Aborto, eugenia disfarçada?

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A eugenia fora aplica no século XX. Engana-se quem pensa na sua existência no início do século XXI. O tema, espinhoso, merece ser amplamente abortado.

O aborto, sem qualquer tipificação penal, é uma tendência mundial. Grupos formados por médicos, políticos, cidadãos comuns, todos querem, nos respectivos Estados, que o aborto seja decisão tão somente da mulher, e não do Estado. Justificam, tais grupos, que o Estado não pode decidir sobre a autonomia da vontade da mulher; é coação estatal qualquer tipo de impedimento. Pela autopossessão da mulher, ela quem decide quando quer ter filho e se quer ter.

O aborto como reflexo da autopossessão da mulher: até que ponto o direito à vida pode ser sobrepujado?

No artigo anterior, choques de direitos. No artigo presente, o desenvolvimento do tema, espinhoso, será sobre a probabilidade de a eugenia ser aplicada, justificada em autopossessão da mulher.

AUTONOMIA DA VONTADE PELA ANÁLISE KANTIANA E O MARTELAR DA FILOSOFIA NIETZSCHIANA

Immanuel Kant foi um filósofo rígido na questão da deliberação humana, ou seja, qual a intenção real numa escolha pessoal, o respeito à dignidade humana alheia. Para Kant, todo ser humano é dotado de dignidade; é inerente ao ser humano, muito antes do surgimento do Estado, das comunidades, das civilizações.

Há grupos pós e contra o aborto. O que são contra invocam crenças religiosas, filosofias esotéricas, Direito Constitucional, ciências biológicas etc. Aos que são a favor, não há conteúdos como crenças religiosas, filosofias esotéricas, Direito Constitucional; justificam o aborto pela condição natural da autopossessão feminina versus os impedimentos ideológicos à autonomia da vontade feminina, ou seja, a mulher é vítima de dogmas e tabus construídos pelos homens (sexo masculino).

Todavia, é possível dizer que, realmente, a mulher sempre tem sua autopossessão? A mulher é dotada de aparelho reprodutivo. Não admitindo às técnicas atuais de fertilização artificial, a gravidez independe da vontade da mulher. Se o aparelho reprodutivo não produz os hormônios necessários para o desenvolvimento do embrião, embriogênese — sendo as etapas chamadas de segmentação, gastrulação e organogênese — a autonomia da mulher e sua vontade de nada lhe servirão. Se o aparelho reprodutor feminino possui todas as condições para gerar vida, mas, infelizmente, o sistema imunológico feminino sofre alterações — estresse, como, por exemplo, no caso de Síndrome Burnout; patógenos que podem causar infecção urinária, periodontite, vaginose bacteriana, candidíase; uso de drogas lícita ou não —, há riscos para a gestante e o feto. Na esteira dos acontecimentos que possam prejudicar a gestação, alguma bala perdida, acidente automobilístico.

Após a Segunda Guerra Mundial, a mulher teve possibilidade de conquistar direitos civis e políticos, jamais vistos na História Humana, quando se analisa o antes e depois do surgimento das civilizações. Antes das civilizações, as mulheres desempenhavam funções importantes, como chefia familiar, declarar guerra ou paz; podiam escolher parceiro, ou quantidade de parceiros (poliandria). Ou seja, não era o sexo frágil que se formou, principalmente, na Idade Média e se estendeu até a primeira metade do século XX.

O surgimento do anticoncepcional feminino, na década da 1960, a tecnologia favorecendo, em termos, o desprendimento dos afazeres do lar, as mudanças econômicas ocorridas, principalmente nas décadas de 1970, na Inglaterra, e nos EUA, 1980, o chamado neoliberalismo, todos estes fatores promoveram uma revolução feminina à liberdade — ou seria um resgate das liberdades, cerceadas, por ideologias as quais impossibilitaram a autopossessão da mulher?

