4-CONCLUSÃO
O presente trabalho teve por objetivo analisar criticamente a utilização indistinta do critério de reconhecimento de morte para o final da vida humana e para também marcar o início da vida humana.
Foram expostos os critérios apontados pela dogmática Médico Legal para determinação da morte, demonstrando-se que tem prevalecido o da morte encefálica, não sem o acréscimo da característica imprescindível da “irreversibilidade”.
A adoção desse critério da morte (no final da vida) para decisão sobre a atipicidade do “aborto de anencéfalos” foi posta em discussão. Deixou-se clara a impropriedade da assunção de um mesmo critério para determinar o fim da vida humana e o seu início.
Entretanto, a discussão da incompatibilidade desses critérios, por si só, considerando o fundamento de que o ser humano já nascido quando morre não tem mais potencialidade, e o ovo, embrião ou feto, ainda podem se desenvolver plenamente, inclusive com relação ao funcionamento cerebral e encefálico, não se mostrou suficiente com relação aos anencéfalos, porque estes também não têm a potencialidade de desenvolvimento.
A grande questão constatada foi que há uma falha de percepção ontológica quanto ao ser (criança) que habita o álveo materno. Essa falha ontológica coloca o intérprete e aplicador do Direito em chão movediço e abre caminho para uma crescente adoção da morte e da exclusão seletiva como “solução final” para uma série de situações em que se lida com alguém que é deficiente, seja com relação ao seu funcionamento mental ou qualquer outra anormalidade. Pior que isso (se é que é possível falar em “pior”), não são somente deficiências que podem ser pretexto para destruição de vidas (nascidas e em gestação), mas o mero fato de não ter ainda um sistema nervoso desenvolvido, tal como se vê, na prática e no Brasil, em outra decisão do STF, permissiva do abortamento até o terceiro mês de gestação, independentemente de problema algum de saúde da gestante, do feto ou mesmo da origem da gravidez (estupro). A tendência para que essa “solução final” de morte e exclusão se amplie para um número cada vez maior de indivíduos para os quais haverá uma autorização expressa para matar, é enorme, tanto que já dá origem a textos supostamente “bioéticos” (sic), [42] como aquele de Singer e Kushe.
Infelizmente, em nome da dignidade humana, se corrompe e banaliza exatamente a própria dignidade humana, e essa tendência não parece que vai recuar, senão ampliar-se cada vez mais na atualidade. Talvez e somente talvez, quando já tiver produzido todos os males de que é capaz, surgirá a consciência do erro. Nesse quadro, nada mais adequado do que finalizar o presente texto com o pequeno poema de Brecht, intitulado “Lendo Horácio”:
“Mesmo o dilúvio
Não durou eternamente
Veio o momento em que
As águas negras baixaram.
Sim, mas quão poucos
Sobreviveram”! [43]
REFERÊNCIAS
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Notas
[1] Vide íntegra da decisão em file:///C:/Users/User/Downloads/texto_136389880.pdf , acesso em 22.07.2017. A ementa foi de seguinte teor: “FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal”.
[2] Neste sentido, por exemplo: NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal. Volume 2. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 111. PEDROSO, Fernando de Almeida. Direito Penal Parte Especial. 2ª. ed. Leme: Mizuno, 2017, p. 241. Como bem lembra o segundo autor mencionado, na doutrina, a justificativa do aborto sentimental não é unanimemente acatada. Há quem entenda que um crime (estupro) não pode justificar outro (aborto), nem uma violência pode justificar outra, assim como um mal não é justificação de outro mal. Exemplo dessa posição é a de José Frederico Marques que, por seu turno cita o autor Afrânio Peixoto, conforme também lembra Nucci. Acrescente-se que Marques ainda se escuda nos ensinamentos de Leonídio Ribeiro, Carvalho Mourão e Alcântara Machado. Cf. MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Volume IV. Campinas: Millennium, 1999, p. 219.
[3] ADPF 54, Disponível em file:///C:/Users/User/Downloads/texto_136389880.pdf , acesso em 22.07.2017.
[4] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 10ª. ed. Niterói: Impetus, 2016, p. 368.
[5] ADPF 54, Disponível em file:///C:/Users/User/Downloads/texto_136389880.pdf , acesso em 22.07.2017.
[6] MARANHÃO, Odon Ramos. Curso Básico de Medicina Legal 7ª. ed. São Paulo: Malheiros,1995, p.232.
[7] FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998, p. 282.
[8] Sobre os critérios médicos – legais para determinação da morte: MARANHÃO, Odon Ramos. Op. Cit., p. 231 – 233. FÁVERO, Flamínio. Medicina Legal. 12ª. ed. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991, p. 545.
[9] PESSOA, Fernando. Poesias. Porto Alegre: L& PM, 2001, p. 7.
[10] Para uma noção geral da discussão, ver por todos: MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 29 – 30.
