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O estado de direitos humanos e a audiência de apresentação da pessoa presa (não "audiência de custódia"): algumas questões essenciais

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27/10/2017 às 13:38
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Procurou-se demonstrar que a pessoa presa em quaisquer circunstâncias tem o direito fundamental de ser levada perante uma autoridade judiciária para a audiência de apresentação da pessoa presa (AAPP). É direito subjetivo a ser respeitado por todos.

Sumário: 1 Introdução. 2 O Estado de Direitos Humanos e a audiência de apresentação da pessoa presa (AAPP). 3 Algumas questões essenciais sobre a audiência de apresentação da pessoa presa. 3.1 A fundamentação jurídica da audiência de apresentação da pessoa presa (não “audiência de custódia”). 3.2 A melhor denominação do instituto. 3.3 A audiência de apresentação da pessoa presa no direito comparado. 3.4 A audiência de apresentação da pessoa presa ante o princípio do juiz natural. 3.5 A audiência de apresentação da pessoa presa ante o princípio da imparcialidade do juiz. 4 O desenvolvimento da audiência de audiência de apresentação da pessoa presa e alguns aspectos práticos. 4.1 Quem é a pessoa presa que deve ser apresentada? 4.2 A quem a pessoa presa deve ser apresentada? 4.3 Em que prazo a pessoa presa deve ser apresentada? 4.4 Quais as contribuições da audiência de apresentação da pessoa presa para a humanização do direito penal e do processo penal no Brasil? 4.5 Quais consequências decorrem da não realização da audiência de apresentação da pessoa presa? 4.6 Seria possível o preso e sua defesa técnica dispensarem a realização da audiência de apresentação da pessoa presa? 4.7 A pessoa presa tem “direito de mentir” na audiência de apresentação da pessoa presa? 5 Conclusão.

Resumo: A proposta foi desenvolver, sinteticamente, a verdadeira epopeia pela consolidação da audiência de apresentação da pessoa presa (AAPP) no âmago de um Estado de Direitos Humanos, descrevendo os aspectos mais essenciais de um instituto concebido na Europa, na década de 1950, e que migrou para as Américas nos idos de 1960, sendo incorporado ao Direito positivo brasileiro no início dos anos de 1990 e que, devido às infindáveis nuanças reveladas pelo deficit democrático, ainda hoje teima em não ser implementado satisfatoriamente em todo o território do Brasil.

Palavras-chave: Estado de Direitos Humanos. Audiência de Apresentação da Pessoa Presa. Princípio do Juiz Natural. Imparcialidade do Juiz.  


1 Introdução

Abordamos, neste estudo, a audiência de apresentação da pessoa presa (AAPP) (não “audiência de custódia”) a partir do Estado de Direitos Humanos. E, nessa esteira, realçamos a importância do instituto para a humanização do direito penal e do direito processual penal. Assim, dispomos sobre algumas questões essenciais do instituto, bem como discorremos a respeito da fundamentação jurídica do instituto.

Sabemos que a audiência de apresentação da pessoa presa surgiu a partir de documentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil se fez subscritor em 1992. À míngua de melhor regulamentação via lei ordinária, uma vez que o Projeto de Lei do Senado nº 554, de 211, ainda não foi aprovado pelo Congresso Nacional. Em razão disso, o CNJ, por sua vez, via Resolução nº 213/2015, tratou do assunto incentivando que os Tribunais implementem o instituto por todo o território brasileiro. No estado de Mato Grosso, convergindo para essa expectativa, o Provimento nº 1/2017 (CM-TJMT) buscou melhorar a prática de tal instituto. Infelizmente, por ora, com aplicação somente na capital do estado.

Procuramos, também, individuar uma melhor denominação para o instituto, pois a expressão “audiência de custódia” tem cunho ideológico prisionalista e não revela o seu conteúdo. Em seguida, focalizamos o direito comparado objetivando demonstrar que, em muitos outros países, inclusive da América do Sul, o instituto há tempos já é praticado.