Se antes das civilizações as mulheres podiam exercer, livremente, a autopossessão — mesmo no berço da civilização ocidental, a Grécia (a.C.), as mulheres tinham limites em suas possessões —, com as civilizações tudo mudou. O período anterior foi redundante, para frisar bem que civilizações retiraram praticamente a autonomia da vontade do sexo feminino. Sim, antes da civilização, a mulher carregava galhos, construía habitações, arava. Não era somente cuidar dos filhos e do marido.

Da metade do século XX em diante, a mulher cuida dos filhos, trabalha, dentro e fora do lar, tem possibilidade de estudar até o nível universitário. Se as tecnologias a partir da década de 1950 garantiram uma redução das tarefas no lar, por que o tempo diminuiu para as mulheres? Pela lógica, as mulheres teriam acréscimos de horas para se dedicarem aos estudos, por exemplo. Máquina de lavar roupas. A mulher, na década de 1950, teria tempo para se dedicar a outros fatores. Errado, a quantidade de roupas para lavar aumentou, exigindo mais tempo da mulher. E os alimentos “ semi-industrializados” ou industrializados, não proporcionariam horas extras à mulher? Se após a segunda metade do século XX o desenvolvimento tecnológico parecia que resolveria todos os problemas humanos, tal ideia que nasceu durante a Revolução Industrial, pelo Milagre da Tecnologia, na verdade causou outros problemas, o desemprego, a rotatividade de emprego. As mulheres, mesmo diante de algumas conquistas, direitos civis e políticos, tornaram-se contribuidoras das finanças da família.

Muitas mulheres quiseram adiar o sonho, ou desejo trabalhado pela ideologia de que a

mulher tem que ter filho, para se dedicarem aos estudos, ao desenvolvimento profissional. Ainda, no início deste século XXI, as mulheres esforçam-se para conquistarem reconhecimento profissional. Assim, entre o desejo de ter filho e o desejo de não depender economicamente do homem (marido), ou mesmo como autoafirmação de que é capaz, como os homens, de ter sucesso profissional, imperou a vontade de se tornar mulher vencedora dos negócios. O que se depreende disso é que a escolha da mulher, entre ter filho ou ser uma profissional reconhecida e qualificada, não foi pela autonomia, mas pela heteronomia. Deliberou entre o de engravidar e o desejo de se tornar mãe. Fato! Claro, já que nenhum ser humano, assim como as mulheres, não é um ser padronizado, nasceu para ser algo conforme sua genética, destino.

E se o Estado (Social) fornecesse condições de a mulher ter filho e se desenvolver profissionalmente? Como? Creches, horário integral para crianças e adolescentes. Aqui, a possibilidade, real, de a mulher deliberar. Com o Estado Social presente, a mulher tem sua autonomia da vontade para escolher. Sem o Estado Social, a escolha da mulher é motivada por forças externas, isto é, houve um motivo na escolha ajustado pelas condições políticas. Estado mínimo pode influenciar na escolha da mulher quanto à gravidez? Sim, pois a mulher, sabendo que não terá ajuda do Estado (social), deliberará, primeiro, para a sua sobrevivência, para o seu desenvolvimento profissional. Estabilizada, financeiramente, o desejo de ter filho(s). Mensuradas as possibilidades, econômica e financeira, a possibilidade de contratar babá, custear plano de saúde e instituição de ensino para o(s) filho(s). Exatamente, ter prole custa muito, muito caro.

Estou analisando uma mulher solteira. E quanto à mulher casada? O casal tem que deliberar seus desejos: carreiras profissionais e rendimentos; presença ou não do Estado Social. Alguns leitores podem refutar tal análise. Por exemplo, como os povos indígenas conseguem prover suas necessidades sem a presença do Estado, principalmente o Estado Social? Irei mais longe, retrocedendo muito mais. Como os nômades sobreviviam e tinham filhos sem os meios de produções existentes contemporaneamente e sem o Estado?

