edição da súmula vinculante nº 25, e a consequente adaptação do texto ao Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos).
Contudo, a propósito da prisão civil do devedor de alimentos, deve-se destacar que esta tem caráter coercitivo, não constituindo, em consequência, penalidade contra o executado. Para visualizar melhor tal raciocínio, basta esclarecer que feito o pagamento, liberta-se o devedor do crédito alimentício. Outro detalhe que merece nota é que o prazo estabelecido pode ser de um a três meses, conforme previsão expressa no parágrafo primeiro, do art. 528 do vigente código. A prisão deverá ser cumprida em regime fechado, ficando o devedor de alimentos separado dos demais presos.
Importante destacar ainda observação extraída das lições de Gonçalves. Assevera com propriedade o autor que “a prisão civil não pode ser decretada de ofício, mas depende do requerimento do credor; por razões pessoais, e dadas às ligações que mantém ou manteve com o devedor, ele pode não desejar que ela seja decretada” (GONÇALVES, 2017).
Claro que a hipótese tratada pelo jurista nem sempre espelha a dura realidade dos tribunais. Neste sentido torna-se imperioso observar posicionamento jurisprudencial mais recente.
HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. PRISÃO CIVIL. IMPETRAÇÃO PREJUDICADA. Tendo sido revogada a prisão civil do paciente, resta consagrada a perda do objeto da presente impetração. HABEAS CORPUS PREJUDICADO, POR DECISÃO MONOCRÁTICA. (Habeas Corpus Nº 70069993509, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Julgado em 30/06/2016).
(TJ-RS - HC: 70069993509 RS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Data de Julgamento: 30/06/2016, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 01/07/2016)
Finalmente, cabe destacar que, por força da previsão manifesta no art. 528, § 5º do CPC, cumprir a pena não exime de pagamento o devedor de alimentos. A dívida, neste caso, será executada de forma convencional com eventual penhora de bens. Isso não significa, obviamente, que o devedor estará sujeito a ser preso mais de uma vez pelas mesmas prestações cobradas na decisão judicial. Pode até vir a ser preso novamente por inadimplemento das prestações referentes ao crédito alimentício, mas somente das que forem vencendo sem o necessário adimplemento.