Defendemos, na continuidade do trabalho, que a audiência de apresentação da pessoa presa precisa observar o princípio do juiz natural, sem com isso implicar quebra da imparcialidade do juiz que a presidiu para prosseguir em eventuais atos processuais futuros. Buscamos dispor sobre os aspectos mais importantes do instituto, pois, para nós, qualquer pessoa presa, em quaisquer circunstâncias, desde que não seja imediatamente colocada em liberdade, deve ser apresentada perante uma autoridade judiciária e no prazo de 24 horas a contar da prisão. Dispomos, ainda, quanto às contribuições do instituto rumo à humanização, observando que a sua não realização no tempo previsto poderá ocasionar ilegalidade da prisão, devendo a pessoa presa ser colocada em liberdade.

Por derradeiro, expomos uma reflexão pertinente ao suposto “direito de mentir” por parte da pessoa presa no transcurso da audiência de apresentação da pessoa presa. Demonstramos, nesse sentido, que o indiciado tem direito à imunidade, à mentira a bem da não autoincriminação, e não um “direito à mentira”.


2 O Estado de Direitos Humanos e a audiência de apresentação da pessoa presa (AAPP)

O Estado de Direitos Humanos é, sobretudo, um Estado humano, no qual o Estado e o Direito só se justificam se estiverem a serviço do ser humano em sua individualidade enquanto ser no mundo.[1] A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) esforça-se nesse sentido, por exemplo: ao traçar como princípio estruturante da República brasileira a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CRFB) e objetivar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, da CRFB). Mas, em que pese o Brasil se intitular “Estado Democrático de Direito” (art. 1.º, caput, da CRFB), contudo, ainda há muito que fazer para merecer o epíteto de Estado de Direitos Humanos. E mesmo quando atingir esse patamar com tão ditoso cognome (Estado de Direitos Humanos), ainda assim a luta para a sua manutenção será interminável, ou seja, nunca pode ter fim, eis que “[...] o Estado de direitos humanos é sempre um modelo incompleto, aberto e imperfeito de sociedade política ao serviço do ser humano”.[2]

Inserto em um Estado de Direitos Humanos, o instituto da audiência de apresentação da pessoa presa alcança significado singelo, pois, sem dúvida, contribui não só para a humanização do Direito Penal e do Processo Penal[3], mas também, registra um marco significativo rumo ao prestígio da dignidade da pessoa humana[4] e em homenagem ao princípio da presunção de inocência (presunção de não culpabilidade).[5] Ao estar previsto em instrumentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário desde 1992, obviamente, cerca-se da natureza de direito fundamental da pessoa presa.[6] Este, em momento algum, deixa de ser sujeito de direito, o que resulta que o Estado não pode se escusar de respeitar qualquer direito da pessoa presa, ainda mais em se tratando de direito fundamental. De igual modo, o Estado tem a obrigação de exigir que o preso cumpra com seus deveres, não abrindo mão do controle externo e interno das prisões.[7] A seguir, discorremos a respeito de algumas questões que reputamos serem de extrema importância atinentes ao tema audiência de apresentação da pessoa presa.


3 Algumas questões essenciais sobre a audiência de apresentação da pessoa presa (AAPP)

3.1 A fundamentação jurídica da audiência de apresentação da pessoa presa (AAPP) (não “audiência de custódia”).

O instituto tem suas raízes fincadas nas ideias iluministas propagadas no âmbito penitenciário, pelos ditos reformadores: Howard, Beccaria e Bentham, originando os sistemas penitenciários clássicos.[8] Foi um retumbante brado pela humanização das prisões, obviamente, também do Direito Penal e do Processo Penal.[9] Essa luta pela humanização das prisões e do Direito Penal e Processual Penal é infinita. Desenvolveu-se, marcadamente, do final do século XVIII, que podemos exemplificar com o art. 7.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789[10], prosseguindo até os dias de hoje. Mas, no século XX, após o desastre humanitário decorrente da Segunda Guerra Mundial, inspirada na Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) (1948), veio a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), em 1950, dispondo expressamente no art. 5.3, sobre o dever de condução “sem demora da pessoa presa à presença de um juiz ou de outra pessoa habilitada pela lei para exercer poderes judiciais [...]”.[11] Já em 2012, o Parlamento Europeu aprovou a Diretiva 2012/13/UE, pela qual determina, no seu art. 4.º, 2, d, que, ao ser presa, a pessoa tem o direito de receber prontamente uma Carta de Direitos pela qual é informada de em quanto tempo deverá ser apresentada perante uma autoridade judiciária. Com imediata aplicação para todos os Estados-Membros da União Europeia.[12]