Faça um teste pessoal, por um dia. Vá para uma via pública, sem dinheiro nenhum, sem cartão de crédito ou crédito. Sentiu sede? Como consumirá água potável? Duas opções, a solidariedade de algum concidadão ou algum chafariz colocado pelo Estado. Fome? Três opções: restaurante popular, fornecido pelo Estado Social; quentinhas distribuídas por concidadãos solidários (religiosos etc.); ou comer comida dentro de contêineres nas vias públicas. Noite, cansaço físico: deitar sobre alguma calçada ou assento de braça, quando possíveis, já que pode haver guarda municipal proibindo que administrados deitem nas vias, por vários motivos; conseguir abrigo público (Estado Social); associação de moradores disponibilizando alguns cômodos. Noite fria: sentir frio e, dependendo da temperatura, morrer; abrigos fornecidos pelo Estado (social); abrigos fornecidos por instituições religiosas, filosóficas; abrigos fornecidos por empresários (desconto em imposto de renda, ou por puro amor ao próximo); ficar doente: tratamento em hospital público (Estado Social); tratamento por médicos, solidários, que prestam consultas gratuitas aos desamparados; serviço particular, por solidariedade ou pela condição de conseguir redução no imposto de renda.

Qual a minha informação sobre tudo que explanei nos dois parágrafos anteriores? Nos casos dos povos indígenas e nômades, ambos têm os meios naturais à disposição para suas sobrevivências. Nas metrópoles tudo é propriedade privada. Sem dinheiro, sem recursos patrimoniais, financeiros e econômicos, a sobrevivência se iguala ao romano (a.C.) condenado, pelos senadores romanos, ao exilo. Dentro de Roma, não há possibilidade de o condenado saciar fome e sede. Há distinção entre Roma (a.C.) e o Estado, contemporâneo, embasado nos direitos humanos (direitos civis, políticos, sociais, culturais e econômicos, indiferentemente se presidiário ou não, morador de rua ou profissional liberal de sucesso). A condenação romana (a.C.) proibia qualquer cidadão romano de fornecer água e alimento ao condenado, mesmo que este andasse dentro do território romano. No Estado, por exemplo, brasileiro, cujos direitos humanos imperam, cada cidadão poderá saciar fome e sede até de um presidiário. Não há Pena Capital.

Depreende-se, numa metrópole cujos direitos humanos existam, formal e materialmente, principalmente nos corações dos habitantes, o Estado Social existe. Não falo no Estado Social quanto aos elementos socioideológicos (ex.: arts. 6º e 7º, da CRFB de 1988) e formais de aplicabilidade (ex.: art. 5º, § 1º, da CRFB de 1988), portando num Estado Social nas relações humanas, independente de norma jurídica. Pensemos, se há Estado mínimo coeso com autonomia da vontade Filosofia da Alcova, quem sobreviverá?

Richard Wilkinson e Kate Pickett, no livro The Spirit Level, dissertaram, com vastos estudos científicos, que, quanto maior a desigualdade social, maiores são as doenças, psíquica e física, maior a incidência de criminalidade e seletividade penal — nos estudos, afrodescendentes e hispânicos são mais condenados por restrição de liberdade do que os brancos —, maior a quantidade de aborto, principalmente entre os jovens. Não se trata, puramente, de desigualdade social econômica, contudo, a desigualdade é fruto do comportamento, negativo, às diferenças; ou seja, como cada cidadão se vê no seio social, como grupos sociais se relacionam (apatia ou empatia).

Coexistindo Estado mínimo e ideologias segregadoras, as quais resultam em seletividades sociais, quais grupos étnicos, morfológicos e situação psíquica serão favorecidos pela ausência do Estado na questão do aborto, isto é, a plena autonomia da vontade feminina em ter ou não filho(a) proveniente de seu útero? O documentário Blood Money - Aborto Legalizado traz à questão (aborto) a eugenia.