[11] ARROYO URIETA, Gregório "et al. ". XI Jornadas Médico - Forenses Espanholas, "apud" MARANHÃO, Odon Ramos. Op. Cit., p. 232
[12] A “irreversibilidade” é também o critério apontado para o diagnóstico de morte encefálica pelo artigo 3º., da Resolução 1480, de 08.08.1997, do Conselho Federal de Medicina.
[13] CARVALHO, Hilário Veiga de, Apud, MARREY NETO, José Adriano. A morte e seu diagnóstico (aspectos legais). Revista de Julgados e Doutrina do TACrimSP. n. 2, abr./junh., 1989, p. 9.
[14] SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Morte Encefálica e a Lei de Transplante de Órgãos. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, p. 6.
[15] Cf. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Volume 1. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 193. “Potência e ato são dois significados não definíveis em abstrato, mas ‘demonstráveis’ por meio de exemplos ou de uma experiência direta. Por exemplo, vidente é aquele que neste momento vê (vidente em ato), mas também aquele que tem olhos sãos, mas, neste momento os fechou, e não está vendo: este é vidente porque pode ver, e neste sentido é em potência”.
[16] SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Op. Cit., p. 26.
[17] ANGOTTI NETO, Hélio. Disbioética III – O extermínio do amanhã. Brasília: Monergismo (no prelo), p. 20.
[18] KACZOR, Christopher. A Ética do Aborto. Trad. Antonio José Maria de Abreu. São Paulo: Loyola, 2014, p. 80.
[19] Para acesso ao original: SHEWMON, D. Alan. The brain and somatic integration: Insights into the standard biological rationale for equating “Brain Death” with Death. Journal of Medicine and Philosophy. n. 26, 2001, p. 457.
[20] KACZOR, Christopher. Op. Cit., p. 81.
[21] Para uma leitura crítica dessa decisão esdrúxula do STF: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Os Abortos do STF. Disponível em www.jus.com.br , acesso em 22.07.2017.
[22] Cf. FLEMMING, Hugh J. A Medicina Pós Hipocrática. Trad. Fabrício Tavares de Moraes e Felipe Sabino de Araújo. Brasília: Monergismo, 2017, p. 58.
[23] KACZOR, Christopher. Op. Cit., p. 90.
[24] Op. Cit., p. 92.
[25] Não se confunda esse “Princípio de Proporcionalidade” da discussão ético – moral com o “Princípio da Proporcionalidade” relacionado ao campo jurídico. São coisas diversas. Cf. GEWIRTH, Alan. Reason and Morality. Chicago: University of Chicago Press, 1978, p. 121.
[26] KACZOR, Christopher. Op. Cit., p.93.
[27] Op. Cit., p. 94.
[28] Op. Cit., p. 94.
[29] MONDIN, Battista. Definição Filosófica da Pessoa Humana. Trad. Jacinta Turolo Garcia. Bauru: Edusc, 1998, p. 25.
[30] KACZOR, Christopher. Op. Cit., p. 95.
[31] Op. Cit., p. 96.
[32] Op. Cit., p. 98 – 99.
[33] Op. Cit., p. 100.
[34] Defendendo essa noção da pessoalidade como uma “mente incorporada”: Cf. MCMAHAN, Jeff. The Ehics os Killing: Problems at the Margins of Life. Oxford: Oxford University Press, 2002, p.69. A obra tem tradução para o português. Na edição brasileira encontra-se a tradução de passagem em que Macmahan afirma claramente que somente considera como “pessoa” uma “entidade dotada de vida mental de certa ordem de complexidade e sofisticação”. A “abordagem da mente incorporada” é desenvolvida no seguimento. Cf. MACMAHAN, Jeff. A Ética no ato de matar: problemas às margens da vida. Trad. Jônatas Techio. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 18 e 76 – 79.
[35] KACZOR, Christopher. Op. Cit., p. 119.
[36] Op. Cit., p. 133.
[37] CONDIC, Maureen L. Life: Defining the beginning by the end. First Things. n. 133, may, 2003, p. 52.
[38] KACZOR, Christopher. Op. Cit., p.167.
[39] WEAVER, Richard M. As ideias têm conseqüências. Trad. Guilherme Araújo Ferreira. São Paulo: É Realizações, 2012, p. 35.
[40] BAUMAN, Zygmund. Legisladores e Intérpretes. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 161.
[41] MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 4a. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 128.
[42] Na verdade são pensamentos torpes e perversos que configuram o que Angotti Neto cunhou com o neologismo “Disbioética”, ou seja, “formas de bioética muito mais voltadas ao erro que à ética adequada”. ANGOTTI NETO, Hélio. Disbioética. Volume I. Brasília: Monergismo, 2017, p. 9.
[43] BRECHT, Bertolt. Poemas. Trad. Paulo Cesar Souza. 3ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 316.