Da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH) o direito da pessoa presa ser, sem demorada, apresentada a uma autoridade judiciária migrou para outros pactos ou convenções internacionais de direitos humanos pelo mundo afora. Assim, foi incluso no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de 1966, art. 9.3.[13] Também, foi inserido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969), art. 7.º, 5.[14]

O Brasil, por sua vez, assinou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos[15] e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 1992.[16] O primeiro instrumento retrocitado teve seu texto publicado em território brasileiro em 7 de julho de 1992; o segundo, em 9 de novembro de 1992. Portanto, desde 7 de julho de 1992, o Brasil passou a ser obrigado a reconhecer e aplicar, em todo o território nacional, o direito da pessoa presa de ser apresentada imediatamente à autoridade judiciária. Conquanto seja desnecessário, a título de ilustração, relembremos que o Brasil se fez signatário da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, pela qual se obriga a cumprir tratados internacionais sem poder invocar qualquer direito interno como justificativa para o seu descumprimento.[17]

À míngua de lei ordinária que melhor dispusesse sobre a audiência de apresentação, com suporte nos dois textos internacionais retromencionados, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) terminou por regulamentar o assunto via Resolução n.º 2013, de 2015.[18] Devido à regulamentação do instituto ter ocorrido de forma administrativa, e não por lei emanada do Congresso Nacional, trouxe algumas dificuldades e incompreensões desnecessárias quanto à implementação da audiência de apresentação da pessoa presa.[19] O que podemos aduzir é que o CNJ, embora tardiamente, fez o que pôde, realizou o possível visando ser colocado em prática um direito fundamental da pessoa presa no Brasil e que estava sendo negligenciado há mais de 23 anos.[20] Isso porque a obrigação assumida pelo Brasil foi em 14 em de julho de 1992, e o ato administrativo do CNJ data de 15 de dezembro de 2015, o que implica em demora de exatos 23 anos, cinco meses e um dia. Convenhamos, isso é muito tempo perdido, principalmente em se tratando de matéria de direitos humanos. No momento, o Projeto de Lei do Senado (PLS) n.º554, de 2011, enfim foi aprovado naquela Casa em 30 de novembro de 2016[21] e enviado para apreciação da Câmara dos Deputados, o que nos permite augurar que, em breve, teremos lei regulando em definitivo o assunto audiência de apresentação da pessoa presa no Brasil.[22]

No entanto, visto que o direito de apresentação da pessoa presa perante uma autoridade judiciária foi compromissado, voluntariamente, pelo Brasil ao fazer-se signatário de dois instrumentos internacionais de direitos humanos que dispõem sobre o assunto, nada justifica tamanha demora na sua implementação prática. Ora, mesmo que o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido a vigência de tratados que versam sobre direitos humanos não como texto integrante da Constituição, aliás como deveria ser, mas como norma supralegal[23], é o suficiente para se afirmar que o direito de apresentação da pessoa presa no Brasil existe desde 7 de julho de 1992. O que implica dizer que cada juiz ou Tribunal do país deve reconhecer e aplicar imediatamente tal direito em benefício da pessoa presa. A lei ordinária seria apenas uma melhor regulamentação a ser inserida no Código de Processo Penal para evitar distorções e antagonismos na prática do instituto. Entrementes que o Congresso Nacional demora em aprovar lei a respeito, bem fez o CNJ em editar norma administrativa com aplicação em todo o Brasil (Resolução n.º213/2015).[24]

No estado de Mato Grosso, por sua vez, o novel Provimento n.º1/2017 trata do assunto.[25] Em crítica construtiva, temos a colocar que, infelizmente, por ora, só a pessoa presa na capital (Cuiabá) é que passou a ter o direito fundamental de ser levada, em 24 horas, perante a autoridade judiciária, nas demais comarcas cabe à autoridade judiciária local invocar os instrumentos internacionais e a Resolução n.º213/215 do CNJ e, por si, tomar tais providências.