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O introito extenso que fiz, antes do documentário Blood Money - Aborto Legalizado, foi uma forma de levantar questionamentos sobre a real autonomia da vontade da mulher. Não existe, conforme os defensores do aborto sem limites pregam. Existe deliberação conforme às circunstâncias mesológicas. Diante, no caso do Brasil, das péssimas condições do serviço público de saúde, perante os milhões de brasileiros que sobrevivem graças ao Bolsa Família, da corrupção da PPPI (Parceria Público-Privada Ímproba), do alastramento do Estado mínimo no Brasil, privatizações, terceirizações, da mentalidade de muito brasileiros quanto aos afrodescendentes, nordestinos, LGBTs e pessoas com necessidades especiais, quais mulheres terão o benefício da prática abortiva sem qualquer tipificação penal? Irei mais além, a prática, ignóbil, de profissionais da área de saúde que comercializam (Máfia das Próteses) vidas humanas. Pode existir Máfia do DNA.

O Brasil é o maior consumidor de agrotóxico do mundo, sendo que muitos dos agrotóxicos usados são proibidos em vários países. Malformação fetal, anencefalia e até mesmo o aborto podem ser efeitos do agrotóxico nos alimentos. Existe também o custo-benefício entre aborto e manutenção de uma vida. Nascituro com complicações, por uso de drogas, lícitas ou não, pela gestante, devem ter cuidados especiais. No caso em tela, sem o Estado Social, fica impossível os pais, ou somente a mãe, ou somente o pai, em caso de morte de algum, custear o tratamento médico. Por sua vez, com o Estado Social presente, por exemplo, no caso do nascituro já envenenado durante o seu desenvolvimento, impostos são necessários para custear o sistema público de saúde. Cada vez mais, no Brasil e no mundo, há o querer do Estado mínimo. Pergunto, diante das desigualdades sociais, retratado por Zigmunt Bauman — O Capital no Século XXI —, no planeta, qual será o destino do nascituro cuja família está abaixo, beirando ou se sustentando com unhas e dentes, do mínimo existencial? Sabendo a família desprovida de bons, ou ótimos, recursos econômicos da possibilidade de terem filho com alguma doença, qual será a atitude, senão o aborto?

O leitor pode contra-argumentar que nesta questão, mesmo uma família abastada irá, possivelmente, optar pelo aborto. A diferença é a possibilidade da família abastada escolher alimentos sem agrotóxicos, que custam bem mais caros. Pois bem, admitindo a poluição. Nesse caso, não importa se pobre ou não, o risco de doença durante a gravidez, e comprometimento do desenvolvimento do feto, a probabilidade de aborto pela poluição. O aborto é uma condição imposta por agentes externos. Se a mulher quiser ter filho, aí reside a sua deliberação, pois foi contra uma força externa capaz de mudar sua opinião, o risco assumido pela mulher é real. O possível aborto, em razão de doença causada pela poluição, por exemplo, é uma deliberação da mulher? Claro que não, é uma violação à dignidade dela e do feto. Ambos foram condenados pela poluição. Todavia, a escolha, corajosa, num Estado mínimo, possivelmente sairá cara para a mulher. Tanto ela quanto o filho, com alguma doença causada pelo agrotóxico, por exemplo, sofrerão, a redução de cada dignidade será provável.

Como disse alhures, existem vários fatores além dos elencados aqui, a autonomia da vontade da mulher, como se ela vivesse numa bolha isolada do meio ambiente e de todos os fatores que possam decidir, por ela, por ter ou não ter filho(s). Não é só questão de machismo, imposição religiosa; é necessário enxergar todos os fatores (sociais, econômicas, ambientais) em relação à mulher, a sua real deliberação de ter ou não filho, escolher abortar ou não.

O artigo não se esgota em si. Numa democracia é necessário debate, pela liberdade de expressão, de forma civilizada. Mesmo que a decisão, aborto sem restrições ou não, numa democracia, não agrade, é pela liberdade de expressão, pelos debates envolvendo sociedade, profissionais da área de saúde, operadores de Direito, jornalistas, religiosos, filósofos e políticos, que o aborto pode ou não ser amplamente praticado, sem qualquer tipificação penal. Porém, pela ética de Kant, jamais pendendo para interesses unilaterais — aprovação do aborto em troca de votos, o aumento de clientela aos médicos, contínuo descaso de empresários à saúde humana — será possível, pelo menos, alcançar uma decisão plausível, ética.

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Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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