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3.2 A melhor denominação do instituto.

Defendemos, prontamente, que o nome mais indicado ou mais preciso do instituto da apresentação “imediata” ou “sem demora” do preso ao Poder Judiciário é “audiência de apresentação da pessoa presa”, e não “audiência de custódia”.[26] O STF sugeriu a denominação de “audiência de apresentação”[27], no entanto a maioria da doutrina especializada emprega a expressão “audiência de custódia”, mas há uma parcela dissonante que prefere “audiência de apresentação”.[28] Ora, não estamos esposando posição maniqueísta, ou seja, não se trata de dizer qual expressão é a certa ou a errada, mas a pessoa presa ou custodiada deve ser apresentada ao Poder Judiciário e à autoridade judiciária para ser instalada a “audiência de apresentação da pessoa presa”, e não a “audiência de custódia”. Essa última expressão, além de não informar com exatidão o conteúdo do direito fundamental da pessoa presa ser apresentada à autoridade judiciária, também, termina por reforçar a ideologia[29] do estado de polícia[30], por conseguinte, realçando a ideia de custódia ou de prisão (termos sinônimos)[31]; quando no Estado Democrático de Direito a regra é a liberdade e a custódia (ou prisão) é exceção[32]. Por isso, a expressão “audiência de apresentação do preso”, de plano, não só diz que a pessoa presa tem de ser apresentada em juízo, reafirmando com clareza o seu conteúdo, um seu direito fundamental e não um mero benefício ou favor.[33]

3.3 A audiência de apresentação da pessoa presa no direito comparado.

A regular prática da audiência de apresentação da pessoa presa perante o Poder Judiciário tem sido obedecida pelos demais países do mundo ocidental, inclusive, da América do Sul. Portanto, além de ser um direito reconhecido no âmbito de tratados internacionais de Direitos Humanos, o direito da pessoa presa ser apresentada perante a autoridade judiciária tem sido uma prática corriqueira no âmbito internacional. Vejamos alguns exemplos a seguir.

América do Sul:

Argentina.

Na Argentina, a Constituição não trata do instituto, porém é mencionado no Código de Processo Penal, art. 64, devendo a pessoa presa ser conduzida a um juiz sem demora.[34]

Bolívia.

Na Bolívia, a Constituição e o Código de Processo Penal não tratam da audiência de apresentação. Mas o art. 1.º, do Código de Processo Penal, além de registrar a garantia de que a condenação não será imposta sem a pessoa ser ouvida previamente em processo legal, menciona obediência à Constituição e às Convenções e Tratados internacionais vigentes.[35]

Chile.

No Chile, a Constituição não trata do instituto, contudo é mencionado no Código de Processo Penal, art. 131. E este prevê que a pessoa presa por determinação judicial deve ser apresentada em 24 horas à autoridade judiciária que determinou a prisão. Em caso de prisão em flagrante, a pessoa deve, em 12 horas, ser apresentada ao Ministério Público, que poderá invalidá-la ou determinar que seja conduzida ao juiz em 24 horas, contadas da sua prisão.[36]

Colômbia.

Nada dispõe sobre o instituto na Constituição. No entanto, nos arts. 287, 298, 300 e 302, o Código de Procedimento Processual Penal estabelece que a pessoa ao ser presa, por força de mandado, durante a fase preliminar ou na fase processual, sem ser com mandado e fora do flagrante, bem como em situação de flagrante, que em todas essas hipóteses a pessoa presa deve ser apresentada imediatamente ou no máximo em trinta e seis (36) horas ao juiz das garantias.[37]

Equador.

O instituto não se faz presente na Constituição equatoriana, mas encontra-se presente no Código Processual Penal quando exige que a pessoa presa em flagrante delito seja apresentada imediatamente ao juiz competente.[38]

Paraguai.

Não encontramos o instituto da audiência da apresentação da pessoa presa na Constituição nem no Código de Processo Penal do Paraguai.[39]

Peru.

Embora não tenhamos encontrado o instituto na Constituição, o Código de Processo Penal do Peru contém algo muito próximo da audiência de apresentação do preso a partir do art. 71 e 263, 2. No art. 71, 4, dispõe que a pessoa presa em diligências preliminares ou em investigação preparatória pode solicitar audiência ao juiz de investigação preparatória para o resguardo de seus direitos fundamentais.[40] Também, o art. 263, 2, estabelece que a pessoa presa será colocada imediatamente à disposição do juiz da investigação; e, em se tratando de prisão preliminar ou em flagrante, o preso será examinado, com assistência da defesa, para identificação e garantia de seus direitos fundamentais.[41]

Uruguai.

O instituto da apresentação da pessoa presa em juízo não se faz presente na Constituição, no entanto, não deixa de estar previsto no Código de Processo Penal, em seu art. 118, quando menciona que a pessoa presa em razão de flagrante delito ou por mandado de prisão terá sua declaração tomada pelo juiz, em 24 horas.[42]

Venezuela.

A Constituição não dispõe sobre o instituto, mas o Código de Processo Penal tem dispositivo relacionado ao assunto. O art. 236, 3, assegura que a pessoa presa preventivamente seja levada perante o “Juiz de Controle” para audiência de apresentação, dentro de 48 horas de sua prisão.[43]

Guiana.

A Constituição da Guiana não dispõe sobre a audiência de apresentação, mas o Código de Processo Penal tem dispositivo que se relaciona ao assunto quando, em seu art. 56, dispõe que a pessoa presa por mandado seja apresentada ao magistrado assim que for presa, quando poderá ser concedida a liberdade com ou sem fiança ou entregue à prisão.[44]

Guiana Francesa.

Trata-se de um território ultramarino da França, não é um país, por isso, ali se aplica a legislação francesa.[45]

Suriname.

Nada dispõe sobre a audiência de apresentação na Constituição, embora, textualmente, em seu art. 16, 3, estabelece que toda pessoa presa tem direito a ser tratada de acordo com a dignidade humana.[46] Tampouco, encontramos o instituto na legislação interna.

Depois de verificarmos, em síntese, como está o instituto da audiência de apresentação da pessoa presa nos países da América do Sul, vejamos como se desenvolve em alguns outros países pelo mundo afora.

Portugal.

Em Portugal, o instituto da apresentação da pessoa presa em juízo no prazo máximo de 48 horas encontra-se presente na Constituição de 1976[47], com regulamentação no Código de Processo Penal.[48]

Espanha.

A Constituição da Espanha de 1978, em seu art. 17, regula o direito fundamental da liberdade, e, no art. 496[49], do Código de Processo Penal, dispõe que a pessoa presa deve ser apresentada à autoridade judicial mais próxima no prazo improrrogável de 24 horas.

França.

A Constituição da França de 1958 não dispõe sobre o instituto da apresentação da pessoa presa. O Código de Processo Penal francês, por exemplo, prevê a figura do juiz das liberdades e da detenção em cuja presença deve ser apresentada a pessoa presa por ordem do juiz da instrução.[50]

Alemanha.

A Constituição da Alemanha de 1949, em seu art. 104, 3, estabelece que toda pessoa presa provisoriamente suspeita de um crime deve ser levada à presença do juiz, o mais tardar, no dia seguinte à prisão.[51] O Código de Processo Penal alemão nos arts. 115 e 115ª regula o assunto.[52]

Itália.

A Constituição italiana de 1947 nada dispõe sobre a apresentação da pessoa presa a uma autoridade judiciária. Mas o Código Processual Penal italiano estabelece, em seu art. 390, 2, que ao preso ou detido em flagrante, não liberado pelo Ministério Público, o Juiz fixa em 48 horas a audiência de convalidação.[53]

3.4 A audiência de apresentação da pessoa presa (AAPP) ante o princípio do juiz natural.[54]

O juiz natural ou legal é o apontado pela própria Constituição como o competente (CRFB, art. LIII), ou por lei de organização judiciária, pela qual se criam varas e cargos de juiz de direito, ressaltamos que não se pode criar varas e cargos de juiz de direito por intermédio de Resoluções ou Provimentos de Tribunais. E uma vez criada a vara, em cujo ato de criação fica estabelecida a competência, não pode o respectivo Tribunal estabelecer a sua competência por norma interna (resolução ou provimento), salvo em situações excepcionais, nas quais a lei for omissa.[55] Em verdade, o princípio do juiz natural procura obstaculizar que ocorrido determinado fato reputado criminoso, seja criado um Tribunal específico com competência para julgá-lo, eis aí a proibição do Tribunal ou juízo de exceção (CRFB, art. 5.º, XXXVII).

Desse modo, como fica o ato normativo do Tribunal que alarga competências de varas e designa juízes para atuar em determinadas varas criminais com competência para realizar a audiência de apresentação da pessoa presa? Não pode.[56] Aí se percebem três obstáculos, a saber: o primeiro decorre da mudança ou alteração da competência de determinada vara; o segundo, a designação aleatória ou arbitrária de juízes para atuar nelas; o terceiro, retira ou solapa a competência já preestabelecida (CPP, art. 69), alterando indevidamente, desviando a competência da autoridade judiciária para receber a comunicação da prisão em flagrante (CPP, art. 306). Em todos esses três obstáculos, percebe-se franca ofensa ao princípio do juiz natural. Essa ofensa se estende ao princípio do promotor natural[57] e ao princípio do defensor público natural.[58] Convenhamos, é muita ofensa a princípios fundamentais e tudo isso por nada, pois cremos que não há necessidade alguma de se alterar a competência já existente.[59]

Consoante às regras normais de competência, a comunicação da prisão em flagrante da pessoa cabe: durante o expediente normal, ou seja, em dias úteis, por distribuição eletrônica; em domingos e feriados, ao serviço de plantão, com posterior distribuição eletrônica. Então, pela simples presença física da pessoa presa, acompanhada dos papéis da comunicação, parece que junto vem um furacão de enormes proporções, trazendo consigo inegável ofensa ao princípio do juízo natural. Por que isso? Qual a razão ou o motivo dessa celeuma toda? Não fica tudo mais simples se somente acrescentar (obrigatoriamente) que, junto com os papéis da comunicação da prisão em flagrante, apresente-se a pessoa presa? Qual o motivo de tanta dificuldade? Ora, é apenas se esforçar para se colocar em prática o direito fundamental de ser levada à audiência de apresentação da pessoa presa ao Poder Judiciário, dentro de 24 horas (CPP, art. 306), o que já deveria estar sendo praticado no Brasil, desde 7 de julho de 1992, como expomos em precedência, com a entrada em vigor no território brasileiro do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

Pelo Brasil afora, comumente, está-se praticando a audiência de apresentação da pessoa presa ao Poder Judiciário somente nas capitais de cada estado, como, por exemplo, ocorre no estado de Mato Grosso.[60] Ora, isso, além de negar o direito da audiência da pessoa presa no interior do estado, estabelece um tratamento desigual e injustificado daquela para com a pessoa presa na capital. Para corrigir isso acreditamos que basta cada Tribunal, por resolução, estabelecer que a audiência da pessoa presa ao Poder Judiciário seja imediatamente colocada em prática em todo o território do estado, aliás, como já adiantou, neste particular, o CNJ, via Resolução n.º13/2015.

Da resolução para imediata aplicação da audiência de apresentação da pessoa presa em juízo, por todo o estado, como se preocupou o CNJ, advém inúmeras questões colocando dificuldades, a nosso ver, desnecessárias e, muitas delas, até descabidas. Destacamos, a seguir, a questão da imparcialidade do juízo que presidir a supracitada audiência.

3.5 A audiência de apresentação da pessoa presa ante o princípio da imparcialidade do juiz.

Em respeito ao princípio do juiz natural, estamos convictos em asseverar que o juiz competente para presidir a audiência de apresentação da pessoa presa deve ser o mesmo já previamente estabelecido para conhecer da causa. Óbvio, ressalvemos os casos de plantão.[61] Por outras palavras, não é porque presidiu a audiência de apresentação da pessoa presa que o juiz fica impedido de continuar e conhecer da causa. Isso seria um disparate.

A audiência de apresentação da pessoa presa engloba as três finalidades, descritas a seguir: a) analisar a legalidade da prisão; b) coibir possíveis abusos evidenciados em maus-tratos ou tortura durante todo o tempo em que a pessoa esteve em poder dos agentes estatais; c) restituir imediatamente a pessoa presa à liberdade (sem vínculo; com fiança; ou com medidas cautelares); caso contrário, excepcionalmente, decretar a prisão preventiva.[62]

A polêmica existente quanto à suposta parcialidade do juiz que preside a audiência de apresentação da pessoa presa, por isso, não devendo permanecer como competente para a causa merece uma reflexão. Temos que a principal dificuldade ressai do Sistema Processual Penal brasileiro, que se registra confuso. Por um lado, temos a Constituição de 1988 norteando um Sistema Acusatório (titularidade exclusiva da ação penal pública por parte do Ministério Público – art. 129, I, contraditório e ampla defesa – art. 5º LV, devido processo legal – art. 5º LIV, presunção de inocência – art. 5º LVII, exigência de publicidade e fundamentação das decisões judiciais – art. 93, IX)[63]; por outro lado, a legislação infraconstitucional teima em render homenagens ao Sistema Inquisitório.[64] Disso resulta que, na prática, quase temos um Sistema Misto.[65] Essa confusão termina por lançar seu espectro sobre o juiz no momento do ato judicial, por certo, deixando-o confuso no seu mister ao propiciar que interfira na coleta de provas. Isso o torna juiz investigador (juiz-ator), cujo papel é repelido pelo Sistema Acusatório, e faz imergir num quase Sistema Misto.[66] Ora, é verdade que o juiz que colhe provas, por si, de ofício, presume-se parcial, assim, deve ser vedado de prosseguir em etapas futuras. Caso a audiência de apresentação da pessoa presa tivesse o condão de coletar provas, então, o juiz que a presidisse estaria obviamente impedido de prosseguir, instruindo eventual ação penal e julgando-a, pois teria perdido a sua imparcialidade.[67]

A audiência de apresentação da pessoa presa é ato pré-processual, conquanto seja judicial e tenha o seu curso marcado pela presença da defesa e da acusação, contudo, aí é vedada a coleta de provas. Essa proibição foi muito bem-observada pela Resolução n.º 213/2015, do CNJ.[68] E não poderia ser diferente, pois a razão do instituto é assegurar à pessoa presa seus direitos mais básicos e essenciais como indivíduo, quais sejam: não permitir que sofra qualquer prisão ilegal; não permitir qualquer atentado contra a sua integridade física; não permitir qualquer prisão além da excepcionalmente necessária. Então, aproveitar-se desse momento que se propõe em assegurar um direito fundamental, reconhecido em favor da pessoa em estado de vulnerável perante o Estado, para coletar provas, seria um contrassenso. Percebe-se de pronto que a audiência de apresentação da pessoa presa não tem vocação alguma para comportar coleta de provas em seu desfavor.[69] Alguma prova que vier a ser requerida pelas partes nesta oportunidade, v.g., alguma perícia consubstanciada em forma de laudo, deve ser juntada posteriormente, deve ser inserida no bojo do inquérito policial ou do próprio processo.[70] Tal prova, oportunamente, estará sob o condão do contraditório. O juiz deve sempre se eximir de determinar qualquer medida de ofício para não se macular como julgador pelo vício da parcialidade. De forma que não vemos qualquer impedimento quanto ao juiz que preside a audiência de apresentação da pessoa presa em prosseguir no possível curso do processo penal.[71]    

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Sobre o autor
Abel Balbino Guimarães

Juiz de Direito (TJ/MT). Professor de Direito. Mestre em Direito pela Unesp. Especialista em Metodologia e Didática do Ensino Superior, em Direito Penal e Processual Penal e em Poder Judiciário. Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade “Clássica” de Lisboa.Graduado em: Direito, Comunicação Social, Pedagogia, Teologia e Filosofia. Poliglota.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Abel Balbino. O estado de direitos humanos e a audiência de apresentação da pessoa presa (não "audiência de custódia"): algumas questões essenciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5231, 27 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58949. Acesso em: 26 abr. 2024.

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